O advogado Miguel Francisco, “Michel”, sobrevivente do massacre de 27 de Maio de 1977 levado a cabo pelo MPLA de Agostinho Neto e em que foram mortos muitos milhares de angolanos, disse hoje que o Estado deve admitir que a repressão foi uma “barbaridade” e não apenas “excessos”, como admitiu no fim-de-semana o ministro da Justiça.
Em declarações à agência Lusa, em Luanda, o autor do livro “Reflexão: Racismo como cerne da Tragédia do 27 de Maio” referiu que este reconhecimento, por parte do Governo angolano, deveria já ter surgido há muito tempo.
Agora, “este pronunciamento do Ministério da Justiça, na pessoa do ministro” é “bom, é de louvar, mas a expressão que eles utilizam é que não é correcta”, afirmou o advogado.
Segundo Miguel Francisco “Michel”, não se pode falar em excessos numa questão tão grave como esta.
“Não tendo havido sequer um processo, matam, prendem e julgam alguém, pelo menos tinha de haver processo judicial, não tendo havido processo, estão a falar de excessos de quê?” – questionou. O que houve, salientou, “foi uma barbaridade, barbárie, e o Estado tem de reconhecer”.
Para haver reconciliação tem que haver verdade, afirma repetidamente Miguel Francisco “Michel” um dos sobreviventes das prisões e campos de concentração para onde foram enviadas milhares de pessoas após a alegada tentativa de golpe de estado de 27 de Maio de 1977 em Angola. Milhares, muitos milhares, foram assassinados. Nesta data, em 2018, “Michel” escreveu uma Carta ao Presidente da República, João Lourenço, que a seguir se transcreve e recorda.
«EXMO SENHOR
GENERAL JOÃO MANUEL GONÇALVES LOURENÇO
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE ANGOLA
VICE-PRESIDENTE DO MPLA
Excelência,
Queira, antes de mais, aceitar os meus respeitosos cumprimentos.
Sou Miguel Francisco, vulgarmente conhecido por “Michel,”, advogado, sobrevivente da tragédia do triste mas célebre e histórico 27 de Maio de 1977 e venho expor e sugerir o seguinte:
É minha firme e forte convicção, de que Vossa Excelência tem plena consciência das consequências nefastas resultantes dos trágicos acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977, que vestiram de vergonha, interna e externamente, o Estado Angolano que Vossa Excelência actualmente dirige.
Senhor Presidente,
41 anos passaram desde aquele fatídico dia. Enquanto sobrevivente, julgo ser chegada a hora do MPLA e do Executivo Angolano na pessoa de vossa Excelência instituir uma Comissão, cuja designação julgo não importar, para que se dê início ao processo de apuramento do que realmente se passou, dando assim também início a uma verdadeira e genuína Reconciliação entre as vítimas e os responsáveis pela tragédia, muitos deles ainda em vida.
É que sem que haja um processo que tenha como base a descoberta da verdade, não será possível sarar as feridas que ainda sangram nas mentes dos familiares das vítimas da tragédia, com especial realce para os filhos e as viúvas, pois, muitos nem sequer certidões de óbito lhes foram dadas, até o momento.
Salvo opinião diferente dos que ainda teimam em minimizar essa questão do dia 27 de Maio, entendo que pela sua magnitude e profundeza, a discussão num fórum apropriado, sem quaisquer ressentimentos e muito menos julgamentos de quem quer que seja, os ganhos serão manifesta e inegavelmente superiores do que a sua simples minimização.
Assim, mesmo que vossa Excelência por hipótese (apenas hipótese), por razões pessoais tenha aplaudido a forma como os responsáveis pela tragédia levaram a cabo o massacre, o que não ouso admitir, nem mesmo nas profundezas do meu subconsciente, mas, enquanto Chefe de Estado, em funções, e vice-presidente do MPLA, tem a obrigação de tratar este Dossier que pela sua magnitude é, sem sombra de dúvidas, um assunto de Estado que deve figurar na vossa agenda como prioridade de mandato.
Não queira cometer o erro de minimizar essa questão como sempre se tentou durante estes anos todos. Esta atitude em nada vai abonar à vossa reputação enquanto Chefe de Estado. Porquê? Porque as consequências resultantes da tragédia são tão transversais que angolano algum, nenhum mesmo, quer dentro como os da diáspora, não tenha sido atingido directa ou indirectamente com os “estilhaços” do massacre.
Daí que sugiro a vossa Excelência, senhor Presidente da República e actual vice presidente do MPLA, que em nome da verdade e da justiça que foi negada às vítimas da tragédia, ao menos tenha a hombridade de ordenar a institucionalização da Comissão que proponho, para que nos possamos verdadeiramente reconciliar.
Valho-me da ocasião, para expressar, antecipadamente, os meus sinceros agradecimentos, subscrevendo-me com elevada estima e consideração.
Luanda, 27 de Maio de 2018.
MIGUEL FRANCISCO “Michel”
(Sobrevivente)»
Ora, aqui está um assunto que pode por em causa a honorabilidade de gente considerada ilustre em Angola. O 27 de Maio de 1977 foi uma matança. Milhares de pessoas foram perseguidas, injuriadas, torturadas e assassinadas, sem qualquer garantia de defesa. Claro que há responsáveis e esses responsáveis são os detentores do poder politico e militar da altura. Melhor dizendo: MPLA e seus órgãos dirigentes, pois que o poder em Angola era do MPLA e de Agostinho Neto, seu Presidente, quer do Partido quer da República. Apurando ou apurados os factos delituosos – sim, porque na verdade se trata de crimes – vamos assistir a uma inversão, por condenação ou ostracismo dos ditos pais da pátria. É que ser Presidente dum país e dum Partido responsável pela execução, ao que se propala, de 30.000 pessoas, não é um factor abonatório, que seja atributivo de estátuas e honrarias. Com o tempo lá chegaremos. Os angolanos e, nomeadamente, os parentes das vitimas se encarregarão de repor a verdade e a justiça.