ENQUANTO ÁFRICA ARDE…

O povo sudanês está a viver um “pesadelo” de fome e doenças e “violência étnica maciça”, especialmente no Darfur, e a sofrer cada vez mais, dia após dia, disse hoje o Secretário-Geral da ONU, o português António Guterres. E por se situar em África, eis uma boa razão para, por exemplo, os angolanos se preocuparem mais com o que se passa no Médio Oriente ou na Europa (caso da Ucrânia).

Após 18 meses de guerra entre o exército sudanês, chefiado pelo general Abdel Fattah al-Burhane, e as paramilitares Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) do seu antigo adjunto, o general Mohamed Hamdane Daglo, “o sofrimento aumenta de dia para dia, com 25 milhões de pessoas a necessitarem de ajuda”, lamentou António Guterres perante o Conselho de Segurança.

Milhares de civis mortos, violações “generalizadas” e outras “atrocidades indescritíveis” são cometidas no país, pelo que “o povo sudanês está a viver um pesadelo de violência”, condenou o Secretário-Geral da ONU, “horrorizado”, tanto pelos ataques das RSF contra civis em El-Fasher, no Darfur, como pelos ataques das forças sudanesas em Cartum, capital do Sudão, alvo de ataques aéreos.

Mas a população sofre também de um “pesadelo de fome”, com mais de 750.000 pessoas a enfrentar uma insegurança alimentar “catastrófica”, um “pesadelo de doenças”, com a cólera, a malária, a dengue e o sarampo a “propagarem-se rapidamente”, e um “pesadelo de deslocações”, com mais de 11 milhões de pessoas deslocadas, incluindo 3 milhões de refugiados nos países vizinhos, continuou António Guterres.

“O Sudão, mais uma vez, está a tornar-se rapidamente num pesadelo de violência étnica maciça, particularmente com a dramática escalada dos combates em El-Fasher”, no Darfur, insistiu o Secretário-Geral da ONU.

Nesta região fronteiriça com o Chade, os Janjaweed, antecessores das RSF, foram acusados de “genocídio”, no início dos anos 2000, em nome do então ditador Omar al-Bashir, que governou o Sudão.

António Guterres lembrou que os sudaneses e as Organizações Não Governamentais apelaram ao envio de uma força “imparcial” para proteger os civis, mas, salientou, “nesta fase, não existem condições para o envio bem sucedido de uma força das Nações Unidas para proteger os civis no Sudão”.

Contudo, admitiu “novas abordagens” que seriam adaptadas às circunstâncias.

E por falar no Chade, cerca de 14 milhões de pessoas estão deslocadas à força ou refugiadas na África Ocidental e Central, o dobro do número registado em 2019, anunciou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Pelo menos na dialéctica, a ONU reconhece que os africanos são… pessoas e mostra-se preocupado.

O director do escritório regional do ACNUR, Abdouraouf Gnon-Kondé, falando à imprensa numa conferência sobre deslocações forçadas, em Abidjan, Costa do Marfim, afirmou que “na África Ocidental e Central, temos cerca de 13,7 milhões de pessoas refugiadas e deslocadas à força. Mas, até ao final do ano, prevemos que este número seja de 14 milhões, e que chegue aos 15 milhões até ao final de 2025”. Em 2019, o número de pessoas deslocadas foi estimado em cerca de 6,5 milhões, recordou.

O número agora apresentado não inclui dados da República Democrática do Congo (RDCongo) – país que faz fronteira com Angola -, que por si só tem pelo menos sete milhões de pessoas deslocadas.

Gnon-Kondé salientou que a situação no Chade é a mais crítica, com “650.000 refugiados” do vizinho Sudão desde Abril de 2023 – data que marca o início da guerra neste país.

Antes deste conflito, o Chade – que tem uma população estimada em 17 milhões de habitantes – já tinha cerca de 420.000 refugiados sudaneses no seu território, bem como dezenas de milhares de pessoas provenientes dos seus outros vizinhos em crise de segurança, como a República Centro-Africana, a Nigéria e os Camarões, acrescentou.

“Actualmente, uma em cada 17 pessoas no Chade é refugiada”, salientou Gnon-Kondé.

Para além do Chade, a situação no Sahel é igualmente preocupante, com o Mali, o Burkina Faso e o Níger ainda a enfrentarem a violência terrorista, mortal em grandes partes dos seus territórios.

“Há entre 4,5 e cinco milhões de pessoas deslocadas, principalmente deslocados internos, mas também refugiados nos países vizinhos do Golfo da Guiné, na Mauritânia e no Sul da Argélia”, explicou Gnon-Kondé.

Perante situações em que as pessoas não podem regressar às suas casas, por vezes durante várias décadas, o ACNUR sublinhou a importância de integrar estes refugiados nos programas de desenvolvimento dos países de acolhimento.

Mais de 48,2 milhões de pessoas (sim, são africanos, são negros, mas não deixam de ser pessoas) sofrem de fome severa na África Oriental, onde as necessidades humanitárias se agravaram no último ano devido a fenómenos climáticos, conflitos, surtos de doenças ou crises económicas, diz a ONU.

Em “Fevereiro de 2024, mais de 48,2 milhões de pessoas, sobretudo na Etiópia, Quénia, Somália, Sudão do Sul e Sudão, sofriam de fome severa”, fez saber o Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários (OCHA).

O fenómeno climático El Niño, uma mudança na dinâmica atmosférica causada por um aumento da temperatura do oceano Pacífico, levou a condições mais húmidas que provocaram inundações na maior parte da região durante o último trimestre de 2023.

Este facto, segundo o OCHA, agravou ainda mais a situação nas zonas que não tinham recuperado das consequências da seca severa e prolongada de 2021 a meados de 2023, a pior dos últimos 40 anos.

A organização sublinhou que a região sofre também uma das maiores crises de deslocação do mundo, com pelo menos 17 milhões de pessoas deslocadas internamente e 5,1 milhões de refugiados ou requerentes de asilo.

“O conflito é o principal factor de deslocação, com mais de seis milhões de pessoas desenraizadas das suas casas no Sudão até Janeiro de 2024 e 4,6 milhões de deslocados internos na Etiópia”, afirma o gabinete das Nações Unidas.

Além disso, esta crise conduziu a surtos de doenças como a cólera, o sarampo e a malária, num contexto de insegurança alimentar e desnutrição.

Só em Fevereiro, foram notificados mais de 80.000 casos de cólera e quase 34.000 casos de sarampo numa região que cobre o Burundi, Etiópia, Quénia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Tanzânia.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a crise climática é um factor de agravamento, uma vez que muitos surtos de infecção diarreica se seguem a desastres naturais como inundações, ciclones e secas, devido à falta de água potável.

Mas o que é que isso importa? São pretos e, por isso, a comunidade internacional (EUA, Europa, ONU, Rússia, China) pode dormir descansada. Dormir e ter, pelo menos, três refeições por dia nos melhores hotéis…

Folha 8 com Lusa

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