A ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van Dunem, admitiu hoje a possibilidade de os ministérios públicos de Portugal e Angola estarem em contacto para troca de informações relacionadas com o repatriamento coercivo de capitais angolanos ilegalmente depositados ou investidos em Portugal.
Numa entrevista hoje divulgada pela Rádio Nacional de Angola (RNA), por ocasião da visita de trabalho a Angola, que vai efectuar de 16 a 18 deste mês, Francisca Van Dunem garantiu, porém, que o Ministério da Justiça que tutela nada recebeu do congénere de Luanda, mas admitiu que tal possa acontecer a nível judiciário.
“Não entrou nenhum pedido através do Ministério da Justiça. Não posso excluir que tenha havido já contactos entre as duas PGR (Procuradorias-Gerais da República) e que estejam a trabalhar já nessa matéria. Até porque, em última análise, trata-se sempre de actos que têm uma natureza judiciária e que devem ser praticadas por autoridades judiciárias”, afirmou.
“Não tenho notícia. Há um aspecto que importa precisar aqui. Em alguns casos, a cooperação judiciária faz-se directamente entre o Ministério Público, ou seja, entre a PGR angolana e a portuguesa. Há níveis de cooperação que são feitos, até porque a PGR portuguesa é a autoridade central, o que significa que é a entidade que recebe os pedidos no quadro da cooperação jurídica e judiciária entre Angola e Portugal”, acrescentou.
Em 26 de Junho de 2018, o Governo angolano deu um prazo de seis meses (até 26 de Dezembro do mesmo ano) para que quem tivesse investido dinheiro angolano fora do país o fazer regressar a Angola, após o que se entraria na segunda fase, a de repatriamento coercivo.
Até hoje, nunca foi divulgado o montante entretanto recuperado, ou mesmo se foram recuperadas algumas verbas, números que, segundo o Presidente de Angola, João Lourenço, terão de ser divulgados pelo Banco Nacional de Angola (BNA).
Em 13 de Março, num comunicado do Conselho de Ministros, o governo indicou ter sido lesado em 4,7 mil milhões de dólares (4,1 mil milhões de euros) com investimentos privados feitos com fundos públicos, valor definido por uma Comissão Multissectorial criada em Dezembro de 2018 por João Lourenço.
No dia seguinte, no acto de abertura do ano judicial de 2019, no Lobito, João Lourenço considerou ser, “no mínimo, chocante e repugnante” o relatório sobre os investimentos privados realizados com recurso a “avultados fundos públicos”.
O Presidente João Lourenço referiu que, após os seis meses de graça que a lei conferiu aos visados para devolverem o dinheiro ao país, o Estado “está no direito de utilizar todos os meios ao seu alcance para reaver ao que ao povo angolano pertence”, no quadro do Repatriamento Coercivo de Capitais, processo que está a ser já investigado pela PGR.
Em 18 de Março, o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, garantiu que o Executivo iria revelar, “nos próximos dias”, a lista de investidores e de investimentos privados feitos com fundos públicos, mas até hoje nada foi adiantado.
Chocante? Repugnante? Boa!
O presidente João Lourenço, igualmente presidente do MPLA, Titular do Poder Executivo e (entre muitos outros altos cargos) ex-vice-presidente do MPLA e ex-ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos, considerou no dia 14 de Março, “no mínimo, chocante e repugnante” o relatório sobre os investimentos privados realizados com recurso a “avultados fundos públicos”, que dá conta da perda de 4.700 milhões de dólares (4.000 milhões de euros).
O chefe de Estado não esteve com meias palavras e ameaçou que o Estado “está no direito de utilizar todos os meios ao seu alcance para reaver ao que ao povo angolano pertence”.
Tem razão. Esperamos, aliás, que num acto de honorabilidade esse mesmo Estado dê o exemplo de começar a limpeza de cima para baixo, sem excepções.
A Lei de Repatriamento de capitais foi aprovada a 26 de Junho de 2018 com o objectivo de devolver a Angola os montantes investidos no exterior do país, ilegalmente colocados em paraísos fiscais e outras praças financeiras, prazo que terminou a 26 de Dezembro do mesmo ano.
Passados vários meses desde o final do prazo, João Lourenço garantiu que “estamos empenhados a trabalhar nesta direcção, com o concurso dos cidadãos que denunciam, dos competentes serviços de investigação, do Ministério Público e dos tribunais, que intervirão quando chegar o momento”.
E garantiu muito bem. Todos esperam que o Presidente dê o exemplo, colocando à disposição da Justiça e dos investigadores o seu próprio historial financeiro e patrimonial, interno e externo, para que a sociedade possa acreditar (somos ingénuos) que não há angolanos de primeira e de segunda.
