O SENHOR SILVA, PRESIDENTE DO PARLAMENTO PORTUGUÊS

Enquanto em Cabo Delgado, norte de Moçambique, morriam moçambicanos vítimas de ataques terroristas, o então ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, a partir de hoje a segunda figura do Estado (presidente do Parlamento), Augusto Santos Silva, sorria, olhava para o lado e justificava que a diplomacia europeia estava a preparar um “documento político” de enquadramento da missão europeia de apoio ao combate ao terrorismo. Quanta hipocrisia, quanta vilanagem, quanto nojo.

Por Orlando Castro

“O Serviço de Acção Externa está a trabalhar com a Comissão Europeia no documento político de abordagem de crise, que é essencial para que a missão de treino se possa fazer”, afirmou Augusto Santos Silva, durante um debate sobre política externa no Parlamento português.

O governante, que em Janeiro de 2021 liderou uma missão política a Maputo enquanto delegado do Alto Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa, Josep Borrell, explicou que, entretanto, estavam já a ser implementadas no terreno iniciativas de acção humanitária e apoio ao desenvolvimento.

Neste contexto, Santos Silva apontou um projecto de apoio à criação de emprego, que estava a ser gerido pela Cooperação Portuguesa. Seria, como se viu, no caso de Cabo Delgado, uma espécie de emprego para mortos.

A violência armada em Cabo Delgado, onde se desenvolvia o maior investimento multinacional privado de África, para a exploração de gás natural, estava a provocar uma crise humanitária com mais de duas mil mortes e 670 mil pessoas deslocadas, sem habitação, nem alimentos, o que levou as autoridades moçambicanas a pedir auxílio à UE.

Presumiram as autoridades moçambicanas que pedir auxílio seria uma forma de os moçambicanos estarem vivos quando a ajuda chegasse. Infelizmente enganaram-se.

Para melhor determinar o quadro de apoio a prestar às autoridades moçambicanas, Josep Borrell solicitou ao ministro dos Negócios Estrangeiros português que se deslocasse a Maputo enquanto seu representante, o que aconteceu em Janeiro.

No regresso da missão política a Maputo, Augusto Santos Silva adiantou que as prioridades de apoio identificadas em conjunto com as autoridades moçambicanas passam pelo reforço da cooperação entre a UE e Moçambique nas áreas da acção humanitária e dos projectos de apoio ao desenvolvimento e pelo “aumento significativo” da cooperação na área da segurança.

E enquanto a diplomacia europeia estava a preparar o “documento político”, os moçambicanos foram morrendo. Se não fossem pretos, certamente teriam mais sorte. Esta é que é a realidade. Ser vítima de terrorismo é só por si um drama. Ser negro é duplamente dramático. Ser negro e africano é ainda mais dramático. E se a ser negro e africano se juntar a dependência da Europa e sobretudo deste Portugal… é a morte certa.

Segundo esse engenheiro de obras feitas que dá pelo nome de Augusto Santos Silva, “o que está em causa é o apoio à formação e treino de forças militares moçambicanas, para que sejam mais capazes de responder à insurgência” bem como apoio logístico e de equipamentos. E tudo isso acontecerá se, entretanto, “ainda” houver moçambicanos vivos.

Africanos e europeus

De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (em alguns casos continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos dos colonizadores. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial, por exemplo, deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.

Neste conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem? Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano é obra desenganada. Infelizmente.

De uma forma geral, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso, que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem”.

Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento ao seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando.

Suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição ocidental em dominar as riquezas autóctones.

A tudo isto acresce a megalómana tese europeia de que a História só é válida quando são os europeus a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.

Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.

Santos Silva e a (sua) Angola do MPLA

No dia 24 de Maio de 2018, Augusto Santos Silva desmentiu “em absoluto” que as autoridades políticas portuguesas tenham exercido pressão política para que a justiça decidisse enviar o processo do ex-vice-Presidente angolano para Luanda, como afirmou a socialista Ana Gomes.

