A adjudicação pelo Governo angolano de empreitadas financiadas por linhas de crédito externas vai ser coordenada por uma comissão técnica de acompanhamento, criada este mês por decreto presidencial.
Só empresas chinesas preparam-se para construir e reabilitar mais de 2.200 quilómetros de estradas em Angola, por serem obras financiadas pela Linha de Crédito da China (LCC), mas com estas obrigadas a subcontratar empresas angolanas.
O decreto que cria Unidade Técnica de Acompanhamento de Projectos com Financiamento Externo (UTAP) justifica a decisão com necessidade de “garantir a gestão eficiente dos recursos externos disponibilizados por linhas de crédito para financiamento de projectos públicos”, nomeadamente “através da monitorização, supervisão, preparação e execução dos projectos individuais, tanto financeira como física”.
Relembre-se que a UTAP é uma entidade administrativa dotada de autonomia administrativa, sob a tutela do Ministério das Finanças, que assume responsabilidades no acompanhamento global dos processos de Parceria Público-Privada (PPP) e assegura apoio técnico especializado, designadamente em matérias de natureza económico-financeira e jurídica.
A UTAP tem como principal missão participar na preparação, desenvolvimento, execução e acompanhamento global de processos de PPP, prestando, nesse âmbito, ao Governo e a outras entidades públicas, o necessário apoio técnico especializado.
A UTAP visa ainda a acumulação e concentração de experiência no sector público na área das PPP, bem como o aperfeiçoamento e optimização dos meios técnicos e humanos ao dispor dos entes públicos nesta modalidade complexa de contratação, à semelhança do que se verifica em vários países da União Europeia e do resto do mundo, tendo por objectivo eliminar a dispersão de múltiplas tarefas por diferentes entidades.
O documento não refere qualquer linha de crédito específica, mas o financiamento da China, atribuído em 2015, é actualmente o mais relevante nas contas angolanas e a sua aplicação, exclusivamente com empresas chinesas, tem motivado a preocupação dos industriais angolanos.
O plano operacional da LCC a Angola, elaborado pelo Governo angolano com as obras a realizar pelas empresas chinesas ao abrigo deste financiamento, avaliado em 5,2 mil milhões de dólares, prevê 155 empreitadas em vários sectores.
Só para a área da construção estão previstos neste plano 33 projectos, que totalizam 213,7 mil milhões de kwanzas (1,1 mil milhões de euros) para 2.242 quilómetros de estradas.
“Queremos ver placas. Quem é a empresa construtora, quanto custa a obra, quando começa e quando acaba. É assim que se faz quando se faz com transparência em qualquer parte do mundo”, afirmou, em entrevista recente à Lusa, o presidente da Associação Industrial de Angola, José Severino.
Apesar de obrigadas à subcontratação local, a AIA prevê que as grandes empresas chinesas a que o Estado angolano já começou a adjudicar estas empreitadas recorram apenas a empresas mais pequenas, já instaladas em Angola, mas também chinesas.
“Costumamos dizer que quem não tem cão, que é o fiel amigo, caça com gato. Mas aqui nós temos é um dragão. E obviamente que somos todos caçados e engolidos”, criticou o líder dos industriais angolanos.
A UTAP assume que vai “validar previamente os pedidos de desembolso” de fundos, a realizar sob responsabilidade da Unidade de Gestão da Dívida Pública, “tendo em consideração o nível de execução física do projecto em causa”.
Deverá igualmente, segundo o mesmo decreto, “identificar eventuais constrangimentos” e promover a sua “resolução atempada”, bem como “acompanhar permanentemente a execução dos projectos financiados pelas linhas de crédito”, entre outros objectivos e atribuições.
Já somos (meio) chineses
Angola recebeu da China, desde o final do ano passado, oito mil milhões de dólares em empréstimos para financiar projectos, o que vai elevar o rácio da dívida sobre o Produto Interno Bruto para quase 60%.
De acordo com a agência de notação financeira Fitch, “o Governo escolheu financiar o défice principalmente pelo aumento da dívida em vez de recorrer às almofadas orçamentais”.
Só da China, dizem os analistas, “Angola recebeu 8 mil milhões de dólares, em empréstimos para projectos desde o final do ano passado, o que vai levar a que a dívida pública chegue perto dos 60% no final deste ano, uma subida face aos 24,5% de 2013, e acima [dos países com o mesmo nível de “rating” de Angola] cuja média está nos 56%”.
A subida do nível da dívida pública é uma consequência directa da descida dos preços do petróleo, a partir de meados de 2014, que afectou decisivamente a economia de Angola, que depende desta matéria-prima para financiar o desenvolvimento económico e as altas taxas de crescimento que registou na última década. Indirectamente é uma consequência da inexistência da diversificação económica, há décadas defendida quer por analistas internos quer externos.
“O sector petrolífero mantém algum dinamismo (a produção chegou em média aos 1,76 milhões de barris por dia em 2016), mas a Fitch espera que a economia cresça zero em 2016, descendo dos 3% em 2015 e com a pior performance em 14 anos (desde 2002, fim da guerra civil)”, lê-se no documento.
Por outro lado, “os pagamentos de juros em percentagem das receitas também deverão aumentar fortemente para mais de 14%, o dobro dos níveis do ano passado”, e é também provável que o crédito mal parado, que no primeiro trimestre estava quase nos 20%, suba ainda mais.
