TAMBÉM HÁ GUERRAS EM ÁFRICA

Em Agosto de 2008, Omar al-Bashir, o “democrata” presidente do Sudão, responsável pelo genocídio em Darfur (qualquer coisa como 300 mil mortos), escreveu ao seu homólogo angolano, José Eduardo dos Santos, pedindo a ajuda de Luanda (do Governo, do MPLA, tanto faz) para que fossem suspensas as iniciativas que visavam pôr no terreno o mandato de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra si.

Foi simpático que Omar al-Bashir tenha pedido ajuda ao seu homólogo e amigo líder do MPLA e, na altura, dono de Angola que não regateou esforços para que o presidente do Sudão continuasse a matar, perdão, a salvar milhares de pessoas em Darfur.

O pedido foi feito em carta entregue pelo ministro sudanês do Turismo, Joseph Dong. Pela habitual filantropia e humanismo de Eduardo dos Santos, não foi difícil calcular que o presidente sudanês continuaria a ter o apoio do MPLA/Governo.

Até porque, convenhamos, há um enorme exagero quando se diz que em Darfur morreram 300 mil pessoas. Dados independentes, passíveis até de serem organizados por uma equipa nomeada pelo MPLA, certamente revelarão que o número de mortos não terá passado os 299.999. Portanto…

“Os inimigos do Sudão sabem que o nosso presidente vai ganhar as eleições e isso é motivo para eles trabalharem contra a paz e tranquilidade no nosso país”, asseverou o ministro sudanês.

Onde e quando é que todos nós já ouvimos algo semelhante? Onde? Em Angola. Quando? Em 1992, por exemplo.

Na mesma linha de que é preciso proteger os bons rapazes, a União Africana pediu ao Conselho de Segurança da ONU para suspender o processo judicial aberto pelo TPI contra o presidente sudanês, para não comprometer o processo de paz no Sudão. Estão a ver como isto é tudo malta fixe?

Também o então secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, e a chanceler alemã, Angela Merkel, manifestaram algumas reservas quanto ao mandado de captura por recearem que ponha em risco os esforços de paz da ONU na região.

Não há dúvida. Tal como em Angola havia (e continua a haver) angolanos e, no dizer do então ministro da Defesa, Kundy Paihama, kwachas; em África há africanos de primeira e os kwachas lá do sítio. Daí que ONU, Alemanha, Rússia, China e mais alguns encobertos continuassem a dar apoio ao candidato ao Nobel da Paz que dá pelo nome de Omar al-Bashir.

Árabes e outros energúmenos

Na altura, a 21ª cimeira árabe, que decorreu em Doha, rejeitou o mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o presidente sudanês, Omar el-Bashir, segundo a Declaração final lida pelo secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa.

É assim mesmo. Crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Darfur? Mais de 300 mil mortos? Nada disso. É tudo, como disse Muammar Kadhafi, na altura presidente em exercício da União Africana, obra de “uma nova forma de terrorismo mundial” que dá pelo nome de TPI.

“Sublinhamos a nossa solidariedade com o Sudão e a nossa rejeição das decisões do TPI contra o presidente Omar el-Bashir e apoiamos a unidade do Sudão”, afirmava o texto da Liga Árabe. Dirigindo-se aos seus pares, Omar el-Bashir saudou “o apoio ao Sudão e a recusa das decisões injustas” do TPI.

“Prometo-vos tudo fazer para conseguir a estabilidade e a paz em todo o território sudanês”, acrescentou o presidente, certamente convicto que em Darfur ainda havia mais uns milhares à espera de serem mortos.

A União Africana pediu nessa época aos países que a integravam e às Nações Unidas que desbloqueassem fundos necessários à nova fase do plano de paz para o Darfur, que previa o envio de 3.000 homens para o território sudanês.

Mas o que é que isso importa. São pretos e, por isso, a comunidade internacional (EUA, Europa, ONU) pode dormir descansada. Dormir e ter, pelo menos, três refeições por dia nos melhores hotéis do mundo civilizado.

O então alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados (hoje seu secretário-geral), António Guterres, afirmou que em Darfur existe uma “catástrofe” humanitária. “Centenas de pessoas continuam a morrer vítimas da violência incessante e milhares estão a ser forçadas a abandonar as suas casas. Se as coisas não melhorarem caminhamos para uma catástrofe de grandes proporções”, escreveu o chefe do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Mas o que é que isso importa. São pretos e, por isso, a comunidade internacional (EUA, Europa, ONU) pode dormir descansada. Dormir e ter, pelo menos, três refeições por dia nos melhores hotéis.

“É necessária uma acção internacional urgente para pressionar as partes em conflito e todas as pessoas envolvidas no terreno a deixarem as agências humanitárias trabalharem em segurança. Milhares de vidas dependem disso”, alertava o alto-comissário.

Mas o que é que isso importa. São pretos e, por isso, a comunidade internacional (EUA, Europa, ONU) pode dormir descansada. Dormir e ter, pelo menos, três refeições por dia nos melhores hotéis…

De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (em alguns casos continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos dos colonizadores. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.

Neste conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem? Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano (negro) é obra desenganada. Infelizmente.