“No que me diz respeito, se a alegação de que houve pressão política quisesse dizer pressão das autoridades políticas portuguesas, eu desminto em absoluto”, afirmou aos jornalistas Augusto Santos Silva, acrescentando o que já se sabia. Ou seja, que conhece “muito bem o processo”.

Certamente falando em nome do PS e do Governo (talvez até de todos os partidos lusos e até do Presidente da República) Santos Silva – repita-se – garantiu que não houve pressão das autoridades políticas portuguesas. Certamente mandatado que deve estar por todas as autoridades políticas portuguesas, o Sr. Silva foi bem claro.

“Como aliás é público e notório, se houve comportamento das autoridades políticas portuguesas, foi de inteiro respeito pelo processo judicial e pelas decisões judiciais”, salientou Santos Silva. E salientou, como é seu costume, muito bem. Quem não se recorda de ele acusar os professores portugueses de “não distinguirem entre Salazar e os democratas”?

Em entrevista (Maio de 2018) à rádio TSF, a eurodeputada do PS Ana Gomes afirmou (ver artigo do Folha 8: “Portugal continua a ser uma lavandaria do MPLA”) que a transferência do processo de Manuel Vicente para Luanda (que era exigida pelas autoridades do MPLA e que o Governo português do PS – partido irmão do MPLA na Internacional Socialista – classificava como “o único irritante” nas relações bilaterais) “foi fabricada”.

Ana Gomes considerou que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa remeter o processo para Angola foi uma “decisão fabricada à medida do que é conveniente e com o objectivo de fazer desaparecer o irritante”.

Na mesma entrevista, a socialista considerou que Portugal “continua a ser uma lavandaria de Angola, num esquema de branqueamento de capitais”. Uma expressão que, comentou depois Santos Silva, “só responsabiliza” Ana Gomes.

“Apenas lamento que esta tentação que às vezes se tem de se procurar arvorar em justiceiro pode levar a níveis de irresponsabilidade política que me continuam a surpreender”, disse o perito dos peritos socialistas portugueses.

Emídio Rangel e Santos Silva

Emídio Rangel, ao seu estilo, reconheça-se, publicou no dia 13 de Janeiro de 2008, no Correio da Manhã, uma crónica em que – a propósito da política socialista para a RTP – colocou Santos Silva ao nível putrefacto das mais putrefactas latrinas de Portugal.

Nessa crónica disse, aliás, o que muitos jornalistas portugueses pensavam. Só pensavam.

“(…) Não tenho o mínimo de consideração nem de respeito intelectual pelo saloio que detém no Governo a pasta da Comunicação Social e com quem mantenho, há anos, dissidências agravadas. Pelas baboseiras e falta de rigor que punha nas crónicas do ‘Público’, pela arrogância e pesporrência que exibia quando era ministro da Educação e logo a seguir da Cultura, sem ter feito nada, mesmo nada, nem pela educação nem pela cultura, porque o considero um dos ministros mais incompetentes do Governo de José Sócrates, tendo falhado de forma grotesca todas as decisões que tomou no âmbito da Comunicação Social, como sempre referenciei nas crónicas que escrevi ao longo do mandato do actual primeiro-ministro”, escreveu Emídio Rangel a propósito deste Santos Silva.

Na altura, muitos jornalistas portugueses interrogaram-se: Seria Emídio Rangel o único jornalista a considerar Santos Silva “um dos ministros mais incompetentes do Governo de José Sócrates”? Não, não era o único. Era, contudo, dos poucos que o afirmavam preto no branco.

E porque razão os muitos dos que pensavam como Emídio Rangel ficaram calados? Porque, tal como hoje, “há a necessidade absoluta de dar de comer aos filhos”.

No caso dos professores ignorantes, Santos Silva, certamente democrata mesmo antes de ter nascido, disse igualmente que esses docentes nunca tinham “lutado contra o fascismo”.

Disse e com toda a razão. Não sabemos como é que o ministro (hoje, repita-se, a segunda figura do Estado português) quereria que os que nasceram depois do 25 de Abril de 1974 tivessem lutado contra o fascismo. Mas se Santos Silva o disse é porque haveria uma forma qualquer.

