EU SOU KANHÉ.  OS MEUS FORAM ASSASSINADOS AQUI!

Eu sou Kanhé (Canhé). Todos os anos. Religiosamente, todos os anos. No dia 6 de Março de cada ano lunar, recordo os meus tempos de meninice em que fruto da pobre condição económica, tive de me converter em vendedor-ambulante, neste emblemático centro comercial popular a céu aberto de Nova Lisboa, antiga capital do Planalto Central, no período colonial.

Por William Tonet

Lá encontrei a bússola que me formatou como “menino-homem”, pois encontrei, no meio das milhares de gente humilde, de gente pobre, a verdadeira “cacimba” de valores, de solidariedade, sensibilidade, de afectos, de humanismo e do princípio de partilha, que cultivo até hoje.

Sou, desde aquela época um homem livre, solidário, amigo dos seus amigos, que nunca os apunhala, pelas costas por não ter preço.

O brilho do girassol do Bailundo aquece e fermenta os valores da coluna vertebral erecta e geografia mental livre, impelindo-me a gritar indignado e revoltado pelo abjecto acto.

O silêncio e a covardia, levar-me-iam a ser cúmplice da barbárie. Por isso, não me calo! Não me calarei. Logo, grito!

Grito todos os dias 6 de Março. Desde 1993, há 32 anos, por desfilarem, teimosamente, as imagens revoltantes dos corpos inocentes barbaramente assassinados, de amigo(a)s, irmã(o)s, contemporâneos…

Mais de 4 mil vendedores, foram colhidos pelas bombas lançadas por MIG’s da Força Aérea, que entraram sorrateiramente, camuflados pelas montanhas do Mbave, vindos da base aérea do Lubango-Huíla, para descarregar as bombas assassinas.

O crime das vítimas foi de, à época, lutarem, diariamente, num terreno baldio e, desarmadamente, se terem postado distantes de qualquer base, bunker da UNITA ou de outro grupo militar.

Os pouquíssimos sobreviventes acreditam terem sido fustigados com tamanha severidade de bombas da morte, por terem BI do Sul…

Certo ou errado, tudo incrimina.

Hoje, quando vou ao meu Huambo, não posso deixar de ir aos campos onde se situava, desde o tempo colonial, um dos maiores mercados populares, adjacente à Missão da Igreja Católica do Kanhé, na bifurcação para o Bié, que naquele 6 de Março de 1993, pouco depois de eu ter recuado, seria apagado do mapa comercial e sentimental de milhões e milhões de cidadãos.

A minha geração viu e tem cunhada na memória, as tristes e horríveis imagens dos corpos dilacerados, como se estivessem num matadouro, mas eram das gentes e agentes comerciais que labutavam, na mais acabada referência da região planáltica e não só.

Nunca mais estarei com o Tchiwale, o Conde, o Mário, a Cândida, a Ndanda e os outros, para comermos pirão com o bom kundutu, regado com Othikuanga, porque se foram… Até breve!

Eu sobrevivi.

Oro, em silêncio no local, onde em alguns pontos a Igreja Católica colocou e bem salas de catequese, para as crianças e jovens prenderem a soletrar as palavras: convivência na diferença; conciliação; reconciliação; perdão, irmandade.

E, aqui chegados, possamos, com os corações e mentes mais harmonizadas erguer, no local, também, o “Túmulo do Vendedor Conhecido do Kanhé”, a inaugurar no 6 de Março de 2026, em memória das vítimas da barbárie de uma guerra, que envolveu irmãos desavindos.

A guerra nunca mais deve ser opção para a resolução das desavenças, entre os actores políticos. A ditadura, também, não!

O caminho é espinhoso. Mas Angola e os angolanos carecem, 50 anos depois do MPLA ter algemado a independência, ao arrepio dos Acordos de Alvor, de órgãos de soberania, verdadeiramente, despartidarizados e independentes, em especial o judicial.

O primeiro sinal, havendo higiene intelectual do regime, deve ser a despartidarização e desnazificação da CNE do formato “made in MPLA”, verdadeiro factor de instabilidade, capaz de incendiar o país em 2027.

O segundo passa pela realização de eleições autárquicas, a descentralização e desconcentração do poder, para se estancar as assimetrias regionais.

A terceira é a urgência na implantação de uma política económica soberana, capaz de resgatar Angola das garras de fundamentalistas islâmicos, especuladores ocidentais e asiáticos.

O regime diz precisar de armas e bombas para reprimir as manifestações e gasta milhões, agora, com mais de 32 mil milhões de dólares… Enquanto os povos e micronações precisam de comida, educação, água, pão e sal, que não podem ser adiadas “ad eternum”, denotando ausência de mente democrática e capacidade de gestão da rés-pública, por parte da elite do regime.

O 8 de Março está no dobrar da esquina e neste, quero homenagear duas mulheres de dois portentosos reinos que a muitos de nós orgulham, a conhecida Nzinga Mbandi Kia Mbandi, soberana dos reinos de Dongo e Matamba, de 1623 até o fim da vida.

E da mãe da unidade africana, Kimpa Vita que tentou unificar o reino do Congo através do seu movimento Antonianista. Nasceu por volta de 1684, no Monte Kibangu, no reino do Congo.

Estas mulheres deveriam ser mais estudadas e respeitadas, por tudo quanto fizeram pelos nossos reinos, tribos, povos e micronações autóctones….

Por isso eu sou Kanhé e me recolho, a cada 6 de Março!!!

Artigos Relacionados

Leave a Comment