João Lourenço foi mais longe e indicou que o grupo de trabalho que tinha como responsabilidade proceder ao levantamento com toda a informação dos investimentos realizados com recursos a avultados fundos públicos identificou tratarem-se de “alguns dos grandes grupos empresariais privados” da praça angolana, aos quais – presumivelmente – não estão ligados membros do actual governo… (continuamos na onda da sacerdotal ingenuidade).
“No essencial, o trabalho está concluído e em posse do executivo, sendo o conteúdo do relatório, permitam-me dizê-lo, no mínimo chocante e repugnante”, frisou o tricéfalo Presidente da República, Titular do Poder Executivo e Presidente do MPLA, partido que, aliás, só governo o país desde… 1975.
Segundo o presidente João Lourenço, o Estado/MPLA terá perdido perto de cinco mil milhões de dólares, “que beneficiava uma elite muito restrita”. Elite essa que, presumimos, exclui logo à partida todos aqueles que foram coniventes (por acção ou omissão) com esta “repugnante” situação, desde logo aquele que foi pessoalmente escolhido pelo anterior Presidente da República para ser o seu substituto.
“Estamos, assim, em condições de, nos próximos dias, accionarmos os mecanismos para o Estado reaver o património e os activos que lhe pertencem a abrigo da Lei 15/18 de 26 de Dezembro sobre o Repatriamento Coercivo, apenas na sua componente interna da perda alargada de bens”, referiu João Lourenço.
Na sua intervenção, João Lourenço apontou a necessidade uma justiça “cada vez mais célere, mais acessível à esmagadora maioria dos cidadãos, mais capacitada para responder aos grandes desafios do combate ao crime no geral, de combate à corrupção e à impunidade”, contribuindo para a moralização de toda a sociedade e tornar o mercado nacional mais competitivo e seguro para a atracção do investimento privado nacional e estrangeiro.
Imaginemos um Estado impoluto
Imaginemos (imaginar ainda não é crime mas talvez possa estar perto de ser um acto “repugnante”) que o Estado angolano é uma entidade de bem. Assim sendo, acreditamos no Procurador-Geral da República, Hélder Pitta Gróz, quando ele afirmou, em Janeiro de 2018, que o Presidente João Lourenço tinha sido o primeiro a apresentar a sua declaração de bens.
A Declaração de Bens é (ou deveria ser) apresentada em envelope fechado e lacrado, até 30 dias após a tomada de posse ou início de funções, junto da entidade que exerce poder de direcção, de superintendência ou de tutela, que a remete, no prazo de oito dias úteis, ao Procurador-Geral da República.
Hélder Pitta Gróz explicou na altura (Janeiro de 2018, recorde-se) que a PGR estava a ter uma louvável (dizemos nós) pedagogia para mostrar a todos aqueles a quem a decisão é aplicada que nesse âmbito cabem rendimentos, títulos, acções ou qualquer outra espécie de bens e valores, localizados no país ou no estrangeiro.
A declaração de bens é obrigatória (se bem que esta questão da obrigatoriedade seja muito discutível) para os titulares de cargos políticos providos por eleição ou nomeação, magistrados judiciais e do Ministério Público, gestores e responsáveis da administração central e local do Estado.
Em teoria (o que já não é mau), os gestores de património público afectos às Forças Armadas Angolanas e à Polícia Nacional, os gestores responsáveis dos institutos públicos, dos fundos e fundações públicas e empresas públicas também estão sujeitos à apresentação da declaração. Também os deputados devem declarar o seu património.
A Declaração é (deveria ser) actualizada a cada dois anos e em caso de incumprimento prevê a punição com pena de demissão ou destituição, sem prejuízo de outras sanções previstas por lei.
E assim se chegou ao final de Março de 2018. Ora então, nessa altura a PGR iria fazer o levantamento geral de todas as pessoas que estavam sujeitas a fazer a declaração de bens, à luz da Lei da Probidade Pública, para se saber quem está em falta para – dizia o vice-PGR, Mota Liz – começar a desencadear os procedimentos de responsabilização.
Portanto, e porque mais uma vez as pessoas nomeadas ou reconduzidas por João Lourenço estão algo esquecidas, Mota Lis defendeu depois a criação de mecanismos para fiscalizar e responsabilizar as entidades sujeitas a apresentação de declaração de rendimentos e por qualquer razão não o façam.
“A declaração de bens não é um fim próprio, é um meio instrumental para a garantia da probidade. Outras acções e programas para garantir a probidade, para assegurar e combater a impunidade e garantia da transparência vão continuar a ser desenvolvidas”, disse o magistrado. E disse muito bem. Veremos se daqui a alguns meses (anos, provavelmente) não teremos a repetição deste mesmo “repugnante” (como diz João Lourenço) filme.
A PGR anunciou no início de Fevereiro de 2018 que iria criar “nos próximos dias” um corpo especial de funcionários e magistrados para se dedicar a investigações preliminares sobre denúncias feitas pela comunicação social e redes sociais.
