REGRESSO LUXUOSO AO PASSADO

Cerca de dois mil brasileiros vão fazer uma travessia de barco, numa viagem de 21 dias, até Angola, “para encontrarem os entes queridos” atirados no Oceano Atlântico, numa jornada de autoconhecimento e para “recuperar o que perderam”.

Intitulada de “A Grande Travessia: o Retorno, o Reencontro, o Reconhecimento, a Reparação”, a embarcação parte da cidade brasileira do Rio de Janeiro, no dia 5 de Dezembro, em direcção a Luanda, explicou à Lusa o professor Dagoberto José Fonseca, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista de Araraquara (FCLAr/UNESP) e responsável pelo projecto.

Serão sete dias de ida, sete dias presentes em Angola e sete dias de volta, resumiu o professor, sublinhando que falta ao Brasil conhecer e reconhecer os antepassados.

“Nós precisamos fazer o caminho de volta também pelo Oceano Atlântico para conhecer a história que os nossos fizeram e também para recuperar aqueles que foram jogados no Oceano Atlântico”, disse o professor, apontando que cerca de dois milhões e meio de pessoas foram atiradas no Oceano ao longo dessa trajectória do século XVI e XIX, só daqueles que vieram de Angola para o Brasil.

Para além deste número, estima-se que cinco milhões de africanos tenham chegado ao Brasil durante a época colonial portuguesa.

“Nós somos a mesma família, separados por uma história do tráfico, uma história do processo de escravização e desse colonialismo português, e de modo que somos a mesma família, separadas pelo Atlântico e divididos por uma história cruel, que foi o ‘escravismo’, e esse comércio transatlântico de pessoas submetidas ao ‘escravismo'”, disse o professor.

Em Angola, os dois mil brasileiros vão realizar acções voltadas para a investigação e o turismo cultural, com especial destaque para o afro-turismo, que visa resgatar e revisitar a história africana em diferentes pontos de Angola.

“Isso nunca aconteceu, é inédito na história humana este caminho de volta com um grupo grande de pessoas pelo Oceano Atlântico”, enalteceu Dagoberto José Fonseca.

Este trabalho envolve visitas a locais históricos e simbólicos, como o Museu da Escravatura, o Forte São Basílio e o antigo reino do Congo, promovendo uma reflexão sobre a memória e a herança cultural africana.

Além disso, a programação inclui diversas actividades culturais e institucionais, como a realização de uma festa literária Angola-Brasil e um festival de arte e cultura Brasil-Angola. O grupo também vai participar em encontros com escritores, visitas a universidades, hospitais, maternidades, centros culturais como o Talapona e o Centro de Belas, bem como à Feira do Artesanato do Benfica, para além de um safari aos locais onde, hoje, se alimentam gratuitamente os 20 milhões de pobres angolanos – as lixeiras.

Estão igualmente previstas reuniões com empresários dos dois países e encontros em instituições como a embaixada e o consulado do Brasil em Angola, o Instituto Guimarães Rosa e a União dos Escritores Angolanos, bem como com a elite “monárquica” e (nem de propósito) escravocrata que domina o re(i)pública há 50 anos, o MPLA.

“Toda a viagem será custeada pelo Brasil, por instituições públicas e privadas do Brasil, estando garantido também que o Estado do MPLA vai dar todo o suporte no que diz respeito ao transporte, dentro do território de Angola, a protecção pessoal, a segurança, alojamento e demais encargos existentes, sublinhou, frisando estarem a trabalhar numa “lógica da reparação” e por isso “seria muito bem-vindo” o apoio de Portugal.

Uma das modalidades de participação no projecto será por meio de editais públicos, nos quais as pessoas interessadas podem inscrever-se. A selecção será feita com base em critérios que incluem a representação de 20 estados brasileiros, garantindo equilíbrio entre as regiões e entre os diferentes sectores de actuação de actividade e representatividade.

“Tem vagas reservadas para as comunidades quilombolas distribuídas pelo território brasileiro, nós vamos ter o pessoal ligado a diversas áreas, educação, área da saúde”, explicou o professor.

A viagem, que serve para assinalar também os 50 anos da compra de Angola a Portugal pelo MPLA, oferecerá cursos principais, cada um voltado para uma área estratégica: educação, saúde, assistência social e humana, afro-turismo e sector empresarial. Estes cursos foram pensados para abranger diversas formações e competências, promovendo o intercâmbio de saberes e experiências entre os participantes.

