ANGOLAS

Uma das primeiras memórias que guardo comigo é com o meu pai acolhendo dois senhores que o haviam visitado. Estavam os três em pé, à entrada principal de casa, alongando saudações, atrofiando saudades. A dado momento, apercebi-me surpreendido pelo meu pai quando ordenou que eu lesse o que estava escrito na t-shirt de um dos senhores.

Por Fernando Kawendimba
Escritor

Era eu menor de cinco anos de idade. Ainda nunca tivera um boletim de matrícula nem havia saído para frequentar um estabelecimento de instrução. Talvez o meu pai tivesse de justificar aos seus eventuais amigos que não saíra de casa porque a sua ocupação primordial era alfabetizar-me.

O cenário onde ocorreu este facto era a nossa varanda, que nalguns horários e datas era uma varanda de aulas. A parede mais ao pé da porta gradeada exibia um quadro preto, qual peito sobre o qual o pai tatuara a giz um indelével alfabeto. Aprendi, então, a ler e contar, não na escola, a segunda casa, mas em casa, a primeira escola.

O meu pai orgulhava-se então de me ter ensinado e cabia a mim honrá-lo, com a simples atitude de provar aos seus potenciais convidados do dia que eu sabia ler, apesar da idade pré-escolar. Tímido, hesitei. Fiz uma leitura silenciosa, mas uma espécie de receio inibia-me a liberdade de expressão para pronunciar a palavra a ser lida. Com palavras de autoridade e olhares de autoritarismo, miraculosamente o meu velho sacou de mim a leitura feita em pensamento, provavelmente antes da sua solicitação: Paz em Angola.

À época, tudo quanto fosse legível e acessível à minha visão passava pela minha curiosidade – desde que fosse grafado com base no alfabeto português. A leitura do texto foi pretexto para eu interpretar o contexto da escrita na t-shirt e da oralidade na conversa dos adultos. Poucos anos depois, fui confirmando a hipótese de que o assunto principal era o estado da nação, à época um estado sólido no desejo, em função do Acordo de Bicesse, assinado entre o governo do MPLA e o partido UNITA. Poucos anos depois, não duvidaria que o meu pai, os seus amigos e muitos cidadãos angolanos alimentavam as suas malnutridas esperanças de viver num país de maravilhas.

Feita a vontade do meu pai, saí de cena daquele encontro de mais velhos. Mas a Paz em Angola segue sendo uma constante no meu coração e suas razões. Pela educação patriótica, moral e cívica recebida tendo como acento e assento a esteira doméstica, não soube não amar angola. Um amor por Angola que foi sendo sustentado pelo conhecimento geral das suas propriedades.

O território que mede um milhão e duzentos mil e quarenta e seis quilómetros quadrados é de uma beleza estética realmente fantástica, se observado no mapa ou presencialmente. Os seus contornos mantêm a sua bela forma por via do abraço mantido pela vizinhança garantida a este pela Zâmbia, a norte e a nordeste pela República Democrática do Congo, a oeste pelo Oceano Atlântico e a sul pela Namíbia.

Oficialmente fala-se o português, bem ou mal, mais ou menos. Entretanto, pelas dezoito províncias, as línguas africanas – por bem – resistem como sustento para o pensamento, as linguagens e a comunicação dos indivíduos, dos povos. Por força da colonização e, actualmente, também por robustez da negação e humilhação das culturas bantu de Angola por quem detém os poderes políticos, muitos angolanos das gerações mais recentes não têm sabido apreciar e vivenciar os valores formais de mulheres e homens do presente do nosso passado. Mal se fala o português, não se pensam e dispensam-se as línguas locais nos vários processos de ensino-aprendizagem, nas instituições sociais, nas relações interpessoais e intragrupais.

