Recordam-se os nossos leitores de que a Redacção do Folha 8 foi, em Março de 2012, invadida por cerca de 15 homens da DNIC – Direcção Nacional de Investigação Criminal sob mandato da Procuradoria-Geral da República, tendo sido confiscados todos os computadores e os jornalistas confrontados com ameaças e actos de brutalidade?
Por Orlando Castro
Na altura, tal como antes, tal como depois, tal como hoje teme-se que a vida do nosso director, William Tonet, corra perigo. A mudança do detentor unipessoal da razão da força não alterou a estratégia letal do regime. Apesar disso, também não alterou a estratégia dos que, como nós, apenas têm a força da razão.
Ao mesmo tempo que alguns ditadores (ainda poucos, é certo) iam caindo, o mundo dito (nem sempre é verdade, mas…) democrático começava a gerar outros e a aguentar alguns que ainda não passaram de bestiais a bestas.
No caso de Angola, José Eduardo dos Santos foi durante 38 anos, de acordo com o barómetro internacional, um ditadores bestial. Não é que ele se preocupasse muito com isso. Seguiu-se João Lourenço que, embora sendo um dos delfins de Eduardo dos Santos, transformou o seu criador em besta, sem abdicar (pudera!) dos benefícios materiais que conseguiu graças ao seu servilismo.
O governo angolano, no poder deste 1975, não tem tido vontade, embora tenha os meios, para resolver os problemas de água, luz, lixo, saúde, trabalho e educação dos angolanos. A juventude não tem casa, não tem educação, emprego e não tem futuro. Os trabalhadores têm salários em atraso e não conseguem obter crédito bancário. E é isso mesmo que João Lourenço quer manter e até ampliar. Quanto mais o Povo for miserável (material e mentalmente) mais sólida será a ditadura.
E quando algum jornal resolve dizer, mesmo que com alguns excessos, estas verdades entra imediatamente na linha de fogo do regime. O Folha 8 está nessa linha há muito, muito tempo. Estamos e continuaremos a estar porque, ao contrário do MPLA, continuamos a pensar que dizer o que pensamos ser a verdade é o melhor predicado dos Homens de bem.
Estes são, contudo, problemas que não alteram a posição de João Lourenço no ranking dos ditadores amigos do Ocidente que, hoje como ontem, lhe dá cobertura total a troco da compra (ao preço da chuva) das riquezas de Angola.
E não alteram o ranking porque coisas tão banais como casa, saúde, educação, comida, não são preocupações essenciais para os que passam por Angola a dar fiado, guardar o vale (ordem de pagamento feita pelo proprietário a favor do financiador) ou a penhora. A existência de milhões de escravos é uma garantia adicional.
Estar 38 anos no poder, com o poder absoluto (Presidente da República, líder do MPLA e chefe do Governo), fez de José Eduardo dos Santos um dos ditadores ou, na melhor das hipóteses, um presidente autocrático, com mais tempo em exercício.
O facto de não ter sido caso único, nomeadamente em África, em nada abona a seu favor do reino. Sabe todo o mundo, mas sobretudo e mais uma vez África, que se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Foi e é o caso em Angola. Mas ninguém se preocupa com isso. Por enquanto, é óbvio.
Só em ditadura, mesmo que legitimada pela fraude e pelos votos comprados a um povo que quase sempre pensa com a barriga (vazia) e não com a cabeça, é possível o mesmo partido estar no poder há 45 anos. Em qualquer estado de direito democrático tal não seria possível.
Aliás, e Angola não foge infelizmente à regra, África é um alfobre constante e habitual de conflitos armados porque a falta de democraticidade obriga a que a alternância política seja conquistada pela linguagem das armas. Há obviamente outras razões, mas quando se julga que eleições são só por si sinónimo de democracia está-se a caminhar para a ditadura.
Com Eduardo dos Santos passou-se exactamente isso. A guerra legitimou tudo o que se consegue imaginar de mau. Permitiu ao MPLA perpetuar-se no poder, tal como permitiu que a UNITA dissesse que essa era (e pelo que se vai vendo até parece que teve razão) a única via para mudar de dono do país.
