Asco

Tenho nos últimos dias acordado com um gosto amargo na boca. Um asco que me veio depois de ler a entrevista do Ministro Francisco Queiroz publicada no Jornal de Angola do passado dia 28 de Maio de 2020. Todo o texto da entrevista se desenvolve segundo uma estratégia cheia de rodeios, a velha retórica tão ao gosto dos juristas, para mais uma vez tentar limpar o nome dos algozes e facínoras que levaram a cabo os abusos, torturas e matanças que foram despoletados pelos acontecimentos de 27 de Maio de 1977.

Por Carlos Pinho (*)

É falso que aquilo que então se passou tenham sido erros políticos. Este argumento não passa de um eufemismo para tentar lavar a imagem do genocida mor, que já antes, durante o período da guerra colonial e na condição de dirigente máximo do MPLA, era useiro e vezeiro em eliminar, sempre que possível, fisicamente inimigos e opositores políticos.

E não me venham com as habituais culpas relativamente à colonização. Os colonos têm sempre as costas quentes e são os responsáveis primeiros por tudo o que de mal passou a acontecer em Angola depois da independência. Não, o que havia era uma situação difícil criada em parte como o resultado de uma descolonização muito mal feita e que deixou no país muitas sequelas. Sequelas que se ainda mantêm hoje em dia.

Segundo a entrevista, primeiramente houve erros políticos de entidades políticas, as quais segundo reza o texto, contestaram e atentaram contra o regime estabelecido. Mentira! O correcto seria, neste último ponto, dizer-se com honestidade e coragem, contra o regime estabelecido pela força das armas e contra a vontade da maioria da sociedade existente na altura 1974/1975, em Angola. Mas honestidade e coragem são atributos inexistentes na Angola actual, tão querida ao MPLA.

E então consequentemente, e voltamos ao artigo, os erros políticos iniciais, levaram a um segundo erro político, o das autoridades. Mentira! A intenção inicial das autoridades, consubstanciadas pelo presidente genocida, era levar a cabo mais uma limpeza, procedimento recorrente por parte do cavalheiro. A oportunidade era excepcional e havia que aproveitá-la devidamente. E foi o que se fez! É cínico dizer-se isto, mas infelizmente foi assim. À mistura, bandos de oportunistas resolveram actuar por motu próprio, se bem que com o beneplácito do genocida mor, e como tal sem perdão.

O cúmulo da hipocrisia e falta de vergonha que esta entrevista mostra está precisamente na frase “(…) pessoas que estiveram envolvidas na defesa do regime e que se envolveram no erro político de má gestão da crise são também vítimas.”. Só mesmo em Angola é que os algozes passam à categoria de vítimas! E se meros bandidos e assassinos passaram à condição de defensores do regime, então é porque de um regime de torturadores e assassinos se tratava.

Trata-se de uma tentativa desonesta, despudorada, de limpar à força a reputação de tais algozes sem escrúpulos que se aproveitaram da situação para acertarem contas pessoais, darem largas aos seus maus instintos e procedimentos desonestos. E que hoje em dia continuam a rir-se daquilo que fizeram.

Nesta entrevista, estamos perante um indivíduo que se considera um jurista há muitos anos e que na verdade não passa de um corsário da “pseudo-lei”. Sim, um pirata que ao serviço das autoridades que serve, sejam estas legais ou ilegais, porque muitas na sombra do partido, assume uma acção de pirataria e de saque, tal e qual os piratas de séculos passados, suportados pelos governos para atacarem os seus inimigos. Esses piratas eram denominados corsários. Nos tempos actuais continua a haver corsários, se bem que mais refinados. Atacam impunemente o bom nome dos torturados e assassinados. Uns calam-se porque temem pela própria vida e os outros já não se podem defender.

É interessante notar que esta entrevista foi publicada na data da efeméride da revolta militar que implantou o Estado Novo de cariz fascista em 28 de Maio de 1926 em Portugal, e logicamente em Angola, na altura sua colónia. O regime protofascista do MPLA parece não conseguir fugir ao seu desiderato histórico.

Mais ironia ainda é que eu tinha acabado de ler, de rajada, no domingo passado, dia 31 de Maio, o livro “Estação das Chuvas” de José Eduardo Agualusa, onde o autor se “apropria dos factos históricos ocorridos em Angola no período de lutas pela independência e também nos anos que se seguiram a ela” (Fabiana Tibério, Revista Línguas & Letras – Unioeste – Vol. 14 – Nº 27 – Segundo Semestre de 2013, ISSN: 1981-4755). Nesta obra, Lídia, a protagonista fictícia criada pelo autor, refere precisamente as reviravoltas, lutas e abusos consequentemente perpetrados com a anuência do genocida mor, durante o período da guerra colonial. E a história de Lídia lá continua passando pela prisão, assim como a do jornalista-narrador do livro, lá pelos idos de Maio de 1977. Após a leitura deste romance, sou confrontado com a maravilha de cinismo e hipocrisia que é a entrevista do Ministro Francisco Queiroz. Dá asco Senhor Ministro! Muito asco!

Eu sei que o que está referido no parágrafo anterior remete para um romance, mas caso queiram levar isto mais a sério sugiro aos leitores em geral, e ao Ministro Francisco Queiroz em particular, a obra “Holocausto em Angola” de Américo Cardoso Botelho (Editora Nova Veja, Lisboa, Portugal). Talvez assim o Senhor Ministro ganhe vergonha na cara e se deixe de atoardas, como as proferidas na sua entrevista.

Senhor Ministro Francisco Queiroz, em Portugal há um ditado que reza assim “Tão ladrão é o que rouba, como o que vê e deixa roubar”. Pois eu proponho uma versão actualizada e angolanizada do mesmo, “Tão genocida é o que tortura e mata, como aquele que a posteriori por via de truques de retórica tenta justificar tal procedimento”. Penso que V. Exa. ficará imensamente feliz na sua prosápia jurídica, se este novo ditado vier a fazer carreira de sucesso em Angola.

O Presidente João Lourenço errou ao afirmar que muitos dos principais escolhos ao desenvolvimento de Angola se deviam a marimbondos. Não, Senhor Presidente, o Senhor está muito errado! Não são marimbondos, são mabecos que atacam em bandos. Ao pé deles os marimbondos não passam de bichinhos simpáticos.

Infelizmente o Senhor Presidente não consegue ver-se livre de tais quadrúpedes. Tem-nos à perna. Não lhe gabo a sorte.

(*) Professor da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

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