A manchete do Boletim Oficial do regime de sua majestade o rei de Angola, José Eduardo dos Santos, diz tudo: “Portugal agradece apoio”. Apoio, neste caso, à escolha de António Guterres como secretário-geral da ONU.
Por Orlando Castro
Em Luanda, a secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Teresa Ribeiro, agradeceu “o apoio activo de Angola” na candidatura de António Guterres: “Portugal está grato a tudo quanto Angola tem feito nesse domínio”.
No passado dia 21 de Setembro, o antigo primeiro-ministro de Portugal agradecera já o apoio de Angola à sua candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas, elogiando (é o preço a pagar pelo apoio) o papel do país no contexto internacional.
António Guterres, que foi igualmente alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, falava à rádio pública angolana, sobre o apoio de Angola, salientando que tem sido “um instrumento muito importante” para que tenha possibilidades de vencer.
“Gostaria de exprimir toda a minha gratidão e o meu apreço pelo que tem sido a posição do Presidente José Eduardo dos Santos, do Governo e povo de Angola, a solidariedade angolana tem calado muito fundo no meu coração”, referiu Guterres mostrando que, afinal, bajular é uma questão genética em (quase) todos os socialistas – e não só – portugueses.
Em Março, o Presidente José Eduardo dos Santos (que como Guterres bem sabe está no poder há 37 anos sem nunca ter sido nominalmente eleito) recebeu em audiência, em Luanda, o candidato português à sucessão de Ban Ki-moon.
“Agora compete aos Estados-membros, entre os quais Angola, decidir, mas não queria deixar de exprimir esta grande gratidão em relação à posição angolana, que calou muito fundo no meu coração”, realçou Guterres que agora, já eleito, irá com certeza beijar a mão de sua majestade o rei de Angola, José Eduardo dos Santos. Aliás, terá muitas mãos para beijar, inclusive a de Angela Dorothea Merkel que, recorde-se, queria que Guterres fosse dar uma volta ao bilhar grande.
Pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, Georges Chikoti, Angola disse que “esta eleição é muito importante para África, para a CPLP, para Angola e para a comunidade internacional em geral. O engenheiro Guterres tem sido um lutador incansável pelas causas importantes da comunidade internacional, em particular dos refugiados”.
Chikoti acrescentou: “Temos a certeza que nessa qualidade (secretário-geral) ele vai olhar muito para África e para Angola em particular, queremos esperar que ele consiga promover alguns quadros importantes do continente africano, particularmente da lusofonia”.
Enquanto candidato e por necessidade material de recolher apoios, António Guterres confundiu deliberadamente Angola com o regime, parecendo (sejamos optimistas) esquecer que, por cá, existem angolanos a morrer todos os dias, que temos um dos regimes mais corruptos do mundo e que somos o país com o maior índice mundial de mortalidade infantil.
Na sua última visita a Angola, António Guterres disse que, “por Angola estar envolvida em actividades internacionais extremamente relevantes, vejo-me na obrigação de transmitir pessoalmente essa pretensão às autoridades angolanas”.
Pois é. Está até no Conselho de Segurança da ONU. E, pelos vistos, isso basta. O facto – repita-se todas as vezes que for preciso – de ter desde 1979 um Presidente da República nunca nominalmente eleito, de ser um dos países mais corruptos do mundo, de ser o país onde morrem mais crianças… é irrelevante.
“Naturalmente como velho amigo deste país, senti que era meu dever, no momento em que anunciei a minha candidatura a secretário-geral das Nações Unidas, vir o mais depressa possível para poder transmitir essa intenção as autoridades angolanas”, sublinhou António Guterres.
Guterres tem razão. É um velho amigo do regime. Mas confundir isso com ser amigo de Angola e dos angolanos é, mais ou menos, como confundir o Oceanário de Lisboa com o oceano Atlântico. Seja como for, confirmou-se que a bajulação continua a ser uma boa estratégia. Nesse sentido, António Guterres não se importa de continuar a considerar José Eduardo dos Santos como um ditador… bom.
António Guterres, além de ter sido primeiro-ministro luso entre 1995 a 2002, exerceu o cargo de alto comissário da ONU para os Refugiados, durante os últimos dez anos. Anunciou a sua candidatura ao cargo de secretário-geral da ONU, em Fevereiro último.
António Guterres sabe que todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos há angolanos que morrem de barriga vazia e que 70% da população passa fome;
António Guterres sabe que 45% das crianças angolanas sofrem de má nutrição crónica, e que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos;
António Guterres sabe que no “ranking” que analisa a corrupção, Angola está entre os primeiros, tal como sabe que a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens, ou seja, o cabritismo, é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos e que o silêncio de muitos, ou omissão, deve-se à coacção e às ameaças do partido que está no poder desde 1975.
António Guterres também sabe que o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.
Mas também é evidente que António Guterres sabe que ser amigo de quem está no poder, mesmo que seja um ditador, vale muitos votos.
Seja como for, António Guterres não deve gozar com a nossa chipala nem fazer de todos nós uns matumbos.
Ainda bem, talvez, que não precisou do apoio da Coreia do Norte. Se tivesse precisado, como homem educado, teria de agradecer a Kim Jong-un. E quanto aos eventuais problemas internos , só aos norte-coreanos incumbe resolver. Pois!
Claro que Guterres teria que agradecer a Angola e ao seu Presidente. Como homem educado não poderia proceder de outro modo. Quanto aos eventuais problemas internos, aos angolanos e só aos angolanos incumbe resolver.