“Nós vamos ter o pessoal ligado ao samba, as comunidades do samba também representadas, já que o samba veio de Angola, veio do semba, de Angola, e você vai ter também as pessoas ligadas às religiões de matrizes africanas, o candomblé de Angola, e a umbanda, vamos ter também a representação de alguns padres, algumas freiras, e alguns pastores também evangélicos”, disse.

Para além disso, vai ser constituída “uma frente parlamentar negra, de deputados para eles se encontrarem também com os membros da Assembleia Nacional de Angola”, afirmou Dagoberto José Fonseca.

UMA ESPÉCIE DE PARAÍSO BRASILEIRO

O Brasil investiu quase 20 mil milhões de dólares (18 mil milhões de euros) em Angola nas duas últimas décadas e promoveu mais de 75 projectos de cooperação, segundo o embaixador daquele país em Luanda. Além disso, pela voz do embaixador brasileiro, nega a existência de casos de corrupção ligados à emissão de vistos e anunciou (Maio de 2024) “para breve” a reabertura de um consulado geral para atender “a explosão” de pedidos, que quintuplicaram num ano.

Em entrevista à Lusa, Rafael Vidal, o embaixador do Brasil em Angola, focou a construção conjunta e “irmandade” entre os dois países, ambos ex-colónias portuguesas, e a parceria diplomática “muito intensa” desde a independência de Angola, em 1975, que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer.

O Brasil tem uma parceria estratégica com Angola – a segunda em África, além da África do Sul – e foi o país que mais recebeu fundos do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) num total de 3,5 mil milhões de dólares (3,22 mil milhões de euros), já reembolsados, “para ajudar na reconstrução de Angola”, após o final da guerra civil, em 2002.

“As grandes empresas de engenharia e construção vieram, instalaram-se e muitas seguem por cá, investiram, essas obras são visíveis”, disse o diplomata, salientando a importância da diplomacia presidencial retomada no terceiro mandato de Lula da Silva, que escolheu Angola para a sua primeira visita.

“O Presidente Lula desde o seu primeiro mandato sempre teve essa actuação importante, sobretudo nas nossas parcerias mais importantes no eixo sul-sul”, notou Rafael Vidal, acrescentando que “todas as parcerias internacionais são bem-vindas”.

“Não estamos em Angola para deslocar ou alienar outros parceiros, não entramos nessa corrida (…). Acreditamos no princípio da cooperação à medida do Estado que recebe a cooperação e no princípio da responsabilidade internacional, não nos desenvolvemos se os nossos vizinhos não se desenvolverem”, declarou o embaixador, reforçando: “o Brasil não está aqui porque outros países estão, estaria aqui mesmo se nenhum deles estivesse”.

Rafael Vidal adiantou que o Brasil já estabelecera mais de 75 projectos de cooperação e já investiu mais de 20 mil milhões de dólares (18,4 mil milhões de euros) em Angola em duas décadas. “Temos a maior comunidade brasileira de África, uma comunidade empresarial, dinâmica, somos 27 mil brasileiros”, realçou.

Também o nível de comércio regressou aos níveis pré-pandemia, atingindo cerca de 1,5 mil milhões de dólares (1,38 mil milhões de euros), com uma balança comercial equilibrada entre 2022 e 2023.

“Angola exporta hoje muito mais petróleo, por exemplo”, salientou o embaixador brasileiro, destacando o “momento muito especial” da relação entre os dois países graças à retoma da diplomacia presidencial de Lula da Silva.

Como frutos dessa diplomacia, apontou realizações como o primeiro congresso do banco de leite humano, “com base na experiência angolana” e a primeira participação de startups brasileiras na Angola Startup Summit.

Entretanto, o embaixador brasileiro negou a existência de casos de corrupção ligados à emissão de vistos e anunciou “para breve” a reabertura de um consulado geral para atender “a explosão” de pedidos, que quintuplicaram num ano.

Rafael Vidal nota que o problema se tem vindo a avolumar desde o fim da pandemia, com o aumento do número de angolanos que querem viajar para o Brasil, o que fez com que a procura de vistos passasse de uma média anual de 5.000 vistos para os actuais 25.000 a 30.000 pedidos, quase 700% mais do que em 2022.

Muitos requerentes queixam-se de excesso de burocracia e da demora, que leva a recorrer a intermediários, mas Rafael Vidal considera que não se trata de um problema da embaixada, já que “é impossível os recursos humanos e físicos crescerem no mesmo ritmo” da procura.

Legenda: 25.08.2023 – Luiz Inácio Lula da Silva no Memorial António Agostinho Neto, o responsável pelo genocídio de milhares (cerca de 80 mil) angolanos nos massacres de 27 de Maio de 1977.

Folha 8 com Lusa

Artigos Relacionados

Leave a Comment