É claro que, é sempre assim nas ditaduras, o povo foi sempre e continua a ser (as eleições não alteraram a génese da ditadura, apenas a maquilharam) carne para canhão.
Por outro lado, a típica hipocrisia das grandes potências ocidentais, nomeadamente EUA e União Europeia, ajudou a dotar José Eduardo dos Santos com o rótulo de grande estadista que, pelas mesmas razões, transferiram para João Lourenço. Rótulo que não correspondia, e continua a não corresponder, ao “produto”. Essa opção estratégica de norte-americanos e europeus tem, reconheça-se, razão de ser sobretudo no âmbito económico.
É muito mais fácil negociar com um regime ditatorial do que com um que seja democrático. É muito mais fácil negociar com alguém que, à partida, se sabe que irá estar na cadeira do poder durante toda a vida, do que com alguém que pode ao fim de um par de anos ser substituído pela livre escolha popular.
É, como aconteceu com José Eduardo dos Santos e agora acontece com João Lourenço, muito mais fácil negociar com alguém que é líder do partido que está no poder há 45 anos, que é Presidente da República e Titular do Poder Executivo.
Bem visível na caso angolano é o facto de, como em qualquer outra ditadura, quanto mais se tem mais se quer ter, seja no país ou noutro qualquer sítio. Por muito pequeno que seja o ditador (não é o caso de Angola), a história mostra-nos que tem sempre apreciável fortuna espalhada pelo mundo, seja em bens imobiliários (como era tradição) ou mais modernamente nos paraísos fiscais.
A partir do momento em que deixou de ter Jonas Savimbi como bode expiatório para tudo, o MPLA arranjou outros alvos. Um deles foi a Imprensa que, apesar das dificuldades, ainda vai dizendo algumas verdades. Daí a razão pela qual, mais uma vez, os donos do país querem calar o Folha 8.
Desde 2002, o MPLA tem conseguido fingir que democratiza o país e, mais do que isso, conseguiu (embora não por mérito seu mas, isso sim, por demérito da UNITA) domesticar completamente quase todos aqueles que lhe poderiam fazer frente. Impede a legalização do PRA-JÁ, de Abel Epalanga Chivukuvuku, e avisa (indirectamente) a UNITA que pode ser ilegalizada.
Não se crê que, até pelo facto de o país ter estado em guerra dezenas de anos, tanto José Eduardo dos Santos como João Lourenço, tenham as mãos limpas de sangue. Mas essa também não é uma preocupação. Quando se tem milhões, quando se é dono de um país rico, pouco importa como estão as mãos. Aliás, esses milhões servem também para branquear, para limpar, para transplantar, para comprar (quase) tudo e (quase) todos.
De facto, tudo isto é possível com alguma facilidade quando se é dono de um país rico e, dessa forma, se consegue tudo o que se quer. E quando aparecem pessoas como os jornalistas do Folha 8 que não estão à venda, e que por isso incomodam e ameaçam o trono, há sempre forma de os fazer chocar com uma bala.
Acresce, e nisso os angolanos não são diferentes de qualquer outro povo, que continua válida a tese de que “se não consegues vencê-los junta-te a eles”. Não admira por isso que João Lourenço tenha mais alguns fiéis seguidores, do tipo daqueles que são sempre seguidores de quem estiver no Poder.
É claro que, enquanto isso, o Povo continua a ser gerado com fome, a nascer com fome, e a morrer pouco depois… com fome. E a fome, a miséria, as doenças, as assimetrias sociais são chagas imputáveis ao Poder. E quem está no poder há 45 anos é o MPLA.
Vale, ao menos, que a equipa do Folha 8 consegue dar voz a quem a não tem. Eduardo dos Santos sabia, João Lourenço sabe, que a verdade dói, mas ainda não compreenderam que – apesar disso – só ela pode curar.
É verdade que, hoje, João Lourenço pode fazer quase tudo o que lhe apetece. Mas a dignidade dos jornalistas do Folha 8 ele não pode tirar. Nem o facto, que certamente o incomoda, de o Folha 8 fazer parte da História de Angola e da Lusofonia, seja quem for que a venha a escrever.