O Ministério Público do Huambo pediu, como esperado e de acordo com as instruções superiores, a condenação de nove seguidores e do líder da seita angolana “Kalupeteka” pelo homicídio qualificado de nove polícias em Abril de 2015. E quanto aos fiéis, centenas, também assassinados? Isso não conta.
Olíder da seita “A luz do mundo” e principal visado neste julgamento, José Julino Kalupeteka, também apelidado de “profeta” pelos seus milhares de seguidores, recusou a autoria dos confrontos ou de actos de violência, tendo a defesa pedido, na quinta-feira, a absolvição dos acusados.
A defesa insiste que, ao fim de praticamente três semanas de julgamento, não ficou provado que o líder da seita terá desobedecido, resistido às autoridades ou orientado os seus seguidores a criarem postos de vigilância para, posteriormente, agredirem os agentes da Polícia Nacional.
Já o Ministério Público concluiu, nas alegações finais, que os actos preparatórios alegadamente verificados antes do crime, a 16 de Abril – confrontos que levaram à morte, segundo a versão oficial, de nove polícias e 13 fiéis, no Huambo -, os elementos da igreja “A luz do mundo” prepararam machados, facas, mocas para atacar os “inimigos da seita ou mundanos”.
“Inimigos da seita ou mundanos” que, recorde-se, eram forças de segurança altamente armadas mas que, segundo o Ministério Público , na puderam contra populares armados com… facas, machados e mocas.
O julgamento decorre sob forte vigilância policial (não vão aparecer fiéis armados com facas, machados e mocas) no Tribunal do Huambo desde 18 de Janeiro e no dia 22 de Fevereiro deverá ser anunciada a data para a leitura da sentença deste caso.
A Polícia e investigadores chamados a testemunhar garantiram em tribunal que, além do ataque atribuído aos seguidores, havia um plano de defesa armado organizado pelos fiéis no acampamento em causa. Que planos? Não se sabe.
Em causa estão os confrontos entre os fiéis e a Polícia, cujos agentes tentavam, de acordo com a versão oficial, dar cumprimento a um mandado de captura – na sequência de outro caso de violência na província vizinha do Bié e que também está a ser julgado – de Kalupeteka e outros dirigentes e alguns dos seguidores que estavam concentrados no acampamento daquela igreja, no monte Sumi, província do Huambo.
A defesa alegou anteriormente que na zona dos confrontos estariam cerca de oito dezenas de adultos, crianças e bebés, tendo a Polícia apresentado em tribunal mais de 80 armas, como mocas e machados, apreendidos no local, suspeitando por isso da veracidade destas provas.
Neste processo, Kalupeteka – de 46 anos e detido preventivamente desde Abril – é o principal visado dos dez acusados e está indiciado pela co-autoria material de nove crimes de homicídio qualificado consumado, crimes de homicídio qualificado frustrado e ainda de desobediência, resistência e posse ilegal de arma de fogo.
Os restantes elementos são visados igualmente por crimes de homicídio qualificado consumado e frustrado.
A oposição (política e social) angolana denunciou na altura dos crimes a existência de centenas de mortos entre os populares, naquele acampamento, e pediu uma investigação internacional, acusações e pretensão negadas pelo Governo.
A acusação deduzida pelo Ministério Público do Huambo contra os homens, com idades entre os 18 e os 54 anos, refere que as mortes dos agentes da polícia resultaram essencialmente de agressões com objectos contundentes, inclusive paus, punhais e catanas, às quais alguns polícias responderam com disparos.
A seita em causa, não reconhecida pelo Estado angolano, era conhecida – de acordo com a propaganda do regime – por advogar o fim do mundo em 2015 e não permitir a alfabetização ou vacinação dos fiéis, tendo sido criada por José Julino Kalupeteka em 2006, depois de este ter sido expulso da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
(Mais) uma história mal contada
Quem esperava que o julgamento permitiria, mesmo que de forma ténue, esclarecer os acontecimentos de Abril de 2015, viu esse desejo frustrado.
Recorde-se que, em comunicado de imprensa, a organização não-governamental britânica Human Rights Watch (HRW), sob o título “Houve um massacre no Huambo, Angola?” considerava que o julgamento “pode, finalmente, lançar luz sobre os eventos”.
Aquela organização de defesa dos direitos humanos salienta ser “evidente que a morte indiscutível de nove agentes da polícia requer justiça e que as autoridades devem certificar-se de que o tribunal é capaz de conduzir o julgamento de forma independente, imparcial e competente”.
A HRW defende ainda que as testemunhas do governo no julgamento “também devem ser transparentes quanto à conduta da polícia e dar resposta às acusações de que dezenas de pessoas desarmadas, incluindo mulheres e crianças, podem ter sido assassinadas a tiro”.
“O conflito eclodiu quando a polícia procurou levar Kalupeteka para interrogatório com base em alegações de incentivo à desobediência civil de cerca de 2.000 dos seus fiéis. Kalupeteka liderava uma facção dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia que acreditava que o mundo iria acabar em 2015 e havia encorajado os fiéis a abandonar as respectivas vidas e a retirar-se para um campo isolado”, recorda a HRW.
O governo negou que tenham morrido dezenas (muito menos centenas) de pessoas, como sustentam grupos de oposição e activistas nacionais e internacionais, mas recusou o pedido de acesso ao local dos acontecimentos feito também pelo Alto Comissariados da ONU para os Direitos Humanos “para a abertura de uma investigação independente”.
Após o incidente, as forças de segurança angolanas isolaram a área, “declarando-a zona militar”.
“Os activistas dizem que os soldados enterraram um elevado número de cadáveres em valas comuns e vários familiares de membros da seita declararam que ainda não foram capazes de enterrar os seus entes queridos. Somente duas semanas após o incidente foi concedido acesso ao local a um pequeno grupo de deputados e jornalistas, a quem foi feita uma visita orquestrada e vigiada de perto”, acrescenta a HRW no seu comunicado.
“O julgamento de Kalupeteka sublinha a necessidade de justiça, tanto para as famílias dos agentes assassinados como para as famílias dos membros da seita que morreram. O julgamento deverá apresentar as investigações internas do próprio governo sobre os acontecimentos que, de uma forma ou outra, deveriam ser tornadas públicas pelo governo”, defende a HRW.
A ONG britânica questiona, em conclusão, que se “afinal nada há a esconder, por que razão deverão os relatórios manter-se confidenciais? E por que não permite o governo uma investigação independente ao que aconteceu?”.