O relapso de José Eduardo
dos Santos e de seus iguais

Após ter governado em regime de terror e de ortodoxia partidocrática, José Eduardo dos Santos (JES) deixa o partido na desorientação, a vida socioeconómica do país em “coma” e “caos”, sem sinais de vitalidade; e, na sua queda, despede-se dos militantes, como o tombo de um gigante com pés de barro.

Por José Marcos Mavungo (*)

JES deixou hoje, 8 de Setembro, a liderança do MPLA, depois de quase 39 anos de Presidência. Os 38 anos do seu consulado à frente do país vão ficar na história, como sendo afro-estalinistas. Para além de recorrer à força e astúcia, de governar o país com mão de ferro, o passivo do ex-Presidente de Angola ficará também no registo histórico angolano, como sendo o marco de falta de visão estratégica do processo de desenvolvimento de Angola, entre a herança dos desvarios da sua família biológica e política e as exigências éticas do Estado de Direito Democrático e do combate à exclusão social.

O ciclo que termina no MPLA com a saída de JES é iníquo – somos reportados a um período escaldante, mortífero, de abusos de poder, de fracasso económico e de grave exclusão social. Se Angola deve-lhe o grande serviço de ter conquistado uma paz precária, com assombrosa energia e com empolgantes músculos, a governação eduardista será sempre recordada como a de um ditador intolerável que promoveu muito genocídio e impunidade, ordenou prisões pelo simples «fait du prince» (como se dirá em França), escravizou e empobreceu o seu povo. Ficará também nos registos da história do mundo a sua política externa e agressiva e a forma como lidava com países como a República do Congo Brazzaville e a República do Congo Democrático (1997-1998), onde exerceu violência, colocou no poder governos dóceis, causou saque dos bens das populações, deixou cidades em ruínas.

Em todos os sentidos de justiça o político JES assemelha-se ao lendário «Louvoumbou» de que nos canta o músico congolês François Luambo Makiadi “Franco” (1938-1989), esse personagem que constituiu uma grande família–nação (Usala dikanda), mas que, por uma estranha lógica que ignora o valor da vida humana, virou «Louvoumbou Ndoki» (Louvoumbo – feiticeiro), que devorava (umanissa mu kudia) os filhotes/sobrinhos que lhe nasciam das entranhas. Se o mundo tivesse instituições fortes, o Senhor José Eduardo dos Santos seria julgado por crimes cruéis contra a humanidade.

Com esta caída nas malhas de crimes de lesa humanidade, JES, e outros políticos da sua igualha, em Angola e no mundo, deveriam deixar de falar, permanecer num mutismo ensurdecedor. Porém, os seus muito bem pagos advogados de defesa, sempre à mão de semear, tornaram-se nuns verdadeiros papagaios, sabendo mais da vida dos incriminados do que os próprios, pois estes, coitadinhos, perderam a memória. Pois perante tanta demência generalizada, como acabar com a corrupção, as detenções arbitrárias, o assassinato de pacatos cidadãos e outros crimes em Angola, se o sistema ainda continua a defender tal flagelo?

E isso – para quem tem vocação humanista, para estes espíritos animados por erguer pontes de Justiça, Fraternidade e Paz – é um mau exemplo para a humanidade, porque os “encostados” à fama do poder e aos “privilégios do dinheiro e das honras” já deviam ter começado a aprender que a fama e a verdadeira riqueza constroem-se todos os dias na “boa governação” da “liderança sábia”, que exerce no país o direito e a justiça; e que os grandes homens nunca erguem os seus punhos para ninguém e jamais exercem actos de barbárie por mais que fossem provocados, humilhados e atacados, e que se esforçam por servir a “nação” através do poder da benevolência, em simplicidade e equidade, julgando as populações com “justiça” e protegendo “os humildes do povo”.

Hoje, por falta destes grandes homens no poder, Angola é um país exposto a “propósitos de rapina”, sustentados por “um autoritarismo e feroz despotismo feudal”, pelo qual uma oligarquia capitalista opulenta ligada à família biológica de JES e ao partido no poder se coloca acima da lei e num claro conflito de interesses, e retira lucros colossais dos proveitos da exploração do petróleo, gás, diamantes e madeira enquanto os cidadãos comuns enfrentam défices colossais nos serviços públicos, meios de subsistência e governação legítima.

