E O POVO A PASSAR FOME

A empresária angolana Isabel dos Santos viu hoje rejeitado pela justiça britânica um recurso para contestar o congelamento de bens a nível mundial no valor de 580 milhões de libras decretado no ano passado.

Numa decisão do Tribunal de Recurso publicada hoje, um colectivo de três juízes decidiu por unanimidade recusar o requerimento para avançar com um recurso, favorecendo a empresa Unitel (fundada por Isabel dos Santos), agora controlada pelo Estado angolano, que tinha pedido uma ordem de congelamento de bens.

Em causa estão empréstimos feitos pela Unitel, a maior empresa de telecomunicações móveis de Angola, fundada em 1998 pela filha do antigo Presidente José Eduardo dos Santos, no valor de 323 milhões de euros e 43 milhões de dólares (38,5 milhões de euros no câmbio actual) entre 2012 e 2013 à Unitel International Holdings B.V. (UIH), ‘holding’ detida pessoalmente por Isabel dos Santos.

A Unitel, da qual a empresária foi directora até 2020, iniciou uma acção judicial contra a UIH em 2020 para recuperar o dinheiro porque os pagamentos para o reembolso dos empréstimos tinham parado alguns meses antes, à qual associou o nome de Isabel dos Santos.

Em Dezembro de 2023, o juiz Robert Bright deu razão à Unitel e decretou uma ordem mundial de congelamento de bens da empresária no valor de 580 milhões de libras (697 milhões de euros) para cobrir juros de mora e indemnização por danos, além de condenar a empresária a pagar custas judiciais.

Isabel dos Santos tem contas e activos arrestados em vários países na sequência de processos judiciais que correm em Angola e noutras jurisdições.

Na altura, o juiz deu conta de que os bens de Isabel dos Santos estavam afectados por ordens de congelamento noutras jurisdições, pedidas pelo Estado angolano, pela PT Ventures SGPS S.A., uma empresa portuguesa detida pela empresa petrolífera estatal (do MPLA) angolana Sonangol, e pela Unitel.

A Unitel pertence na totalidade ao Estado/MPLA angolano depois deste ter nacionalizado em 2022 as participações de 25% da Vidatel e de 25% da Geni que eram detidas pela empresária Isabel dos Santos e pelo general Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino”.

Entre os activos identificados pelo Tribunal Comercial de Londres em Dezembro de 2023 estavam bens imóveis no Reino Unido, com um valor de até 33,5 milhões de libras (40 milhões de euros), no Mónaco, no valor de 55 milhões de dólares (49 milhões de euros), e no Dubai (onde Isabel dos Santos vive), no valor de 40 milhões de dólares (36 milhões de euros).

No mesmo processo foi referida a existência de várias contas bancárias no Reino Unido, Angola, Portugal, Ilhas Virgens Britânicas, África do Sul e África do Sul, e destacado o valor das acções da UIH na ‘holding’ ZOPT, accionista da empresa de telecomunicações NOS, congeladas a favor da Unitel após um processo em Portugal.

Filha do ex-presidente angolano durante 38 anos e antes considerada a mulher mais rica de África, Isabel dos Santos, que vive fora de Angola há vários anos, é acusada de 12 crimes num processo que envolve a sua gestão à frente da petrolífera estatal Sonangol entre 2016 e 2017.

O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou 2020 mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de Luanda Leaks, que detalham alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, entretanto falecido, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais.

Isabel dos Santos tem sempre afirmado a sua inocência, acusando a (suposta) justiça angolana de forjar provas, e diz ser vítima de perseguição política movida pelo actual Presidente, João Lourenço, o que aliás é comummente comprovado desde que o general-presidente chegou ao poder em 2017, por imposição do próprio pai de Isabel dos Santos.

Recorde-se que Isabel dos Santos acusou em Maio de 2020 Angola e Portugal de terem usado como prova no arresto de bens um passaporte falsificado, com assinatura do mestre do kung-fu e actor de cinema já falecido, Bruce Lee.

Segundo um comunicado da empresária, o Estado angolano terá usado como prova para fazer o arresto preventivo de bens “um passaporte grosseiramente falsificado, com uma fotografia tirada da Internet, data de nascimento incorrecta e uso de palavras em inglês, entre outros “sinais de falsificação”.

“Os factos e imagens falam por si. A verdade hoje chega ao de cima sobre o fraudulento processo de arresto, baseado em provas forjadas e falsificações. Contra factos não há argumentos. Um “Passaporte Falso” foi dado pelo Tribunal como sendo meu”, afirmou Isabel dos Santos. Não era de Isabel dos Santos, mas… parecia.

O passaporte em causa terá sido usado como prova em tribunal pela Procuradoria-Geral da República de Angola (sucursal do MPLA) para demonstrar que Isabel dos Santos pretendia ilegalmente exportar capitais para o Japão, alegou a filha do antigo Presidente angolano José Eduardo dos Santos e alvo a “abater” na suposta luta contra a corrupção encetada por João Lourenço.

