As feridas (verdadeiras crateras) abertas com os massacres de 27 de Maio de 1977 em Angola (ordenados por aquele que ainda hoje é o único herói nacional permitido pelo MPLA, Agostinho Neto) continuam por fechar e os sobreviventes do massacre que enlutou o país nessa época e, pela cobertura dada pelo MPLA ao genocida envergonha o país, exigem a formação de uma Comissão da Verdade, desde que não seja “de esquecimento”.
José Fuso, da Direcção da Associação 27 de Maio, afirma que . “não se pode pedir a um filho de um desaparecido, que ainda hoje não sabe onde é que o seu pai morreu, para dar um abraço àquele que andou a matar os seus pais. Isto é de uma barbaridade terrível. Tem que haver aqui uma outra hipótese no âmbito de comissões de verdade a sério e não comissões de esquecimento e de abraços ou perdão”.
Juntamente com outras organizações, a Associação 27 de Maio integra a Plataforma 27 de Maio, que pugna pela descoberta da verdade e para que Angola se reconcilie, 46 anos depois, consigo própria, tarefa impossível enquanto o MPLA (no Poder desde 1975) continuar a considerar o genocida responsável pelo massacre (Agostinho Neto) como o único herói nacional.
Em 27 de Maio de 1977, as tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, prenderam os revoltosos, seguindo-se depois o que ficou conhecido como “purga”, com a eliminação das facções, tendo sido mortas cerca de entre 60 mil e 80 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, o principal alvo a abater.
Em Abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a CIVICOP), coordenada pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queirós, para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002 (fim da guerra civil).
Cerca de três anos depois, o Governo do MPLA promoveu as cerimónias fúnebres de Alves Bernardo Batista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio Lourenço Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete, vítimas do massacre ordenado por Agostinho Neto em 27 de Maio de 1977.
Mas as feridas abertas no 27 de Maio continuam por fechar porque as análises de ADN aos restos mortais de vítimas do massacre entregues às famílias, incluindo os corpos de Sita Vales e José Van-Dunem, não correspondem às ossadas.
Michel Francisco, do grupo de sobreviventes do 27 de Maio diz à que já previa este desfecho. E previa porque o MPLA continua a achar que os angolanos são matumbos e a sua operação de branqueamento do genocida Agostinho Neto a isso os obriga.
A recusa das autoridades do MPLA em permitir a participação de sobreviventes ou familiares das vítimas do massacre levou a que o grupo de sobreviventes “tivesse entendido logo que o que eles pretendiam era minimizar a questão, era desresponsabilizar as pessoas que estavam implicadas”, diz Michel Francisco.
José Fuso tem a mesma opinião: “Estivemos de boa fé. Tivemos várias conversas com o ministro Queiroz. E a partir de um determinado momento, fomos pura e simplesmente ignorados, postos de lado. Não quiseram saber. Quer dizer, fingiram que nos ouviram, fingiram que iam dar voz aos familiares e às vítimas”.
Josefa Silva, de 56 anos, da Associação M27, que reúne órfãos, viu desaparecer vários membros da sua família, incluindo o pai, e alguns tios.
“O meu avô teve quatro filhos que morreram, mais dois que estiveram presos, genros e noras também, foi uma família muito afectada”, diz, admitindo que quando soube da intenção do Governo angolano entregar as ossadas às famílias ficou “céptica” quanto aos resultados, “tendo em conta como as coisas se passaram” e o facto de muitas das vítimas terem sido “amontoadas” em valas comuns e terem morrido em alturas diferentes.
Ainda assim resolveu ceder o seu material genético às autoridades angolanas, embora só o tenha feito quando chegou a Angola uma equipa de especialistas forenses portugueses, para “ter a certeza de que ia haver uma contra-análise isenta”.
“Era o nosso desejo, poder ter alguma coisa, fazer um enterro para fecharmos o ciclo. Estamos a viver um ciclo que nunca se fechou”, declarou, salientando: “faz-me falta não ter o luto”.
Depois de se saber que os restos mortais entregues pelo Governo do MPLA não correspondiam às vítimas do 27 de Maio, considera que as feridas voltaram a abrir-se.
“O processo fez reacender feridas que estavam a tentar ser saradas com o tempo. Voltou-se a abrir essa ferida, estamos na expectativa que daqui para a frente aconteçam coisas melhores e o processo seja mais bem enquadrado”, para que se caminhe para o esclarecimento do que aconteceu em 1977.
Josefa Silva diz que, do lado angolano ninguém mais a contactou, mas segundo a conclusão dos peritos independentes, o seu material genético não correspondia a nenhum dos restos mortais que foram entregues.
“Quem sai mal na fotografia, isto tem que se dizer, é o senhor Presidente da República (João Lourenço). Porque sabíamos que aquilo havia de resultar em nada, porque a própria Comissão não integrou como devia ser as pessoas indicadas para participarem no processo, os familiares das vítimas não participaram”, defende Michel Francisco, salientando a credibilidade da CIVICOP seria assegurada com a presença de representantes das Nações Unidas e da União Africana.
“Fizeram aquilo à revelia. Isso logo indiciava que algo de anormal se estava a passar. Ou seja, volto a repetir, no entendimento dos sobreviventes, esta Comissão foi criada apenas para desresponsabilizar as pessoas que estiveram envolvidas” na repressão.
“O sensato seria a criação de uma Comissão da Verdade, onde todos os responsáveis implicados na repressão sangrenta, nesta barbárie, teriam de confessar ou não os seus crimes e ajudar a indicar onde estivesse, onde colocaram os corpos das pessoas que assassinaram e depois daí partir-se para um processo, então, de certificação, com uma comissão especializada liderada pelas Nações Unidas ou com uma outra entidade qualquer indicada para se poder ter assim a verdadeira identidade das vítimas”, adianta.
Agora, com o problema de falta de correspondência das ossadas entregues às famílias com as análises de ADN, as suspeitas confirmam-se.
Michel Francisco conclui que o objectivo foi “esconder e ilibar o MPLA pelos crimes que cometeu contra milhares de pessoas” e diz que João Lourenço só tem uma saída: “Se ele quiser sair bem e terminar bem o seu mandato, ainda vai a tempo de refazer que é o que temos estado a sugerir e que é a criação de uma Comissão da Verdade para se descobrir, esclarecer os contornos que estiveram na base daquela tragédia que vitimou milhares de jovens, na sua maioria inocentes, que hoje podiam estar a dar o seu maior contributo para este país”.
José Fuso classifica a identificação das valas comuns, os funerais e a entrega das ossadas como um “espectáculo televisivo”.
“Criaram ali todo uma situação à volta de um espectáculo televisivo para dizer que estavam a fazer sem terem feito rigorosamente nada”, vinca, e acrescenta: “Como é que num processo destes de tanta dor de famílias, de tanta tragédia, se anunciam nomes de pessoas. A conclusão que eu posso tirar é de uma grande tristeza da parte das famílias. Uma decepção enorme das pessoas que acreditavam que havia finalmente uma vontade política de efectivamente resolver este caso”.
Michel Francisco reforça e considera que “perdoar sim, mas perdoar não significa impunidade”: “Acredito que vamos ter justiça e vamos lutar por ela até morrer. A gente vai lutar até à morte para que a justiça seja feita, porque o que se passou, é inadmissível. Os crimes cometidos no nazismo até hoje estão a ser julgados, estão a ser encontradas pessoas, porque é que Angola vai ser diferente, não pode ser diferente”.
Folha 8 com Lusa