A directora do Serviço de Recuperação de Activos de Angola (SENRA), Eduarda Rodrigues, disse hoje que há cerca de 50 mil milhões de dólares em processos que estão em investigação patrimonial, admitindo perdas por ultrapassagem de prazos judiciais. Chatice. Não poderá o Tribunal Constitucional, por ordem do Presidente do MPLA (João Lourenço) mandar exonerar os… “prazos judiciais”?
“Em alguns ordenamentos jurídicos, os bens só podem estar arrestados seis meses, nove meses”, disse a procuradora hoje, em Luanda, salientando a complexidades das investigações que não se conseguem concluir, normalmente em menos de um ano.
Eduardo Rodrigues fez hoje um balanço da actividade do SENRA, desde que foi criado este organismo na dependência da Procuradoria-Geral da República, com atribuições de investigação patrimonial e financeira, durante o lançamento do projecto PRO.REACT (Apoiar o Fortalecimento do Sistema Nacional de Confisco de Activos em Angola), que conta com apoio da União Europeia e das Nações Unidas.
A responsável do SENRA destacou a importância da cooperação internacional e da formação nesta área para acelerar os processos, já que, além do risco de descredibilização, há também risco de perdas financeiras, se ficarem muito tempo parados nos tribunais.
Eduarda Rodrigues salientou que grande parte dos valores foram expatriados, o que coloca dificuldades acrescidas às autoridades angolanas que são obrigadas a recorrer aos tribunais estrangeiros para executar decisões relativas a arrestos, bloqueio de contas bancárias “com muito dinheiro” ou apreensão de imóveis, em Portugal, no Reino Unido ou nas Bermudas.
Indicou que, por exemplo, em Singapura, onde decorre um processo que envolve quase mil milhões de dólares, as autoridades angolanas já foram informadas que o arresto dos bens se vai manter apenas até Janeiro, tendo sido feito um pedido excepcional para suspender este prazo
Dos 50 mil milhões de dólares (44 mil milhões de euros) de prejuízos que o Estado angolano sofreu, cerca de 13 mil milhões de dólares foram já apreendidos, cerca de metade fora de Angola e 5,3 mil milhões foram já recuperados definitivamente a favor do Estado, ou seja, não estão pendentes de decisões judiciais
Eduarda Rodrigues falou ainda sobre a lei de repatriamento dos recursos financeiros, criada em 2018, considerando que foi “uma verdadeira amnistia” que o legislador criou para os cidadãos que tivessem retirado bens do erário público de forma ilícita os pudessem devolver, incluindo bens no estrangeiro que poderiam, num prazo de seis meses, ser repatriados para Angola, com isenção fiscal, isenção cambial e isenção de responsabilidade criminal.
“Era uma grande lei que poderia ter tido grande utilidade, mas foi uma grande oportunidade que se perdeu”, disse a responsável do SENRA, realçando que esta lei contemplava também já a possibilidade de repatriamento coercivo, prevendo que fosse necessário recorrer a esta modalidade através de um órgão recuperador.
Quanto à gestão dos activos recuperados, explicou que a PGR apenas ordena a sua apreensão ou requer o arresto, indicando sempre um fiel depositário, como está consagrado na lei, a não ser bens que, pela sua natureza, não podem ser entregues ao cofre geral de justiça.
O SENRA foi criado com objectivo de identificar, localizar e apreender activos financeiros e não financeiros que tenham sido retirados de forma ilícita do erário público, seja em Angola ou no estrangeiro.