“A liberdade é algo que o País deve a Mário Soares, a Salgado Zenha, a Manuel Alegre… Não deve a Álvaro Cunhal nem a Mário Nogueira”, afirmou na altura Santos Silva, acrescentando que estes “lutaram por ela antes do 25 de Abril contra o fascismo, e lutaram por ela depois do 25 de Abril contra a tentativa de tentar criar em Portugal uma ditadura comunista”.

“O clima político que algumas pessoas estão a tentar desenvolver em Portugal é um clima de intimidação, é um clima próprio da natureza antidemocrática dessas forças. E se for preciso defender outra vez, como defendemos em 75, a liberdade em Portugal, o Partido Socialista, posso garantir, estará na linha da frente da defesa das liberdades públicas”, afirmou ainda o ministro Santos Silva.

Telecinco e (sempre) o Sr. Silva

Recorde-se que em Março de 2009, o então ministro dos Assuntos Parlamentares de Portugal (Santos Silva, obviamente) escusou-se a debater as candidaturas ao quinto canal de televisão, apesar de ter sido desafiado pelo porta-voz da Telecinco, argumentando não ser o Governo que devia avaliar a qualidade dos projectos.

“Não é ao Governo que compete avaliar a qualidade dos projectos, é à entidade reguladora” para a comunicação social (ERC), afirmou Augusto Santos Silva, considerando que “estaria a desrespeitar a lei se aceitasse participar em qualquer debate público sobre qualquer das propostas”.

Ah! Então era isso. É um estranho conceito de respeito pela lei quando, na véspera, disse que não se poderia entregar um canal a “projectos de vão de escada”. Sabemos que há vãos e vãos e escadas e escadas.

Na altura, o porta-voz da candidata ao quinto canal de televisão em sinal aberto, Carlos Pinto Coelho, desafiou o ministro a participar num debate público para discutir a “qualidade do seu projecto”.

Carlos Pinto Coelho exagerou no pedido. Isso seria pedir demasiado a um ministro que quando ouve falar em jornalistas e, dentro destes, sabia que algum se chamava Rangel, “puxa” logo da pistola.

O desafio de Carlos Pinto Coelho foi avançado na sequência de declarações de Santos Silva, que afirmou na comissão de Ética da Assembleia da República que “não se pode entregar [o 5º canal] a um projecto de vão de escada”.

Considerando tratar-se de um “equívoco”, Santos Silva esclareceu que não conhecia o teor de nenhum dos projectos, que nunca apreciou qualquer das candidaturas, que não se pronunciava sobre o teor da decisão da ERC e que não fez qualquer referência ao conteúdo das candidaturas apresentadas.

Equívoco? Certamente. Alguma vez o ministro falaria de vãos de escada? Claro que não. Aliás essa é uma expressão que não consta do léxico mais do que erudito de alguém que trata por tu tudo quando é cultura… e vãos de escada, bem como Manuel Vicente e João Lourenço.

Basta ver que foi antigo colunista do jornal “Público” (1992-1999, 2002-2005), cronista da “TSF-Rádio Jornal” (1997-1998), colaborador da Página Cultural do “Jornal de Notícias” (1978-1986) e director do “Acção Socialista”, órgão oficial do PS (2002-2005).

O ministro recordou ainda que o concurso foi lançado pelo Governo, mas conduzido pela ERC que “é independente do Governo”. Aliás, nem precisava de dizer. Todos, desde Portugal ao Burkina Faso, sabem qual é o conceito de independência que impera no reino quando o PS está no poder.

“O equívoco decorre de ter dito que num eventual novo concurso, os critérios e requisitos seriam tão exigentes como os deste concurso, porque uma licença de 15 anos tem que ser atribuída a quem garantir níveis de exigência fortes”, esclareceu como titular da pasta da propaganda de um governo que só queria acabar com os portugueses de segunda (todos aqueles que não são do PS). Tal como quer ajudar a acabar com os angolanos de segunda (todos aqueles que não são do MPLA).

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