Para haver reconciliação tem que haver verdade, afirma repetidamente Miguel Francisco “Michel” um dos sobreviventes das prisões e campos de concentração para onde foram enviadas milhares de pessoas após a alegada tentativa de golpe de estado de 27 de Maio de 1977 em Angola. Milhares, muitos milhares, foram assassinados. Nesta data, 41 anos depois, “Michel” escreve uma Carta ao Presidente da República, João Lourenço.
«EXMO SENHOR
GENERAL JOÃO MANUEL GONÇALVES LOURENÇO
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE ANGOLA
VICE-PRESIDENTE DO MPLA
Excelência,
Queira, antes de mais, aceitar os meus respeitosos cumprimentos.
Sou Miguel Francisco, vulgarmente conhecido por “Michel,”, advogado, sobrevivente da tragédia do triste mas célebre e histórico 27 de Maio de 1977 e venho expor e sugerir o seguinte:
É minha firme e forte convicção, de que Vossa Excelência tem plena consciência das consequências nefastas resultantes dos trágicos acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977, que vestiram de vergonha, interna e externamente, o Estado Angolano que Vossa Excelência actualmente dirige.
Senhor Presidente,
41 anos passaram desde aquele fatídico dia. Enquanto sobrevivente, julgo ser chegada a hora do MPLA e do Executivo Angolano na pessoa de vossa Excelência instituir uma Comissão, cuja designação julgo não importar, para que se dê início ao processo de apuramento do que realmente se passou, dando assim também início a uma verdadeira e genuína Reconciliação entre as vítimas e os responsáveis pela tragédia, muitos deles ainda em vida.
É que sem que haja um processo que tenha como base a descoberta da verdade, não será possível sarar as feridas que ainda sangram nas mentes dos familiares das vítimas da tragédia, com especial realce para os filhos e as viúvas, pois, muitos nem sequer certidões de óbito lhes foram dadas, até o momento.
Salvo opinião diferente dos que ainda teimam em minimizar essa questão do dia 27 de Maio, entendo que pela sua magnitude e profundeza, a discussão num fórum apropriado, sem quaisquer ressentimentos e muito menos julgamentos de quem quer que seja, os ganhos serão manifesta e inegavelmente superiores do que a sua simples minimização.
Assim, mesmo que vossa Excelência por hipótese (apenas hipótese), por razões pessoais tenha aplaudido a forma como os responsáveis pela tragédia levaram a cabo o massacre, o que não ouso admitir, nem mesmo nas profundezas do meu subconsciente, mas, enquanto Chefe de Estado, em funções, e vice-presidente do MPLA, tem a obrigação de tratar este Dossier que pela sua magnitude é, sem sombra de dúvidas, um assunto de Estado que deve figurar na vossa agenda como prioridade de mandato.
Não queira cometer o erro de minimizar essa questão como sempre se tentou durante estes anos todos. Esta atitude em nada vai abonar à vossa reputação enquanto Chefe de Estado. Porquê? Porque as consequências resultantes da tragédia são tão transversais que angolano algum, nenhum mesmo, quer dentro como os da diáspora, não tenha sido atingido directa ou indirectamente com os “estilhaços” do massacre.
Daí que sugiro a vossa Excelência, senhor Presidente da República e actual vice presidente do MPLA, que em nome da verdade e da justiça que foi negada às vítimas da tragédia, ao menos tenha a hombridade de ordenar a institucionalização da Comissão que proponho, para que nos possamos verdadeiramente reconciliar.
Valho-me da ocasião, para expressar, antecipadamente, os meus sinceros agradecimentos, subscrevendo-me com elevada estima e consideração.
Luanda, 27 de Maio de 2018.
MIGUEL FRANCISCO “Michel”
(Sobrevivente)»