A empresária acusou a PGR que desde sempre foi uma sucursal do MPLA e não um organismo independente ao serviço de Angola, de fazer uma “utilização fraudulenta do sistema de justiça de Angola” para se apoderar do seu património empresarial e apela à justiça portuguesa, que decidiu cooperar servil e cegamente com o MPLA, e executou vários arrestos em Portugal, para que “à luz desta denúncia e de outras que se seguirão, “reavaliar estas execuções às cegas”.

Independentemente das teses da PGR do MPLA e de Isabel dos Santos, parece cada vez ais claro que todo o processo, para além de mostrar que os seus pés de barro estão a desmoronar-se, é um acerto de contas mal feito e politicamente letal para as partes envolvidas. E se parece…

“Arrestar não só os bens pessoais, como o produto de contas bancárias, mas os activos que constituem o império económico e financeiro de Isabel dos Santos em Portugal, como a NOS, o EuroBic ou a Efacec, é fundamental para começar a desmontar este império sujo que Isabel dos Santos criou com enorme cumplicidade das autoridades políticas e regulatórias portuguesas”, afirmou na altura João Paulo Batalha, presidente da direcção da Associação Cívica Integridade e Transparência, no dia 15 de Abril de 2020 à DW, comentando a decisão da justiça portuguesa, tomada em Março, de congelar as participações da filha do ex-Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, em empresas como a NOS e Efacec.

Para João Paulo Batalha, este era um passo importante para evitar que Isabel dos Santos fuja com o referido património e se ponha a salvo da justiça, quer portuguesa quer angolana. Em Janeiro deste ano, as autoridades angolanas solicitaram a colaboração da justiça portuguesa para o arresto das participações que Isabel dos Santos detém nas sociedades NOS, Efacec e no Eurobic, como via para obter garantia de retorno patrimonial de 1,2 mil milhões de dólares (cerca de 1,15 milhões de euros).

Certo é que este é um imbróglio que não consegue separar o que é da justiça e o que é da política: De certa forma, a justiça portuguesa está a ser instrumentalizada pela PGR de Angola.

Em Abril de 2020, a Winterfell, empresa de Isabel dos Santos que controlava a Efacec, acusou a justiça angolana de provocar “danos injustificáveis” às empresas portuguesas e estar a usar indevidamente a justiça em Portugal para “fins não legais e desproporcionais”.

Em comunicado citado pela agência Lusa, a empresa salientou na altura que a justiça angolana, além de ter arrestado bens num valor superior ao suposto crédito reclamado a Isabel dos Santos (1,1 mil milhões de euros), dá um tratamento diferente a empresas portuguesas e angolanas, solicitando medidas judiciais em Portugal que não foram aplicadas em Angola.

Como exemplo, a Winterfell lembra que, em Angola, “o procurador não solicitou o bloqueio das contas das empresas, nem impediu que fossem pagos salários, rendas, impostos, água e luz”, enquanto em Portugal “pediu o bloqueio das contas, impedindo-as de operar e forçando a sua insolvência, levando ao despedimento de uma centena de trabalhadores”, situação agravada à época pela crise decorrente da pandemia de Covid-19.

A PGR angolana dá passos maiores do que a perna e não sabe como é que há-de descalçar a bota e nem repara que está descalça… E, portanto, está de alguma forma a tentar que a justiça portuguesa faça o trabalho que ela não consegue fazer.

O próprio processo movido contra Isabel dos Santos é um processo juridicamente mal feito e que politicamente tenta mostrar uma realidade que, de facto, não corresponde aos factos. Quer o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, quer a justiça portuguesa, em geral, não têm a noção de que este é um caso político, um acerto de contas mal feito por parte da PGR angolana.

João Paulo Batalha nas declarações à DW mostrou-se esperançado que seja possível devolver ao povo angolano grande parte dos activos desviados, mas considera também fundamental investigar a origem da fortuna de Isabel dos Santos e os crimes de corrupção, de favorecimento e de branqueamento de capitais que eventualmente lhe são imputados, respectivamente em Angola e Portugal. O presidente da Integridade e Transparência considerou que a justiça portuguesa continuava a agir de forma tímida e pedia mais investigação sobre as cumplicidades políticas e económicas que permitiram à filha primogénita de José Eduardo dos Santos ser tão bem recebida em Portugal e acumular o seu vasto património.

Em causa, afirmou, estavam “as responsabilidades não só de Isabel dos Santos, mas de toda esta rede que a ajudou a montar todo este império e que continua provavelmente activa no apoio a outras altas figuras do Estado angolano”, também elas com fortunas de origem suspeita ou desconhecida e que continuam a fazer negócios e a trazer para Portugal muita riqueza acumulada de forma suspeita.

Recorde-se que, na mesma altura, a plataforma Projecto de Investigação ao Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, sigla em inglês), revelou que mais de uma dezena de entidades de influência da elite angolana e seus familiares usaram o sistema bancário para desviar centenas de milhões de dólares para fora do país, incluindo companhias alegadamente associadas a Isabel dos Santos.

Folha 8 com Lusa

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