Mota Liz referiu que esse órgão terá como finalidade dedicar-se “concretamente à colheita deste tipo de informação, fazer um inquérito preliminar, para aferir a dignidade e a seriedade dos dados” fornecidos quer pela comunicação social quer pelas redes sociais.
“Para não estarmos a dar as notícias falsas, que são muito férteis na internet, se elas tiverem um mínimo de dignidade e seriedade, então, desencadeia-se um inquérito criminal para se apurar responsabilidades”, avançou Mota Liz, em declarações à rádio pública.
Falta saber (e compreendemos que o segredo é alma também deste negócio) se – como num passado recente mas enraizado no ADN de quem nos governa há quase 44 anos – as autoridades vão analisar a “dignidade e a seriedade” das mensagens ou, apenas, identificar e punir os “repugnantes” mensageiros.
Segundo o magistrado, “muitos crimes hoje são denunciados por via da comunicação social, das redes sociais, e um órgão como a PGR não pode ficar em cima do muro, tem que andar, verificar, separar aquilo que é boato infundado e o que é notícia séria”.
“Se há notícia de crime, é óbvio que deve ser investigado, para haver seriedade, para ver até que ponto houve má-fé, dolo na prática, até que ponto factos ocorreram e até que ponto as pessoas são responsáveis”, salientou.
Reconhecendo a nossa ingenuidade, vamos acreditar que as coisas vão ser diferentes, vamos crer que as vítimas não passam a culpados quando se atrevam a denunciar as práticas de altos dignitários da nossa sociedade.
De acordo com Mota Liz, a Inspecção Geral do Estado, a Comunicação Social e o Ministério Público devem trabalhar em conjunto no combate às práticas negativas que assolam a sociedade.
Mota Liz considera que a aplicação das penas deve ser o último recurso, pois em primeiro lugar há que educar os gestores públicos sobre os prejuízos que a corrupção e o peculato podem causar à sociedade.
As penas devem ser o último recurso? Pois. Primeiro é preciso fazer a pedagogia necessária. E essa pedagogia (tipo “educação patriótica”) deverá durar quantos anos? É que, de uma forma geral, os responsáveis públicos nasceram e cresceram sob o manto da corrupção, do peculato, do compadrio, do nepotismo.
“As pessoas perderam o medo na prática de actos lesivos ao património público e à própria imagem da administração pública e à boa imagem do Estado. A dimensão preventiva em todas as dimensões sociais é mais importante e aí, é preciso que as inspecções sectoriais do Estado e a IGAE, o Tribunal de Contas, eduquem, previnam, corrijam, mas vamos trabalhar sobre três lemas, educar, chamar a atenção e punir”, salientou Mota Liz.
Perderam o medo de ser criminosos? Perderam. Tudo porque, de uma forma simbólica, se estão nas tintas para a velha máxima de que os servidores públicos que não vivem para servir não servem para viver. Por outras palavras, limitaram-se a pôr na prática o ADN de quem ocupou esses lugares durante 44 anos, ou seja, o MPLA.
Por alguma razão, também ela certamente “repugnante”, um país rico como Angola não criou riquezas mas apenas milionários. Por alguma razão os nossos dirigentes nunca se preocuparam com os muitos milhões que têm pouco… ou nada, apostando tudo nos poucos que têm milhões.
Mota Liz defende a sensibilização, mas se “o funcionário público persistir no erro não há outro remédio”: “A punição, que pode ser disciplinar, cível, política e a mais grave de todas a criminal. É aquela que queremos evitar, não queremos ter cadeias cheias, mas se as pessoas insistirem que têm que cometer crimes para enriquecimento fácil não teremos outra opção”.
Ainda bem, para os criminosos, que essas penas não terão efeitos retroactivos. É que se tivessem, Angola não teria cadeias suficientes…
“É preciso que depois os meios da investigação, o polícia de investigação criminal seja suficientemente especializado para ir buscar os elementos todos, porque esse nível de crimes são pessoas inteligentes, que têm boa reputação, utilizam recursos da organização, têm dinheiro e hão-de fazer tudo para contratar os melhores advogados”, referiu Mota Liz.
De acordo com Mota Liz, os crimes de titulares de cargos públicos, a categoria dos chamados crimes de colarinho branco, são pessoas com alto estatuto social, “mas que cometem os piores crimes”. É verdade. Cometem crimes e, por esse estatuto social, chegam a ser dirigentes partidários, administradores de empresas públicas e até mesmo membros de governos.
Dificilmente e excepcionalmente são punidos, explicou ainda, questionando sobre quantos são punidos em Angola: “Entre nós quantos são punidos, quantos exemplos de julgamento, como é que conseguem, não cometem crimes? Temos consciência para dizer que os nossos titulares de cargos públicos não cometem crimes, creio que não. Temos vários exemplos, por que é que não chegaram a julgamento? Os recentes escândalos, BNA, Cesil, CNC, por que é que falharam? Até foram denunciados”, questionava Mota Liz.
Folha 8 com Lusa
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