A CORRUPÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA

Em «O mistério de Marie Rogêt», Edgar Allan Poe refere que a opinião pública não deve ser desprezada quando se gera espontaneamente, numa manifestação totalmente livre de pressões externas, porque a devemos considerar análoga à intuição que é a idiossincrasia do génio humano. E acrescenta que, não existindo interferências externas na opinião pública, esta opinião deve ser subscrita para decisão. «Mas é importante que não encontremos o menor indício palpável de uma sugestão» (Poe 2009: 105).

Por Sedrick de Carvalho

Como mecanismo de credibilização para justificar a ocupação de lugares no parlamento e demais instituições, a UNITA desencadeou um processo de «auscultação das bases». Segundo nota publicada, a «UNITA, FPU e PRS correm as províncias para perguntar aos militantes e à sociedade civil se devem ou não tomar posse». Esta nota foi divulgada no dia 14 de Setembro. A tomada de posse do presidente da República, João Lourenço, aconteceu no dia seguinte e a dos deputados e deputadas no dia 16.

O que facilmente se percebe é que esta suposta auscultação das bases foi, na verdade, uma manipulação da opinião das bases. Os membros da sociedade civil alistados foram arregimentados para o processo. Estes, por sua vez, constituíram-se em principais elementos de corrupção da opinião pública sobre o que de facto pretendiam as bases. Sugestionaram a opinião pública para uma ideia segundo a qual não há alternativa que não seja a tomada de posse, ou seja, vergar-se ao jugo do partido-Estado, com a desculpa de não ser possível ficar fora das instituições. Se assim é verdade, esta é mais uma prova de que o processo de auscultação foi simples manipulação, assemelhando-se ao MPLA/governo nos seus vários processos de auscultação que apenas servem para impor as suas agendas, como foi recentemente no caso das partições territoriais de algumas províncias.

Mas o que fala a ciência política sobre estes personagens da sociedade civil arregimentados? Encontramos a resposta em Hannah Arendt, a «filósofa política mais importante do nosso tempo», segundo The New Leader. Ainda ancorada numa ideia de que a voz do povo é a voz de Deus, na esteira do que acima referi da opinião pública, políticos usam esta opinião para declarar estarem a seguir as expectativas do povo.

Mas será mesmo o povo (ou as bases, no caso da auscultação da FPU) que foi ouvido? A resposta é não. É a ralé. Tem sido um «erro fundamental […] considerar a ralé idêntica ao povo e não uma caricatura dele. A ralé é fundamentalmente um grupo no qual estão representados resíduos de todas as classes. É isto que torna tão fácil confundir a ralé com o povo, o qual também compreende todas as camadas sociais […]» (Arendt 2014: 138 e 139).

É esta ralé que impõe a ideia de salvador único, louvando pelo «homem forte», o «grande chefe». Arendt diz ainda que «a ralé odeia o parlamento onde não está representada». Ora, odeia o parlamento desde que não esteja representada, mas passa a amar e a defendê-lo quando nele está incluída.

Passado Setembro, e não sendo positivo que a poeira baixasse suficientemente, a UNITA convocou uma marcha, liderada pelo seu presidente e pares da FPU. Este acto serviu mais para medir a pulsação e amainar os ânimos. Aliás, esta marcha foi a razão principal para ACJ ter publicado o artigo no Observador no mesmo dia, onde escreveu: «Nesta caminhada tudo tem o seu momento. Este sábado é hora de enchermos a rua com a nossa alegria, as nossas músicas e orações, velhos e novos, vamos celebrar a soberania do Povo e honrar a democracia».

Para o sucesso da marcha contribuiu imenso a ralé, que corrompe a opinião pública, suavizado como sendo «capacidade de mobilização» das massas, manipulando-a para seu benefício próprio. Corrompida, aquela opinião pública manifestada por intermédio da presença física nos actos de massa não tem o mesmo valor por estar demasiadamente sugestionada, logo, não deve ser subscrita para decisão.

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