O parlamento angolano discute na quinta-feira, em Luanda, duas propostas de lei sobre repatriamento de capitais, com a discussão centrada na possibilidade de legalização de dinheiro obtido e retirado do país de forma ilícita. Ou seja, branqueamento ou lavagem de capitais.
Em causa está a Proposta de Lei de Repatriamento de Recursos Financeiros Domiciliados no Exterior do País, de iniciativa do Presidente da República, João Lourenço, e terá o apoio do MPLA (partido no poder desde a independência), maioritário no parlamento, e o Projecto de Lei do Regime Extraordinário de Regulação Patrimonial (RERP), de iniciativa da UNITA.
Ambas as propostas foram aprovadas, por unanimidade, nas comissões de trabalho especializadas da Assembleia Nacional, e sobem à discussão e votação, na generalidade, na reunião plenária, extraordinária da Assembleia Nacional, agendada para quinta-feira.
Um grupo de personalidades e activistas angolanos, que tem Luaty Beirão como porta-voz, já criticou publicamente a possibilidade de repatriamento de capitais sem perguntas e mantendo a titularidade, por ser “injusta e, uma vez mais, beneficiar o infractor”.
Assumem não se rever em nenhuma das duas propostas sobre a matéria, reclamando que 70% do dinheiro obtido ilicitamente, a repatriar ou já no país, seja revertido a favor do Estado e que o restante seja aplicado obrigatoriamente em projectos de desenvolvimento em Angola, além de afastar os prevaricadores dos negócios com o Estado angolano.
“Não podemos continuar a premiar aqueles que não tiveram remorsos em delapidar o Estado, provocando situações calamitosas”, afirma Luaty Beirão, numa posição substancialmente diferente das propostas a discutir pelos deputados.
É o caso da promovida pelo Presidente da República, permitindo repatriar depósitos no exterior sem fazer perguntas sobre a origem do dinheiro e a do maior partido da oposição, prevendo o pagamento ao Estado de uma taxa de 45% sobre o total.
A UNITA foi, de resto, a primeira a avançar com uma proposta do género, segundo o líder parlamentar.
Adalberto da Costa Júnior afirma que o projecto de lei do RERP, que envolve a regularização de depósitos e património não declarado, foi entregue ao presidente do parlamento quase duas semanas antes de João Lourenço, chefe de Estado e vice-presidente do MPLA, ter anunciado, em Dezembro, que estava em preparação regulamentação para permitir o repatriamento de depósitos no exterior sem investigações.
“No modelo anunciado pelo Presidente, quem roubou agora traz e fica com tudo. Não pode ser assim”, afirmou o deputado da UNITA.
As receitas provenientes do RERT, a vigorar até 30 de Novembro de 2018, devem servir para financiar o Fundo de Erradicação da Pobreza, lê-se na proposta da UNITA.
Na proposta levada a plenário pelo Presidente da República, os angolanos com depósitos superiores a 100 mil dólares (83 mil euros) no estrangeiro e não declarados vão ter seis meses para fazer o seu repatriamento para Angola sem estarem sujeitos a qualquer investigação criminal, tributária ou cambial.
O documento prevê a “regularização de recursos, bens e direitos mantidos no exterior e o seu repatriamento, isentando do pagamento de quaisquer multas ou taxas e exclui a responsabilização criminal”.
Os primeiros contornos desta proposta foram revelados a 13 de Dezembro por João Lourenço, ao anunciar, em Luanda, que o executivo vai estabelecer “um período de graça”, para incentivar o regresso dos capitais retirados do país.
“Findo esse prazo, o Estado angolano sente-se no direito de considerar dinheiro de Angola e dos angolanos e, como tal, agir junto das autoridades dos países de domicílio para tê-lo de volta e em sua posse”, avisou João Lourenço.
Já a proposta de lei da UNITA prevê um “regime extraordinário de regularização cambial e tributária”, aplicando-se a direitos reais, barras de ouro e prata, minerais, metais e ligas metálicas, depósitos, certificados de depósitos, valores mobiliários e imobiliários.