Ladrões ontem, impolutos hoje
Recorde-se que o Presidente de Angola e do MPLA (partido no Poder há 456 anos), João Lourenço, afirmou no dia 30 de Março de 2021 que há “forças internas e externas” ligadas aos que delapidaram o erário público que estão a organizar “uma campanha” que visa denegrir e desacreditar a justiça e o Estado angolano. Uma verdadeira chatice. E logo numa altura em que todo o mundo começava a acreditar na tese, de João Lourenço, de que ele próprio viu roubar, participou nos roubos, beneficiou dos roubos mas que não era ladrão…
O também chefe do executivo angolano, que discursava nesse dia na cerimónia solene de abertura do ano judicial, em Luanda, exortou os órgãos judiciais a continuarem o seu trabalho no combate à corrupção e impunidade e salientou que o país “vem dando passos corajosos desde finais de 2017, investigando, julgando e condenando servidores ou ex-servidores públicos de todos os escalões, desde os níveis do município, província e o próprio executivo central, da Assembleia Nacional e de empresas públicas com imparcialidade necessária para o sucesso desta causa”.
João Lourenço salientou que os órgãos de justiça “têm sido incansáveis”, apesar da exiguidade de meios, alguma falta de experiência e de condições de trabalho. Falta de experiência no combate à corrupção, entenda-se. É que quanto à sua prática são dos mais experientes do mundo.
“Contudo, forças internas e externas, ligadas aos que mais delapidaram o erário público, organizam campanhas com vista a denegrir e desacreditar a justiça e o Estado angolano, mesmo com tantos exemplos concretos de indiciados, arguidos e alguns já condenados” e que, segundo o Presidente angolano, demonstram o comprometimento na luta contra a corrupção.
Na altura, Isabel dos Santos, filha do ex-presidente angolano (e mentor do próprio João Lourenço) José Eduardo dos Santos, visada em vários processos judiciais em Angola e no estrangeiro, acusou João Lourenço de tentar “usurpar” ilegalmente os seus bens e afirmou ter provas que revelam “uma conspiração” contra si, urdida pelos serviços secretos angolanos, com a conivência activa de várias sucursais do MPLA, a começar pela própria Procuradoria-Geral da República.
Esta não foi a primeira vez que a empresária afirmou ser vítima de perseguição política e se queixou de ser alvo de uma justiça selectiva que visa a família dos Santos e figuras ligadas ao antigo presidente.
João Lourenço insistiu que “os que vêem o seu castelo desmoronar de forma inexorável” tentam defender os seus interesses e procuram reverter a situação fora dos tribunais.
“Pretendem ser eles a comandar a acção da justiça angolana, envolvendo o chefe de Estado a ponto de determinarem quem deve ser indiciado. É evidente que isto está à partida condenado ao fracasso”, avisou, sublinhando que a justiça angolana vai cumprir o seu papel e o Presidente não vai interferir (como se alguém acreditasse) na acção da justiça “em violação da Constituição, como pretendem que o faça”.
“Pretendo endereçar uma saudação especial ao Presidente José Eduardo dos Santos, que cessa hoje a função de Presidente da República. Esta saudação ficaria incompleta se não mencionasse o longo e vitorioso caminho trilhado por Angola ao longo dos últimos 38 anos. O povo angolano agradece a dedicação e o empenho do Presidente José Eduardo dos Santos”, afirmou João Lourenço no discurso de tomada de posse, acrescentando que, “após o prematuro desaparecimento físico”, a 10 de Setembro de 1979, de Agostinho Neto, “o MPLA confiou ao Presidente José Eduardo dos Santos a missão histórica de dirigir o povo angolano na defesa das conquistas da Independência Nacional, no fortalecimento do Estado, na implantação e consolidação da democracia multipartidária, na conquista da paz, na reconstrução do país e no lançamento das bases para o desenvolvimento”.
“O Presidente José Eduardo dos Santos cumpriu a sua missão com brio invulgar, com dedicação e com um elevado espírito patriótico. Por essa razão, a sua figura simboliza a vitória da unidade nacional, da paz e da dignificação dos angolanos no plano interno e internacional”, disse também João Lourenço.
