QUANDO A MINHOCA JULGA QUE É JIBÓIA

O advogado do vice-presidente de Angola, Bornito de Sousa, e da sua filha, Naulila, pediu hoje ao Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto que mande julgar o líder da Frente Cívica portuguesa, Paulo de Morais, por difamação agravada.

A pretensão do causídico Paulo de Moura Marques foi manifestada durante o debate instrutório do caso “Vestidos de noiva”, após Paulo de Morais requerer ao TIC que avaliasse acusações particulares de Bornito de Sousa e da filha, secundadas pelo Ministério Público, quer em fase de inquérito criminal quer agora em instrução.

O processo que visa o líder da Frente Cívica tem por base considerações públicas que, tal como muitos órgãos de comunicação social, entre os quais o Folha 8, produziu sobre compra de um vestido de noiva e outros artigos para o casamento da filha do actual vice-presidente angolano e na altura ministro de José Eduardo dos Santos, em 2014, e que terão custado mais de 200 mil dólares, o equivalente a 172.600 euros, num país “onde em que há gente a morrer na rua de fome e de doença”.

E quando se diz gente a morrer de fome deve-se, em abono da verdade, acrescentar que existem mais de 20 milhões de pobres e, ainda, que diariamente milhares de angolanos procuram nas lixeiras algo que os ajude a enganar a… fome.

“Isto é ofensa gratuita, não é liberdade de expressão. Há limites e o arguido atravessou-os”, afirmou Paulo de Moura Marques perante a juíza de instrução Cristina Malheiro. O advogado de Bornito de Sousa (é para isso que lhe pagam) tem o direito de ofender de forma paga todos os angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem, pouco depois, de fome. Isto, acrescente-se, num país que é gerido pelo partido de Bornito de Sousa há 46 anos, o MPLA, e que é a organização partidária que tem mais corruptos e milionários por metro quadrado.

Já o advogado de Paulo de Morais, Carlos Cal Brandão, pediu à juíza que despronuncie o arguido, ou seja, que opte por não o levar a julgamento, dizendo que parte da prova foi levada ao processo sem respeitar as normas legais, argumentado que o seu cliente agiu no quadro da defesa do interesse público, visando apenas figuras públicas e recorrendo ao seu direito de liberdade de expressão.

Direito de liberdade de expressão que, no caso do país em que Bornito de Sousa é vice-presidente, é quase inexistente, estando Angola no topo dos piores índices no que também a esta questão respeita.

“Não vou perder-me nas altas nuvens da sociologia. Não há prova validada de que o arguido cometeu o crime por que é acusado”, afirmou, referindo-se à forma alegadamente ilegal como alguns testemunhos foram levados ao processo.

“E tudo o que disse o arguido, embora com variações, está claramente demonstrado nos autos”, acrescentou, citando reportagens televisivos e outros artigos que não foram desmentidas e que, portanto, Paulo de Morais “tomou como a verdade”.

Ainda no debate instrutório, o procurador secundarizou o papel do Ministério Público (“é diminuto”, disse), porque havia uma acusação particular sobre algo com um “concreto sentido injurioso”.

Sendo que o actual vice-presidente de João Lourenço, Bornito de Sousa exercia à data dos factos funções de ministro da Administração do Território num governo de José Eduardo dos Santos. E, na perspectiva do líder da Frente Cívica, Bornito de Sousa e a filha passaram, ao arrepio da sua conduta, a imagem de distanciamento e demarcação de práticas alegadamente condenáveis da anterior liderança angolana de José Eduardo dos Santos.

Neste contexto, Paulo Morais chegou a classificar Naulila como “a nova princesa de Angola”, numa comparação com a empresária Isabel dos Santos, filha de Eduardo dos Santos (tratado pelo MPLA como o “querido líder” e o “escolhido de deus”), conhecida como a “princesa de Angola” e visada no processo “Luanda Leaks”.

Na expressão dos visados, Paulo de Morais estaria com isto a qualificar a conduta pessoal e profissional de Naulila como “próxima ou similar” à de Isabel dos Santos, “a qual se encontra a ser visada na comunicação social e na opinião pública por factos de natureza criminal”.

