Ocultar a verdade é crime

A viúva de António Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, lamentou hoje que ainda ocorram no país detenções por se pensar diferente. Como vão longe os tempos do 27 de Maio de 1977, não é Maria Eugénia Neto?

Maria Eugénia Neto falava à imprensa, em Portugal, à margem do lançamento do livro “Cartas de Maria Eugénia a Agostinho Neto”, obra em que estão transcritas 184 cartas trocadas pelo casal, entre 1955 e 1957, altura em que se encontrava detido.

Segundo Maria Eugénia Neto, a obra traz essencialmente “o apoio que foi dado a um preso político e angolano e que o ajudou a aguentar a cadeia e acreditar na solidariedade e no amor”.

Instada a comentar o paralelismo da situação de há 60 anos e os dias de hoje, feita durante a apresentação do livro, pela activista e comentadora sócio-política Alexandra Simeão, Maria Eugénia Neto lamentou que haja presos em Angola por situação semelhante.

Alexandra Simeão lamentou durante a apresentação do livro a “quantidade de mulheres, mães, esposas, filhas, que tenham sentido e que ainda sintam” o mesmo que Maria Eugénia – “tristeza de ver alguém que se ama sofrer apenas porque se pensa de forma diferente, apenas porque não concorda e decida sair da normalidade conformista, que exige que se aceite tudo sem questionar”.

“Acho que se devia falar, acho que se devia fazer como antigamente, que o partido mandava as suas orientações às bases, as bases viam o que é que estavam de acordo, o que é que não estavam, diziam, as coisas subiam ao bureau político e o bureau político tentava satisfazer todos e enquadrar as coisas conforme conviesse ao povo. Acho que o povo dava uma grande contribuição e ajudava os políticos”, referiu a viúva do falecido presidente do MPLA.

Por sua vez, Irene Neto, filha de Maria Eugénia e Agostinho Neto, considerou que o livro serve para reflexão “sobretudo quando há situações que têm muita semelhança com esta até hoje em todos os países, não só em Angola”.

“De facto foi a abordagem de Alexandra Simeão, é do conhecimento público que há situações muito parecidas, mas é preciso ver as conjunturas, saber examinar as questões, mas penso que acima de tudo é preciso que haja vontade política de mudar o que está mal”, disse Irene Neto.

Irene Neto disse que são muito difíceis as mudanças e geram sempre conflitos entre gerações, mas “há que haver diálogo e sobretudo com senso, porque o interesse da nação deve ser o valor fundamental”.

“Nós todos queremos que a vida em Angola seja o melhor possível, que os nossos filhos, netos, a descendência toda tenha uma vida melhor do que nós já tivemos. Se há incompreensões é preciso falar, se há dificuldades é preciso dialogar e penso que é o único caminho que nos resta, não vamos entrar em confrontação e dar cabo uns dos outros como já aconteceu no passado, penso que a geração mais nova não está com vontade de repetir estas situações nem os mais velhos”, frisou a deputada à Assembleia Nacional pelo MPLA.

Ai essa memória!

Em Maio de 1977, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o MPLA estava a tomar. Neto reagiu pondo a razão da força acima da força da razão. Havia que evitar que os ‘nitistas’ chegassem ao Congresso, anunciado para finais de 1977 porque existia o sério risco de conquistarem os principais lugares de direcção.

A preocupação de Neto e dos seus era, pois, o poder. E pelo poder fariam tudo. Tal como hoje faz o seu sucessor, José Eduardo dos Santos.

Na versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma “tentativa de golpe de Estado” por parte de “fraccionistas” do movimento, cujos principais “cérebros” foram Nito Alves e José Van-Dunem, versão que seria alterada mais tarde para “acontecimentos do 27 de Maio”.

Nito Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada pelo actual Presidente, José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido.

As conclusões desta comissão nunca chegaram a ser divulgadas publicamente mas, segundo alguns sobreviventes, revelariam que não existia fraccionismo no seio do MPLA.

O próprio José Eduardo dos Santos e o primeiro-ministro de então, Lopo do Nascimento, seriam também alvos a abater pela cúpula do MPLA. O actual Presidente terá sido salvo pelo comissário provincial do Lubango, Belarmino Van-Dúnem.

Os apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, e que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do partido e os media, em especial o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a manifestação convocada por Nito Alves foi “um contra-golpe”.

A purga no MPLA liderada por Agostinho Neto atingiu enormes proporções, sendo que o número de militantes do MPLA, depois das depurações, baixara de 110.000 para 32.000.

Em relação ao número de mortos… não se sabe ao certo. Foram milhares. Talvez entre 30 mil e 80 mil.

Em Abril de 1992, o governo angolano reconhece que foram “julgados, condenados e executados” os principais “mentores e autores da intentona fraccionista”, que classificou como “uma acção militar de grande envergadura” que tinha por objectivo “a tomada do poder pela força e a destituição do presidente Agostinho Neto”.

As principais responsabilidades do 27 de Maio recaem por inteiro sobre Agostinho Neto que não se preocupou com o apuramento da verdade, dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias mãos.

O então Presidente da República acabaria por se revelar o chefe duma facção e não o árbitro, o unificador. Dominado pela arrogância, pela inflexibilidade e pela cegueira, foi incapaz de temperar a justiça com a piedade.

Graças a esta acção de Agostinho Neto, Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes, intelectuais e estudantes universitários.

Os vencedores do 27 de Maio parece terem conseguido o milagre de fazer desaparecer os que sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os angolanos, tendo Neto imposto no país um clima de medo e de violência porque falar do 27 de Maio se tornou um tabu.

Folha 8 com Lusa

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