Aprende-se pouco e mal: umbundu – língua étnica própria dos Ovimbundu -, tchokwe, nhaneka, kwanhama, kimbundu, kikongo ou outra língua desconhecida por quem investiga e divulga. Os mais de trinta milhões de habitantes devem ser angolanos na diversidade de natureza e cultura, na consciência de auto-aceitação, na responsabilidade de conhecerem as histórias contadas por várias e livres vozes. Há uma herança genética perdida e achada em corpos vivos ou mortos de angolanos, assim como há toda uma herança cultural por reivindicar e estabelecer na vida em Angola.

A geração imediatamente anterior à nossa, a nação dos nossos pais, é aquela que participou da guerra, activamente ou não, consentindo ou não, esperançosa ou céptica. Ser angolano compreende essa diversidade de indivíduos e suas circunstâncias.

Provavelmente, aquele senhor que usava a t-shirt com a descrição Paz em Angola – aquele de quem falei no início – estava conectado ao país por “amor à camisola”. Assim como ele, não são poucos os que não colocam em questão a agradável aparência da bandeira nacional. Patriotas carregam-na na mão e no coração. Lamentável mesmo é que esta mesma bandeira nacional tenha representado angolas com febres – amarelas – de peculato, nepotismo, corrupção, branqueamento de capitais; angolas com faltas – vermelhas – de vestuário, segurança, saúde, residência, educação, alimentação; angolas com manchas – pretas – de tribalismo, desumanização, colorismo, analfabetismo.

O que a nossa bandeira tem significado para mulheres e homens política e economicamente poderosos que dia a dia ainda sepultam Angola no cemitério da miséria, da fome, da vã morte? Há muito que tem sido urgente a revisão das posturas de quem deve ou se diz representar o povo. Ninguém representa quem não conhece por falta de interesse e amor.

A gente vê, ouve ou lê em notícias, em épocas de eleições: uma comunidade que se faz praticamente numa localidade do nada, de ninguém, do nunca, é visitada por interesses no seu voto, recebe alguns valores de ordem material como oferta em nome do seu poder eleitoral e agradece. U kapandula otchiliangu, ou seja, quem não agradece é feiticeiro. Bem, o povo expressa gratidão porque não é feiticeiro. Mas por que mais manifestaria gratidão quando se lhe entrega o que devia ter conquistado por si, o que é seu por direito, o que nunca devia-lhe ter faltado?

É fundamental que o despertar de mentes seja uma condição seriamente contagiosa.

Como as cenas de violência psicológica e moral, temos tantas outras que comprometem a unidade, a verdade, a beleza de Angola. Enfim, de modo feliz, ainda há filhos e afilhados desta terra que a amam e trabalham pelo seu desenvolvimento saudável.

Há apagões nas Histórias de Angola. Há quem tivesse se lembrado de se esquecer dos outros heróis. Importa que haja luz da sabedoria nas consciências das gerações actuais e vindouras, estas que devem seguir os caminhos da paz. A gente de Angola deve ler e ouvir os mais velhos de conduta exemplar, mil e uma vezes, para de uma vez por todas ir escrevendo e falando daquilo que edifica a nação. Ser angolano tem de assim também. Os mais velhos devem contar as histórias de ouvidos abertos. Sim, porque é preciso respeitar as vozes periféricas, as vozes emudecidas, as vozes amortecidas.

Os critérios de classificação do que é relevante têm de ser inclusivos. Os autores de gestos simples, na própria comunidade, se reconhecidos e recompensados, aumentam a frequência de comportamentos benéficos a todos. As nossas ruas, hospitais, estradas, escolas, centros culturais ou outras instituições públicas e público-privadas devem ser xarás também destas pessoas. Há quem dê conselho, há quem seja em si um exemplo. Cultive-se a consciência de servir e amar o país, acompanhada do senso de zelo. Ser angolano tem de ser isto também. Angola não é de ninguém e é de todos os angolanos e da sua descendência. Sinta-se e perceba-se isso nos corpos e nas almas.

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