A ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van Dunem, visita Luanda de 16 a 18 deste mês, depois de uma visita oficial, agendada há dois anos, ter sido cancelada na sequência da deterioração das relações entre Portugal e Angola e que só foi ultrapassada depois da capitulação de Lisboa.
A visita oficial, de 16 a 18 de Abril, anunciada em comunicado pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos angolano, surge depois de o processo em Portugal ao então vice-Presidente da República de Angola, Manuel Vicente, ter provocado o cancelamento da deslocação de Francisca Van Dunem, anunciada em Fevereiro de 2017.
O caso, que ficou conhecido como “irritante”, só foi ultrapassado oficialmente em Setembro de 2018, com a rendição judicial e política de Portugal que trouxe o primeiro-ministro português, António Costa, a Luanda, com a garantia de que a separação de poderes permitiu à política impor à Justiça que o processo ao agora ex-vice-Presidente era transferido de Lisboa para as catacumbas de Angola.
No comunicado divulgado, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola refere que, no primeiro dia da visita, Francisca Van Dunem, natural de Luanda, onde nasceu a 5 de Novembro de 1955, terá um encontro de trabalho com o homólogo angolano, Francisco Queiroz, e efectuará uma visita ao sector de Identificação Civil e Criminal daquele departamento governamental.
No segundo dia da visita estão previstos encontros com os líderes do MPLA (juízes-presidentes) do Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Tribunal Supremo, com o procurador-geral da República, Provedor de Justiça e ainda com o ministro do Interior.
No terceiro e último dia da visita oficial, Francisca Van Dunem desloca-se à província de Benguela, onde vai visitar o Tribunal de Comarca do Lobito, recentemente inaugurado, e informar-se sobre os serviços da Justiça.
Em Novembro do ano passado, durante a visita do Presidente João Lourenço a Portugal, os governos dos dois países assinaram, no Porto, vários acordos de cooperação que estavam por formalizar há vários anos, nomeadamente na área da Justiça. Nesta matéria, os acordos assinados abrangem desde o intercâmbio na reinserção social de presos que tenham cumprido penas à colaboração entre a Polícia Judiciária portuguesa e o Serviço de Investigação Criminal (SIC) angolano.
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Quando foi adiada a visita de Francisca Van Dunem, o comunicado do Ministério português da Justiça dizia apenas: “A visita da ministra da Justiça foi adiada, a pedido das autoridades angolanas, aguardando-se o seu reagendamento”.
Certamente que foi mera coincidência o adiamento surgir cinco dias após o Ministério Público ter acusado formalmente Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola, da alegada prática dos crimes de corrupção activa na forma qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento.
Certamente que foi mera coincidência o adiamento surgir horas depois de alguma Imprensa, entre a qual está o Folha 8, ter recordado que ministra portuguesa é irmã de José Van Dunem, do sector ortodoxo e de obediência soviética do MPLA, partido no poder desde 1975, e cunhada da militante comunista Sita Valles, ambos mortos na sequência dos massacres de milhares de angolanos em 27 de Maio de 1977, levados a cabo pelos radicais do MPLA, liderados por Agostinho Neto, alegando uma tentativa de golpe de Estado por parte de Nito Alves.
“Apesar da sua verticalidade e probidade jurídica, Francisca Van Dunem poderá ter como óbice – ainda que não da parte dela, mas de terceiros e externos – o facto de ser uma das vítimas do nunca esclarecido e sanado massacre do 27 de Maio”, escrevíamos nós sob o título “Seja bem-vinda Senhora Ministra!”, no dia 21 de Fevereiro de 2017.
Como não acreditamos nestas coincidências, e de acordo com algumas das nossas fontes, a decisão das autoridades angolanas (leia-se José Eduardo dos Santos) teve a ver com a ideia do regime do MPLA de que em Portugal tudo funciona à imagem e semelhança de Angola. Não era bem assim, mas passou a ser bem assim. O caso Manuel Vicente violou as “ordens superiores” que Luanda mandou para Lisboa.
