PRIMEIRO AS “PESSOAS” E SÓ DEPOIS OS PRETOS?

No artigo “Africanos devem protestar contra o racismo incubado de António Guterres”, William Tonet (Director do Folha 8) mostra e demonstra que o Secretário-Geral da ONU deveria ser julgado pelo, no mínimo, crime de inacção na guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia. Esse texto deveria, aliás, passar a ser de leitura obrigatória na ONU.

Por Orlando Castro

Em Outubro de 2016, a manchete do Boletim Oficial do regime de sua majestade o rei de Angola, José Eduardo dos Santos, dizia tudo: “Portugal agradece apoio”. Apoio, neste caso, à escolha de António Guterres como secretário-geral da ONU.

Em Luanda, a secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Teresa Ribeiro, agradeceu “o apoio activo de Angola” na candidatura de António Guterres: “Portugal está grato a tudo quanto Angola tem feito nesse domínio”.

Antes, no dia 21 de Setembro, o antigo primeiro-ministro de Portugal agradecera já o apoio de Angola à sua candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas, elogiando (é o preço a pagar pelo apoio) o papel do país no contexto internacional.

António Guterres, que foi igualmente alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, falava à rádio pública do MPLA, sobre o apoio de Angola, salientando que tem sido “um instrumento muito importante” para que tenha possibilidades de vencer.

“Gostaria de exprimir toda a minha gratidão e o meu apreço pelo que tem sido a posição do Presidente José Eduardo dos Santos, do Governo e povo de Angola, a solidariedade angolana tem calado muito fundo no meu coração”, referiu Guterres mostrando que, afinal, bajular é uma questão genética em (quase) todos os socialistas – e não só – portugueses.

Em Março, o Presidente José Eduardo dos Santos (que como Guterres bem sabe está no poder há 37 anos sem nunca ter sido nominalmente eleito) recebera em audiência, em Luanda, o candidato português à sucessão de Ban Ki-moon.

“Agora compete aos Estados-membros, entre os quais Angola, decidir, mas não queria deixar de exprimir esta grande gratidão em relação à posição angolana, que calou muito fundo no meu coração”, realçou Guterres que deverá ter beijado a mão a muitos dos seus apoiantes, inclusive a de Ângela Dorothea Merkel que, recorde-se, queria que Guterres fosse dar uma volta ao bilhar grande.

Pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros da altura, Georges Chikoti, Angola disse que “esta eleição é muito importante para África, para a CPLP, para Angola e para a comunidade internacional em geral. O engenheiro Guterres tem sido um lutador incansável pelas causas importantes da comunidade internacional, em particular dos refugiados”.

Chikoti acrescentou: “Temos a certeza que nessa qualidade (secretário-geral) ele vai olhar muito para África e para Angola em particular, queremos esperar que ele consiga promover alguns quadros importantes do continente africano, particularmente da lusofonia”.

O que se passou com os africanos na guerra na Ucrânia, como afirma o William Tonet, comprova o nível de estima e consideração que António Guterres não tem pelos africanos… pretos.

Enquanto candidato e por necessidade material de recolher apoios, António Guterres confundiu deliberadamente Angola com o regime, parecendo (sejamos optimistas) esquecer que, por cá, existem angolanos a morrer todos os dias, que temos há 46 anos um dos regimes mais corruptos do mundo e que somos um dos países com o maior índice mundial de mortalidade infantil.

Na sua última visita a Angola, António Guterres disse que, “por Angola estar envolvida em actividades internacionais extremamente relevantes, vejo-me na obrigação de transmitir pessoalmente essa pretensão às autoridades angolanas”.

Pois é. Esteve até no Conselho de Segurança da ONU. E, pelos vistos, isso basta. O facto – repita-se todas as vezes que for preciso – de ter tido durante 38 anos um Presidente da República nunca nominalmente eleito, de ser um dos países mais corruptos do mundo, de ser o país onde morrem mais crianças… é irrelevante.

“Naturalmente como velho amigo deste país, senti que era meu dever, no momento em que anunciei a minha candidatura a secretário-geral das Nações Unidas, vir o mais depressa possível para poder transmitir essa intenção as autoridades angolanas”, sublinhou António Guterres.

Guterres tem razão. É um velho amigo do regime. Mas confundir isso com ser amigo de Angola e dos angolanos é, mais ou menos, como confundir o Oceanário de Lisboa com o oceano Atlântico. Seja como for, confirmou-se que a bajulação continua a ser uma boa estratégia. Nesse sentido, António Guterres não se importa de ter considerado José Eduardo dos Santos como um ditador… bom, de agora considerar João Lourenço como um ditador… excelente.

António Guterres sabe que todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos há africanos que morrem de barriga vazia e que, em Angola, 70% da população passa fome;

António Guterres sabe que 45% das crianças angolanas sofrem de má nutrição crónica, e que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos;

António Guterres sabe que no “ranking” que analisa a corrupção, Angola está entre os primeiros, tal como sabe que a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens, ou seja, o cabritismo, é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos e que o silêncio de muitos, ou omissão, deve-se à coacção e às ameaças do partido que está no poder desde 1975.

António Guterres também sabe que o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.

Mas também é evidente que António Guterres sabe que ser amigo de quem está no poder, mesmo que seja um ditador, vale muitos votos.

Seja como for, António Guterres não deve gozar com a nossa chipala nem fazer de todos nós uns matumbos. A paciência dos africanos em relação aos dirigentes mundiais tem limites.

«Portugal que tantas ditaduras apoia e subvenciona, sabe bem o que é isso e a França que explora crianças nas minas, do Leste congolês a zona do Sahel, também o sabe. Porque os interesses económicos falam mais alto que a vida humana. De Pretos! Mulatos ou brancos, nascidos nas nossas Áfricas, no quadro da nossa multirracialidade, menos discriminadora que a europeia e americana», afirma William Tonet, acrescentando: «Para desgraça dos que acreditam num mundo sem discriminação e racismo, mesmo na crise, em plena guerra, na Europa, impera na mente de alguns os resquícios colonialistas e de superioridade, na lógica da “lei de George Orwell: “todos somos iguais mas uns são mais iguais do que outros”.»

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