Recorde-se, em síntese, que João Lourenço sempre foi um operacional do sistema cleptocrático que tomou conta do país em 1975:
1984 – 1987: 1º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial do Moxico; 1987 – 1990: 1º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial de Benguela; 1984 – 1992: Deputado na Assembleia do Povo; 1990 – 1992: Chefe da Direcção Politica Nacional das FAPLA; 1992 – 1997: Secretário da Informação do MPLA; 1993 – 1998: Presidente do Grupo Parlamentar do MPLA; 1998 – 2003: Secretário-geral do MPLA; 1998 – 2003: Presidente da Comissão Constitucional; Membro da Comissão Permanente; Presidente da Bancada Parlamentar; 2003 – 2014: 1º Vice-presidente da Assembleia Nacional.
Patrão mandou, general obedeceu
Curiosamente, cumprindo ordens superiores, o general procurador-geral da República (PGR) de Angola elegeu como prioridade o combate ao crime económico-financeiro, tendo sido instaurados, desde 2020 e até Março de 2021, 1.522 processos crimes envolvendo principalmente crimes de peculato, corrupção activa e passiva e branqueamento de capitais.
“Os resultados deste trabalho são julgamentos e condenações um pouco por todo o país e que são do domínio público”, numa perspectiva de que o “crime não pode compensar em circunstância alguma e, por isso, não pode constituir fonte de aquisição de propriedade”, realçou o general Hélder Pitta Grós, na abertura do ano judicial, em Luanda.
O PGR disse que a criminalidade económico-financeira tem tratamento prioritário face “à tomada de consciência colectiva dos seus efeitos nefastos para a sociedade, quer pela necessidade de frustrar as expectativas de alcançar a impunidade por parte dos seus agentes”.
“Estamos hoje cientes de que a criminalidade económico-financeira funciona como fonte de incalculáveis males, alimentando outras actividades criminais e corroendo os pilares da sociedade merecendo por isso a nossa máxima atenção”, frisou.
Neste âmbito, tem sido feito “um trabalho acutilante” na investigação patrimonial e promovida a perda dos bens ilicitamente adquiridos e a consequente recuperação destes activos para o Estado, vincou.
Desde a criação do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) tinham sido recuperados até Março de 2021 cerca de 5,3 mil milhões de dólares, dos quais 2,7 mil milhões em dinheiro e o restante em imóveis habitacionais, fábricas, participações sociais em empresas e outros.
Hélder Pitta Grós afirmou que este tipo de crime constitui “uma manifestação de criminalidade altamente organizada e sofisticada, na medida em que recorrem às mais modernas técnicas e tecnologias” e aos serviços de pessoas extremamente qualificadas, apontando carência a nível de ‘software’ e tecnologias direccionadas para este tipo de crime.
O PGR disse ainda que o acesso à justiça é uma necessidade essencial para uma sociedade harmonizada, mas apontou a falta de recursos humanos como um obstáculo.
Em 2020, a Procuradoria-Geral da República funcionou com 565 magistrados do Ministério Publico em todo o país, um rácio de 1,8 por cada 100 mil habitantes, “o que se mostra aquém das recomendações das organizações internacionais”, que apontam para um ideal de sete procuradores para cada 6.000 habitantes, afirmou o PGR, acrescentando que é também insuficiente o número de funcionários administrativos e técnicos de justiça.
Sem querer converter a Procuradoria num “muro das lamentações”, Hélder Pitta Grós disse que a instituição tem afirmado a sua missão e reafirmou o compromisso com a produtividade e no combate ao crime.
O PGR indicou também desafios para os próximos tempos, em particular a falta de acomodações condignas juntos dos órgãos de polícia criminal.
“A PGR não deve funcionar nas instalações das forças de polícia por razões óbvias”, uma vez que se trata de um órgão fiscalizador e de instrução preparatória, e “não deve ter a sua acção limitada a cedências de espaços para o seu funcionamento, observou Pitta Grós, reclamando a construção ou aquisição de estruturas físicas que possam acomodar estes serviços.
Folha 8 com Lusa