Ao contrário do que se passava e passa no reino do MPLA, o Governo português não controlava o Ministério Público. É que, apesar de toda a subserviência e bajulação do Executivo de Lisboa perante o regime do MPLA, ainda havia limites.
Francisca Van Dunem escusou-se na altura a esclarecer os motivos do adiamento da sua visita a Angola, remetendo explicações para o comunicado divulgado pelo seu ministério.
“O Ministério da Justiça emitiu um comunicado nessa matéria, que será totalmente auto-explicativo. Tem lá todas as explicações”, disse a ministra, quando confrontada pelos jornalistas sobre o adiamento da visita, a pedido das autoridades angolanas, apenas um dia antes de ter início.
“Não há muito mais a dizer, como está dito no comunicado, como o comunicado explícita, a viagem foi adiada e vai haver um reagendamento”, respondeu Francisca Van Dunem, que falava à margem do lançamento do livro “40 Anos de políticas de justiça em Portugal”.
Uma Joana na engrenagem
António Costa, primeiro-ministro de Portugal, garantia (seja lá o que isso for) que houve “absoluto consenso” entre governo e Presidência da República quanto à questão da substituição da Procuradora-Geral da República (PGR), negando que a animosidade com Angola (caso Manuel Vicente) tivesse estado na origem da substituição de Joana Marques Vidal por Lucília Gago. Alguém acredita?
Paulo de Morais, presidente da portuguesa Frente Cívica, nunca teve dúvidas: “Francisca Van Dunem, Ministra portuguesa da Justiça, prestou um serviço ao regime de Angola, traindo Portugal”.
Estamos a falar do caso Manuel Vicente. Recorde-se que João Lourenço disse no início deste processo que o Governo angolano “não tinha pressa” e que “a bola não está do nosso lado, está do lado de Portugal”. A resposta portuguesa, indirecta mas com o rabo de fora, não demorou a chegar.
“Nós não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro”, disse o Presidente da República, que falava nos jardins do Palácio Presidencial, em Luanda, na sua primeira conferência de imprensa com mais de uma centena de jornalistas de órgãos nacionais e estrangeiros, quando passavam 100 dias após ter chegado à liderança no Governo.
Pois é. Importa, contudo, ver para além do óbvio. “O Presidente angolano, João Lourenço, entrou em conflito aberto com o Ministério Público português, liderado pela Procuradora-Geral Joana Marques Vidal”, afirmou na altura Paulo de Morais, acrescentando que “o diferendo teve origem no julgamento” de Manuel Vicente por corrupção, em Lisboa.
“O regime angolano pretende a transferência do processo para Luanda, o que é manifestamente impossível, porque em Angola Manuel Vicente goza neste momento de imunidade e seria, muito provavelmente, mais tarde, abrangido por uma oportuna amnistia. Tem pois de ser julgado por corrupção em Portugal”, considerou em Janeiro de 2018, em declarações ao Folha 8, o presidente da Frente Cívica.
E é neste contexto que, mais uma vez, entra o acocorado e servil funcionamento do Governo de António Costa. “Ora, no mesmo momento em que João Lourenço ameaça Portugal e exige a transferência do processo para Angola, em conflito com Joana Marques Vidal que não permite (e bem!) que tal aconteça – a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, vem anunciar que a Procuradora-Geral de Portugal está de saída. Ou seja, João Lourenço pode “estar descansado”, porque a actual Procuradora-Geral irá deixar de “importunar” o novo poder angolano”, afirmou na altura Paulo de Morais, acertando na muche.
“Francisca Van Dunem, perante um conflito entre um Chefe de Estado estrangeiro e o Ministério Público português, não hesitou: de forma subserviente, colocou-se de cócoras perante o dirigente estrangeiro. Com esta atitude, indigna de um estado democrático, esquece a autonomia da Justiça num regime em que há separação de poderes. E – pior! – envergonha Portugal”, afirmou Paulo de Morais.
O Presidente da Frente Cívica acrescentou: “Finalmente, note-se que Manuel Vicente é o ex-vice-presidente de Angola, cujo apoio João Lourenço quer garantir. E recorde-se que Francisca Van Dunem é de origem e família angolana, o que torna o caso muito mais grave”.