As observações de Paulo de Morais que deram origem ao processo “Vestidos de noiva” centram-se em Janeiro de 2020, numa rede social e num canal televisivo, sendo posteriormente reafirmadas, apesar dos pedidos dos queixosos para que se retratasse. Sendo que, no caso, retratar seria mentir, seria ofender os tais 20 milhões de pobres angolanos.

O dirigente da Frente Cívica portuguesa reafirmou na sua página oficial da rede Facebook: “Os factos que revelo nestas comunicações que tenho feito sobre o assunto são objectivos, comprováveis. As opiniões que eu emito sobre esses factos, emito-as no uso de um direito constitucional, que é o meu direito de liberdade de expressão. Não altero, retiro ou acrescento nada ao que disse”.

Mais tarde, em declarações à cadeia alemã Deutsche Welle (serviço em português para África), disse: “Num país em que há gente a morrer na rua de fome e de doença, um país que tem das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo, um dos países que tem das mais baixas esperanças de vida à nascença do mundo, o vice-presidente do país gastar no vestido da filha, no seu casamento, cerca de 200 mil dólares (…), acho isto uma agressividade, eu acho isto até um selvajaria relativamente a um povo que o vice-presidente do seu país tem que respeitar”.

Em Março de 2021, o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto acompanhou a acusação particular, na qual é exigida ao dirigente da Frente Cívica portuguesa uma indemnização de 750 mil euros. E Paulo de Morais requereu a instrução do processo agora em curso.

Além de líder da Frente Cívica, Paulo Morais é professor universitário, co-fundador da Transparência e Integridade (TIAC), antigo candidato à Presidência da República portuguesa e vice-presidência da Câmara do Porto de 2002 a 2005.

Dois representantes do Estado angolano (funcionários do MPLA) presenciaram hoje o debate instrutório. A decisão instrutória deverá ser comunicada às partes no dia 16, segundo a juíza de instrução.

Não é eticamente bonito, mas é compreensível no âmbito da “educação patriótica” do MPLA. Dando provas de ter sido um excelente aluno, o vice-presidente da República, Bornito de Sousa, mostra que sabe conjugar sem falhas o verbo bajular e, assim, sempre que pode ou quando recebe ordens nesse sentido, considera que reina no país e no estrangeiro uma grande e positiva expectativa à volta do Chefe de Estado angolano, João Lourenço. Dizia o mesmo de José Eduardo dos Santos. Aceita alegremente que o MPLA considere o maior assassino da história de Angola, responsável pelo assassinato de muitos milhares de angolanos nos massacres de 27 de Maio de 1977, Agostinho Neto, seja considerado o único heróis do país.

Logo em Dezembro de 2017, Bornito de Sousa declarou que “passados três meses, a opinião geral é positiva e é praticamente senso comum que se as eleições tivessem lugar hoje, o resultado eleitoral a favor de João Lourenço seria muito mais expressivo e a sua legitimidade ainda mais reforçada”.

Bornito de Sousa disse que a rápida afirmação e eleição do seu chefe, João Lourenço, criou bastante expectativa no país e no estrangeiro, quanto à autonomia, liderança e sentido de Estado que o novo Presidente imprimiria à mais alta liderança política em Angola.

O vice-presidente da República referiu que em condições macro-económicas nada fáceis (como diria igualmente o anterior ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos, João Lourenço) a preocupação com a transparência e a moralização do Estado e da sociedade, com o afastamento da dependência económica do petróleo, com o relacionamento das instituições democráticas, a governação local, as autarquias e a redução das assimetrias regionais marcam já a diferença que lhe foi pedida, durante a campanha eleitoral. Recordam-se?

Só faltou a Bornito de Sousa dizer: Oremos irmãos, já encontramos um novo “escolhido de Deus”, um santo (não santos) milagreiro capaz de em tão pouco tempo transformar Angola naquilo que nunca foi (nem é) – uma democracia e um Estado de Direito.

Para Bornito de Sousa acrescem os sinais especiais e espaciais (não é nenhuma alusão ao satélite Angosat) para a promoção da igualdade de oportunidades económicas e empresariais, a criação de um empresariado angolano e o enquadramento da economia informal. Para nos fazer acreditar que os jacarés passaram a ser… vegetarianos, Bornito de Sousa diz ser uma jibóia quando, de facto, não passa de uma minhoca.

Folha 8 com Lusa

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