Hoje, Angola é um país configurado por uma deriva da corrupção política, assumindo a forma de uma repugnante cleptocracia, que reduz as populações à uma vida caótica e indigna. Assim, apesar do famoso slogan “corrigir o que está errado e melhorar o que está bom”, o grau de corrupção, em crescendo, ao longo destes 38 anos do eduardismo, continua a alimentar a postura mental de tal maneira que a ideologia do regime mantém o abastecimento da «gasosa» dos agentes da polícia e dos elementos da administração pública e da justiça, dos Ferraris dos Juízes dos Tribunais Superiores, dos Lexus dos Deputados, dos Mercedes dos Ministros, para além de outros esbanjamentos do dinheiro público que engordam as contas do terciário do regime em detrimento dos sectores primário e secundário, acentuando assim os níveis de extrema pobreza e de fome das populações.

Os números conhecidos da recente viagem do Presidente da República (PR) à França, à Bélgica e às Astúrias substantivam de forma eloquente o nível a que atingiu a hipertrofia do terciário que continua a marcar a postura mental dos homens do regime nestes últimos 38 anos: JLo viajou a bordo de “Dream Jet” (Jato de sonhos), um Boeing 787-BBJ, cujo aluguer está no valor de 70 mil dólares por cada hora que está no ar.

Finalmente, JES lega ao novo PR, João Lourenço (JLo) um país com uma Governação marcada pela relação explosiva com as vozes discordantes, pela apertada censura e controlo policial, e pela promiscuidade do político no campo jurídico (falta da cultura da lei) e pela institucionalização de questões tabu, entre as quais «os crimes políticos» (secretismo sobre centenas de milhares de cidadãos barbaramente assassinados, pelo menos 30.000 com o pretexto de tentativa de golpe de 27 de Maio de 1977 – e.g. Nito Alves, José Van Dúnen -, e os outros em situação de guerra ou de pleno exercício do seu direito de cidadania – e.g. Alves Camulingue, Isaías Cassule e Manuel de C. Hilberto Ganga) e a «Questão de Cabinda».

Além disso, o sistema do ensino é partidarizado e muito débil; o sistema sanitário se revela decadente; e os números da economia do país nos transportam para um universo de bancarrota, de excessiva dívida soberana (70,8% do PIB, segundo o Jornal de Angola), que pode «hipotecar as gerações futuras»(Ministro das Finanças, Archer Mangueiras ), e de sérios desequilíbrios dos agregados macroeconómicos, cuja solução não está à vista.

Todos estes aspectos fazem que Angola tenha hoje o paradoxo da maioria das pessoas a viver na miséria num país potencialmente rico, com valores económicos aliciantes, mas que, nestes últimos anos de paz e de governação do MPLA, ficou na cauda de rankings mundiais como Desenvolvimento Humano, Mortalidade Infantil, corrupção do Ambiente de negócios, na condição de 70 % da população a viver com menos 2 dólares por dia, tudo isto ficando para o historial do Ex-Presidente JES.

Assim, JES deixa o poder de forma indigna; e, como político, se despede dos militantes do partido em perturbação e do seu povo «desgarrado em anos de vacas magras». Certo, a saída não foi enfrentada por conflito armado ou por uma marcha violenta, como foi o caso de Mobuto (1997) e Mugabe (2017), na catual República Democrática do Congo (RDC) e no Zimbabué, respectivamente; mas a mansidão dos angolanos não duraria, e a sucessão vertiginosa dos acontecimentos nestes últimos 12 meses de governação de JLO – o incremento da crise e as mudanças profundas nos mitos sociais (que questionam o mito do lider vitalício e visionário), as exonerações da família real eduardista de posições-chave na governação do país, os processos judiciários intentados contra uma boa parte da classe política dominante, e a crescente contestação social da governação de JES (incluindo a dos próprios militantes no seio do MPLA), etc.-, tudo isto constitui uma marca violenta sem precedentes, o que não deixa de emprestar uma certa imagem de terramoto político.

Se o ruído de JES nestes 38 anos de seu consulado fez-lhe grande fama, a verdade é que não se esperou que a sua saída fosse semelhante ao tombo de um gigante, que deixa a maioria dos angolanos em condição de pobreza abjecta, minando assim a coesão social e a reconciliação nacional. E o terramoto à volta deste tombo faz recordar o famoso sonho que atormentava Nabucodonosor, rei da Babilónia (Dn 2, 32- 34), em que contemplava “uma enorme estátua”, «quando uma pedra se desprendeu da montanha, sem intervenção de mão alguma, e veio bater nos seus pés, que eram de ferro e argila, e lhos esmigalhou» (Dn 2, 34).

(*) Activista dos Direitos Humanos

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