Um Costa a dar à costa
Recorde-se que depois do encontro que teve em Abidjan (no âmbito da cimeira entre a União Europeia e a União Africana) com João Lourenço, o primeiro-ministro português, António Costa reconheceu e lamentou a impotência política para resolver, como gostaria, um caso de justiça.
“Ficou claro que o único irritante que existe nas nossas relações é algo que transcende o Presidente da República de Angola e o primeiro-ministro de Portugal, transcende o poder político e tem a ver com um tema da exclusiva responsabilidade das autoridades judiciárias portuguesas”, disse António Costa.
No entanto, com a habilidade política e às vezes até politiqueira que se lhe reconhece, António Costa não descansou enquanto não descobriu uma saída política, mesmo que indirecta, para alterar o curso do processo na Justiça. Vai daí, ordenou à sua Ministra da Justiça para, nove meses antes da altura em que o assunto deveria ser analisado, divulgar que Joana Marques Vidal (uma acérrima defensora do julgamento de Manuel Vicente em Portugal) não seria reconduzida.
Em entrevista à TSF, para além de clara e inequivocamente ter dito que o mandato de Joana Marques Vidal terminava em Outubro, Francisca Van Dunen citou o próprio António Costa: “Este é claramente um processo judicial e é no espaço judicial que deve ser tratado”. No Espaço Judicial? Então porque razão o Governo de Angola encaminhou o pedido de transferência do processo por via diplomática?
Como explicou o Público, “na resolução da Assembleia da República que aprovou a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal assinada pelos Estados membros da CPLP, define-se que, em matéria judicial, a autoridade central para efeitos da aplicação da Convenção é a PGR. E é aqui que reside a impotência diplomática de Belém e São Bento: nenhum poder político tem legitimidade para dar indicações ao Ministério Público em matéria judicial, tendo a PGR soberania e liberdade para decidir, mesmo que os políticos não gostem”.
E então, como no caso vertente, quando o Governo de Lisboa não gosta das decisões do Ministério Público mas nada pode fazer para alterar essa realidade, restava-lhe a solução agora apontada por Francisca Van Dunem: afasta-se a PGR.
Francisca Van Dunem / Manuel Vicente
No dia 23 de Fevereiro de 2017, Rui Mangueira, então ministro angolano da Justiça (que não existe) e Direitos Humanos (que são constantemente violados), disse que a visita da sua homóloga portuguesa, Francisca Van Dunem, fora cancelada por não haver condições para a sua realização.
Esta não explicação foi, apesar de tudo, mais eloquente do que a do então embaixador itinerante de José Eduardo dos Santos, Luvualu de Carvalho, que, depois de consultar as “ordens superiores”, disse: “Sobre estas questões particulares não tenho resposta para o imediato”!
Rui Mangueira falava aos jornalistas em Luanda à margem da aprovação, na generalidade, na Assembleia Nacional, da proposta de Lei do Código Penal angolano.
“Não há questões a avançar, foi feito um convite à senhora ministra da Justiça de Portugal para visitar Angola, no âmbito das relações de cooperação bilateral e específicas, no caso da justiça, e uma vez que não existem condições para a realização dessa visita, transferimos para uma outra altura e esperemos que essa visita se venha a realizar em breve”, referiu.
Perceberam? Não? Pois é. Sobre isto – arriscando-nos a ter de pagar direitos de autor – dizemos que “sobre estas questões particulares não temos resposta para o imediato”. Simples.
Embora questionado pelos jornalistas, o governante angolano escusou-se a acrescentar qualquer outra informação sobre o assunto, temendo dizer o que pensa mas sabendo bem dizer o que as “ordens superiores” o mandavam dizer. Aliás, esperar que alguma vez um ministro da Justiça de Angola diga o que de facto pensa é como esperar que um dia uma mangueira venha a dar loengos.
É fácil de perceber que o MPLA (e aqui havia completa sintonia entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço) apenas quer que se aplique em Portugal o que é regra inquestionável em Angola: O poder político manda em todos os outros poderes.