PERDER UM OLHO OU OS DOIS?

Foi a 19 de Agosto de 2003 que Sérgio Vieira de Mello foi assassinado em Bagdade (Iraque). Foi um dos poucos bons exemplos dos que, ao serviço da ONU, trabalharam para os milhões que têm pouco, ou nada. Foi isso que fez, entre outros locais, no Bangladesh, Líbano, Moçambique e Timor-Leste.

Por Orlando Castro

Tivesse preferido trabalhar para os poucos que têm milhões e estaria, certamente, a apanhar banhos de sol num qualquer paraíso.

O que se passou, o que se passa e o que se passará nos nas terras que foram de Saddam Hussein é algo que, necessariamente, me faz pensar em duas frentes. Por um lado, creio que quem mexer no passado deve perder um olho. Mas, é claro, quem o esquecer deve perder os dois.

Seja como for, dou por certo que ao adoptar-se a política do olho por olho, dente por dente (tão do agrado dos senhores que põem a razão da força acima da força da razão, como os EUA ou a Rússia), corremos todos (mesmo os que vão cantando e rindo nas cálidas praias lusitanas ou angolanas) o risco de ficarmos cegos e desdentados.

É também claro que (pelo menos para mim) todos os Vladimir Putin ou João Lourenço e companhia devem ser punidos, estejam eles onde estiverem, tenham passaporte afegão, americano, angolano ou de qualquer outra nacionalidade.

Milhares de pessoas, entre as quais gente lusófona, morreram no ataque terrorista a Nova Iorque e a Washington em 11 de Setembro de 2001. Ainda se lembram? O Mundo parou para ver, lamentar e condenar. As televisões, sobretudo elas, mostraram até à exaustão imagens que revoltam todos aqueles que, por regra, têm sangue nas veias. Não era para menos.

O cenário repete-se agora com a invasão da Ucrânia por parte da Rússia.

Deixem-me, contudo, recordar que não é só nos EUA que os actos terroristas matam milhares de pessoas. A diferença está no facto de, em África por exemplo, não haver a CNN a transmitir em directo (ou em diferido que fosse) os ataques que transformam em pó as populações.

E quando não são ataques com bombas, são ataques de fome, miséria, humilhação e doenças…

E, nestes casos, nem os EUA, nem a NATO, nem a Rússia ou Portugal se preocupam. Também são aos milhares. Mas como estão lá nas terras do fim do Mundo… pouco importa.

Aliás, como têm petróleo e diamantes, até é bom que se vão matando (aos milhares, reforço), até é bom que vão morrendo de fome. A indústria bélica do Mundo, sobretudo dos EUA, vai continuar a ter necessidade de mercados com elevado potencial (gente para morrer e petróleo para pagar).

E o petróleo de Angola para onde vai? E os angolanos como (sobre)vivem?

E das duas uma. Ou há dois tipos de terrorismo, um bom e outro mau, ou então é preciso impor alguma moralidade na forma como se trata do assunto.

Terrorismo mau é só aquele que é transmitido pelas televisões ocidentais? Vítimas só são as que estão em nossa casa? Só são as de cor branca?

É claro, refira-se mais uma vez, que o terrorismo é todo ele mau. Os autores devem ser punidos. Sejam eles Teodoro Obiang Nguema, Kim Jong-un, Vladimir Putin etc. etc..

Mas devem ser punidos todos. Não apenas aqueles que se atreveram a chatear o tio Sam, não apenas aqueles que entendem que a liberdade dos EUA termina onde começa a deles. E, convenhamos, os EUA não são grande exemplo de moralidade e equidade.

Os americanos (sobretudo eles, mas não só eles) devem, aliás, ter cuidado para (mais uma vez) não fornecerem aos amigos de momento a corda com que estes, mais tarde, vão enforcar… americanos.

De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (e continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos das grandes potências, coloniais ou não. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram e são um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.

Nesse conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem?

Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano (preto, entenda-se) é obra desenganada. Infelizmente.

De uma forma geral, mais de 100 anos depois continua a ser verificado, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem” (escreveu o angolano Eugénio Costa Almeida no seu livro: “África Colonial no Centenário da Guerra de 1914/1918”).

Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento ao seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando a suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição das grandes potências (Europa, EUA e Rússia, China) em dominar as riquezas autóctones.

Em Angola (tal como noutras colónias), as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.

A tudo isto acresce a megalómana tese de que a História só é válida quando são europeus, norte-americanos ou russos, a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram (ainda são) vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.

Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.

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