Angola foi o país africano que mais beneficiou de empréstimos concedidos pela China, ultrapassando os 12 mil milhões de dólares, desde 2000.
O principal receptor das linhas de crédito abertas por Pequim foi o sector transporte e armazenagem, que absorveu 20% do montante global. Logo a seguir surge a produção e abastecimento de energia, que recebeu 18% do crédito chinês.
Governo e sociedade civil, comunicações e abastecimento de água e saneamento, que, no conjunto, acederam a 667 milhões de dólares, surgem no fim da lista.
Depois de a guerra civil em Angola ter acabado, em 2002, a China tornou-se um dos principais, ou mesmo o principal, actores da reconstrução do país, nomeadamente das suas estradas, caminhos-de-ferro e outras infra-estruturas.
Em troca, o país asiático “obteve condições favoráveis para a exploração de minérios”. A China é o maior importador do petróleo angolano, mas, devido à queda do preço daquela matéria-prima, o valor das exportações angolanas para o mercado chinês diminuiu cerca de 50%, em 2015, para 15,98 mil milhões de dólares.
Entre as nações africanas mais beneficiadas pelos empréstimos chineses surgem ainda o Sudão, Gana e Etiópia.
A maioria dos principais receptores são países ricos em recursos naturais – incluindo petróleo, diamantes e ouro – e muita da ajuda chinesa serve para tornar essa riqueza acessível para exportar.
País mais populoso do mundo, com cerca de 1.375 milhões de habitantes, a China registou nas últimas três décadas um ritmo médio de crescimento económico de 10% ao ano, transformando-se no maior consumidor de quase todo o tipo de matérias-primas.
Desde 2009, o “gigante” asiático tornou-se o principal parceiro comercial do continente africano.
Em Dezembro passado, o Presidente chinês, Xi Jinping, anunciou em Joanesburgo que ia conceder 60 mil milhões de dólares em assistência e empréstimos aos países africanos, nos próximos anos. Segundo estimativas ocidentais, vivem em África um milhão de chineses, dos quais um quarto – 250.000 – em Angola.
Um exemplo recente
Em Maio deste ano, o Governo de sua majestade o rei José Eduardo dos Santos autorizou o Banco da China a abrir uma sucursal em Angola, para desenvolver actividades financeiras e bancárias.
A autorização consta de um decreto assinado por José Eduardo dos Santos, de 13 Maio, que adianta que a instituição detida pelo Estado chinês vai operar no país com a designação Banco da China – sucursal em Angola.
A decisão sobre a abertura da sucursal angolana do Banco da China surgiu numa altura de fortes constrangimentos no país devido à crise da cotação do petróleo, nomeadamente no acesso a divisas, colocando em causa transferências para o estrangeiro ou a importação de matéria-prima.
O governador do Banco Nacional de Angola (BNA), Walter Filipe, reconheceu que a banca do país está a ser colocada “à margem” do sistema financeiro mundial, numa aparente alusão à falta de acesso dos bancos angolanos ao circuito internacional de divisas, por dúvidas dos reguladores internacionais sobre credibilidade das instituições angolanas.
Para Walter Filipe, é necessário colocar “ética e moral” na banca angolana, devendo esta ser colocada ao “serviço do bem comum”.
“Devemos fazê-lo implementando em Angola as normas prudenciais e as boas práticas nacionais e internacionais, e todas as normas de combate ao branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo, porque estamos a ficar numa situação em que está a ser colocado o sistema financeiro angolano à margem do sistema financeiro mundial. E isto é grave para a prosperidade das nossas famílias”, apontou.
Criada em 1912, o Banco da China funcionou até 1949 como banco central chinês. Após várias transformações, ainda nas mãos do Estado mas já como banco comercial, tem vindo a concentrar atenções no apoio às empresas e comunidades chinesas fora do país, com destaque para as economias emergentes.
No dia 12 de Outubro de 2015 foi noticiado que os bancos centrais de Angola e da China estavam a acertar os pormenores de um acordo que para permitir o uso das moedas nacionais de ambos os países, nas trocas comerciais bilaterais.
O acordo, cujo anúncio da sua negociação foi feito em Agosto de 2015, pela então ministra do Comércio de Angola, Rosa Pacavira, irá permitir que os agentes económicos de ambos os países possam usar a moeda chinesa em Angola e a angolana na China, facilitando as trocas comerciais.
O objectivo passa por garantir que as transacções entre a China e Angola se faça sem recurso a uma terceira moeda.
Recorde-se que a Economist Intelligence Unit (EIU) considera que o aprofundamento das relações económicas entre Angola e China é mutuamente positiva, mas é dificultada pelos altos custos de fazer negócios no reino de sua majestade o rei de Angola e pelo abrandamento chinês.
“Ambos os países gostam de falar muito da sua relação mutuamente vantajosa, e ambos certamente têm algo a ganhar se avançarem para além do tradicional modelo de crédito estatal, mas estas boas intenções devem primeiro superar as dificuldades e os altos custos de fazer negócios em Angola, e podem ser abrandadas pelo próprio abrandamento económico da China”, escreve a EIU.
Folha 8 com Lusa