Primeira noite na kuzuera

Dormi profundamente. Estava mesmo exausto. Não me lembro de ter acordado de madrugada. As últimas semanas antes da detenção foram de muito trabalho. Em Maio lançara, com o Eduardo Micoli Gito, amigo e colega de profissão, o site de informação futebolística denominado O Golo Portal, e, como necessário em todos os projectos na fase inicial, me dedicava afincadamente nele.

Por Sedrick de Carvalho

Estava também de regresso ao jornal Folha 8, depois de sair do semanário Novo Jornal em Janeiro do mesmo ano, pelo que tinha de repartir os esforços. Na universidade, preparava-me para os exames do primeiro semestre do quinto ano, o último, e simultaneamente trabalhava já na monografia, coincidente e curiosamente intitulada “A prisão preventiva no âmbito do sistema criminal angolano”. Ainda prestava serviços nas áreas de paginação digital para organizações e individualidades da sociedade civil.

Uma forte batida no gradeamento despertou-me. Não sabia a hora. Não tinha relógio. O funcionário da PN queria saber como passei a noite. Estava vivo, pelo menos. Foi isso que lhe disse. Foi embora. Já não voltei a dormir. Comecei a inspeccionar rigorosamente onde estava. Um susto! O lençol policial que usara para me cobrir ao longo da madrugada estava com algumas manchas de sangue. Reparei e vi que a camisa que envergava, de cor branca, também tinha. Desconhecia a origem.

Desconfiei: “será que os agentes do SIC me picaram com algum objecto?”. Rapidamente tirei a camisa e nenhum ferimento ou sinal de sangue encontrei. Tirei a calça e nada. O meu corpo parecia intacto. Por alguns minutos pensei onde saíra o sangue mas não descobria. Desisti de procurar a fonte do sangue.

Olhei a lateral do colchão e lá estavam duas baratas de costas para baixo a revirarem-se na vã esperança de conseguirem meter as patinhas no chão frio e partirem em fuga. Com os pés empurrei-as para fora da cela pela pequena abertura por baixo da porta.

Ali, na porta, ouvi vozes de outras pessoas. Vinham da outra cela, colada àquela onde eu estava. Eram vozes de presos, também. Percebi então que aqueles detidos foram retirados da cela masculina e colocados na feminina para que eu ficasse sozinho ali. Inclusive limparam, pelo que percebi ao inspeccionar. Havia um balde de talvez cem litros com um pouco de água. As paredes sujas, sanita também mais suja ainda, e, no muro divisor entre o WC e o espaço onde dormi, beatas de cigarros e cinzas de incenso para matar os mosquitos, o chamado por dragão.

Alguns minutos depois, talvez passado uma hora, voltou o agente que me acordou. Desta vez trouxe comida. Subitamente apercebi-me que tinha mesmo fome. O arroz com feijão estava quente, numa tigela pequena, e deu-me também água num bidão de cinco litros. Ignorei. Talvez estivesse envenenada, a comida e a água.

Instantes depois, sei lá que horas eram, chamei o agente pelo gradeamento. Veio acompanhado de outro e perguntei pela minha família. Não me haviam localizado ainda. Pedi que me permitisse ligar à família e respondeu que não podia atender a minha solicitação porque “não há ordem superior nesse sentido”. Informou também que estava de saída. Era mudança de turno. O acompanhante era do novo turno.

A fome apertava e decidi comer. Num estalar de dedos poderia estar mesmo morto de mil e uma formas, embora não devesse facilitar os bandidos. Não tinha sequer colher, visto ser proibido o garfo. Outra maka! Comi mesmo com as mãos.

É assim que um homem é reduzido ao nada. A água ignorei por mais tempo.

O dia passava e continuava a aguardar impacientemente pela família. Pensei, depois, que já não seria possível ver a minha família naquele dia por ser domingo. “Amanhã estarei fora daqui”, perspectivei, e assim fiquei tranquilo.

Nota: Extracto dos apontamentos para um livro.

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