De uma forma geral, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso, que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem”, escreveu Eugénio Costa Almeida no seu livro “África no Centenário da Guerra de 1914-1918”.

Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento do seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando.

Suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição ocidental em dominar as riquezas autóctones.

Em Angola (tal como noutras colónias) as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.

A tudo isto acresce a megalómana tese europeia de que a História só é válida quando são os europeus a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.

”Recentes documentos, entretanto, disponibilizados, mostram que a presença dos africanos foi muito maior do que parecia expectável”, assinala Eugénio Costa Almeida, acrescentando que (…) “a participação de expedicionários africanos (soldados e carregadores) junto das forças anglo-francesas se elevou a mais de 500.000 indivíduos; (…) entre os mais de 1.186.000 tropas francófonas mortas em combate, cerca de 71.100 eram provenientes das colónias francesas da Argélia, Madagáscar, Marrocos, Senegal e Tunísia”.

Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum…

O orgasmo dos chefes de posto

Março de 2015. O regime angolano gozava à farta com a comunidade internacional, desde a ONU à UA, passando pela CPLP. Ciente da sua impunidade, dizia o que queria, fazia o que muito bem entendia e, é claro, todos batiam palmas. Era, continua a ser, a hipocrisia no seu maior expoente.

Na altura, o ministro da Justiça do MPLA, Rui Jorge Carneiro Mangueira, afirmou perante o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas que o seu Governo considerava a liberdade de expressão como um direito fundamental e, perante uma anedota de tão mau gosto, ninguém o zurziu. Pelo contrário. Aplaudiram.

Sempre que é chamado a manifestar-se sobre as questões dos direitos humanos, o regime repete a mesma lengalenga. Os factos indicam o contrário, mas como ninguém quer contrariar o regime (antes de Eduardo dos Santos e agora de João Lourenço), comem e calam.

O regime dizia que não só respeita a liberdade de expressão como a incentivava. Aplica a mesma propaganda quanto ao direito de opinião, de associação e de reunião. Diz que combate a impunidade de agentes do Estado e a corrupção. Todos sabem que nada disso se passa. Todos sabem que pensar de forma diferente é considerado um crime contra o Estado, tal como sabem que todos os que não vão à missa do “querido líder” são culpados até prova – que nunca existe – em contrário.

Para fingir que é uma organização séria, impoluta e credível, a ONU faz perguntas desnecessárias pois, desde sempre, sabe que o regime contraria os factos com uma colectânea de propaganda em que junta, numa simbiose perfeita, poder económico e militar, sempre enquadrado pela chantagem.

“Em Angola são realizadas várias reuniões e manifestações, onde são assegurados e garantidos os direitos dos manifestantes”, respondia o ministro da Justiça e Direitos Humanos, Rui Mangueira. Ele sabia o que dizia mas, por uma questão de sobrevivência até física, não dizia o que sabia.

“Nos casos em que há interrupção da manifestação, o que sucede é que, por vezes, os manifestantes e contra-manifestantes desencadeiam agressões mútuas que levam à perturbação da ordem pública e agressões aos agentes da Polícia Nacional que se encontram no perímetro para garantir a segurança dos manifestantes, a normal circulação e a tranquilidade”, acrescentava Rui Mangueira.

Quando assim não é o regime arranja maneira de assim ser. O que se passou em Março de 2015 em Cabinda foi o mais paradigmático exemplo. Os activistas dos direitos humanos anunciaram uma manifestação. Mesmo antes de ela começar, foram presos. Depois o regime veio dizer que são as regras de uma democracia e de um Estado de Direito. Talvez sejam na Coreia do Norte.

O ministro afirmou que Angola respeita a liberdade de expressão e que tem feito cumprir as leis que garantem a liberdade de reunião e de imprensa. E também disse que o Governo não encerrou nenhum meio de comunicação social.

Tem razão. A lei também diz que as forças de segurança não devem matar. Mas a verdade é que os manifestantes morrem. Mas, está bem de ver, não foram mortos. Suicidaram-se ao atirarem-se contra as balas disparadas… para o ar.

Os sucessivos discursos de Rui Mangueira, todos cópias uns os outros, causavam náuseas a qualquer defensor daquilo que que Angola não é: uma democracia e um Estado de Direito. Mas isso não importa. Tal como não importava na Líbia de Khadafi, no Egipto de Mubarak, no Iraque de Saddam, no Sudão de Omar Al-Bashir, no Cambodja de Pol Pot, na Itália de Mussolini, na Rússia de Vladimir Putin ou no Zimbabué de Robert Mugabe.

Na altura, para Raúl Tati, um ex-padre que viveu na carne e na alma a “liberdade” do regime angolano em Cabinda, estes discursos eram apenas “um relatório para fazer o marketing do regime”, num país onde – diz com todas as letras – “a repressão é brutal”.

“Eu diria que é um discurso surrealista. Não é aquela Angola que conhecemos que foi apresentada. Gostaria que isso fosse exactamente a realidade de Angola sobretudo em alguns capítulos, como a liberdade de manifestação, de reunião e de associação”, disse Raúl Tati, fundador da extinta Mpalabanda – Associação Cívica de Cabinda.

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