Estes podem ser “de origem lícita ou ilícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorrecção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos dentro e no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no país”, lê-se na proposta.
Neste caso, a declaração do património e o pagamento da contribuição prevista prevê a “extinção das obrigações tributárias exigíveis” e a “exclusão da responsabilidade por infracções tributárias que resultem de condutas ilícitas”.
Branquear e lavar a corrupção e o roubo
A tese de João Lourenço é, no contexto de um país rico que ao longo de 42 anos não produziu riquezas mas apenas alguns milionários, motivo de satisfação, sobretudo dos 20 milhões de pobres que os sucessivos desgovernos do MPLA geraram.
O governo quer “obrigar” os angolanos que ao longo dos anos levaram muito e muito dinheiro para o estrangeiro, já quase todo branqueado nas enorme lavandarias europeias, a trazerem para o país todos esses milhões.
Pode ser dinheiro roubado, pode ter origem em actos de corrupção, de contrabando, de tráfico, de apoio ao terrorismo. Mas tudo isso não conta desde que o regresso se faça de forma voluntária. Ou seja, o ladrão, o corrupto, o contrabandista, o traficante, o terrorista passará logo à categoria de cidadão impoluto e honorável.
É uma medida populista que, exactamente por isso, merece muito mais aplausos do que críticas. E como acontece num período de vacas esqueléticas, o branqueamento económico e político ajuda à festa.
Se os angolanos têm fome (e têm mesmo), pouco importa a origem da fuba, do farelo, ou da mandioca que lhe prometem. O importante é mesmo que a comida chegue. João Lourenço sabe disso e a UNITA também.
Do ponto de vista desses “patriotas” que estejam interessados em fazer retornar as pipas de dólares, até pode ser um bom negócio. É que, para além do perdão criminal, os investimentos que fizerem em Angola poderão ser mais rentáveis do que os feitos, por exemplo, na Europa. Além disso, como são todos bons conhecedores do ADN do MPLA (que para além de estar no poder há quase 43 anos por lá quer continuar mais 57), sabem que em caso de crise podem voltar a fazer a viagem em sentido contrário.
O cenário seria diferente se, com os mesmos actores, Angola fosse o que ainda não conseguiu ser: um Estado de Direito Democrático. Não sendo, nem sendo previsível que o seja nos próximos anos, a perspectiva dessa malta que tem o dinheiro lá fora é trazer algum, investir, lucrar e manter o avião de regresso pronto a descolar.
Como é possível saber-se se esse dinheiro colocado no estrangeiro é limpo/legal? Não é possível. Alguém se atreverá a investigar, por exemplo, se os milhões que a Sonangol canalizou para o Millennium BCP são, ou foram, legais? Ninguém. Além disso, durante décadas, o Presidente “escolhido por Deus” (José Eduardo dos Santos) deu cobertura legal às negociatas, estribado que estava nas leis angolanas que mandou fazer à medida e por medida.
E se este e milhentos outros investimentos no estrangeiro foram feitos, hipoteticamente, de forma moral e eticamente criminosa, mas legalmente cobertos, que legitimidade tem João Lourenço para querer que os seus detentores o tragam para Angola?
Regressando ao exemplo da Sonangol, que é uma empresa do Estado, João Lourenço vai dar ordens a Carlos Saturnino para vender as participações da petrolífera e trazer o dinheiro para Angola?
Iremos ver o ex-presidente da Sonangol e ex-presidente da República, Manuel Vicente, ser intimado para vender os seus apartamentos em Lisboa e a trazer o dinheiro para cá?
Não. Não será nado disso. Serão apenas os casos dos que desviaram ilegalmente o dinheiro? Quem vai definir o que foi desviado legal e ilegalmente? E mesmo que alguém o defina, como contornará a Lei n.º 11/2016, de 20 de Julho, que sabiamente amnistiou todos os crimes onde cabe a matéria de facto inerente a estes crimes? “São considerados válidos e irreversíveis os efeitos jurídicos dos actos de amnistia praticados ao abrigo de lei competente”, diz o Artigo 62 da Constituição.
Folha 8 com Lusa