ENTRE O FABRICO DE VACINAS E A PRODUÇÃO DE POBRES

A África do Sul lançou, na Cidade do Cabo, a primeira fábrica que produzirá vacinas contra a Covid-19 no continente. O país, que tem liderado a luta pela igualdade de acesso às vacinas anti-Covid-19, garante a produção de vacinas do princípio ao fim. Enquanto isso, outro país africano de referência, Angola, continua a produzir pobres (já passou os 20 milhões) e a apostar que é possível viver sem… comer.

Financiada pelo milionário das biotecnologias Patrick Soon-Shiong, a fábrica chamar-se-á NantSA e terá instalações investigação científica de ponta e capacidade para desenvolver e produzir vacinas e tratamentos de alta tecnologia que terão como prioridade o continente africano.

O objectivo será produzir uma vacina de segunda geração “fabricada em África e para África, e exportá-la para o mundo inteiro”, disse o próprio empresário, de origem chinesa e nascido na África do Sul. As primeiras vacinas serão produzidas ainda este ano e a fábrica deverá conseguir produzir mil milhões de doses por ano até 2025.

A criação de vacinas de segunda geração visa responder à perda de eficácia das primeiras vacinas ao longo do tempo, mas também ao aparecimento de novas variantes do SARS-CoV-2.

“Actualmente, provámos que estamos prestes a tornar-nos autónomos como continente e devemos ficar orgulhosos do que realizámos”, disse o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa na cerimónia de lançamento da fábrica, cuja construção deverá custar 3.000 milhões de rands (172 milhões de euros).

Nestas instalações também serão estudadas vacinas revolucionárias contra o cancro (já em ensaios clínicos na empresa de Soon-Shiong), o vírus da imunodeficiência humana (VIH) ou a tuberculose.

A África do Sul é, oficialmente, o país africano mais afectado pela pandemia de Covid-19, a África do Sul regista mais de 3,5 milhões de casos e 93.400 mortos desde o início da pandemia, numa altura em que o continente registou mais de 10 milhões de casos em Janeiro.

A taxa de vacinação dos cerca de 1,2 mil milhões de africanos continua baixa, devido a dificuldades de fornecimento, mas também a algum cepticismo por parte da população.

Actualmente, segundo a Organização Mundial de Saúde, o continente participa na produção de menos de 1% das vacinas que consome.

No final de 2020, a África do Sul e a Índia propuseram à Organização Mundial de Comércio (OMC) a suspensão dos direitos de propriedade intelectual dos tratamentos e vacinas contra a Covid-19.

Vários países e organizações não-governamentais apoiaram a proposta, mas o assunto, que voltou a ser discutido na conferência da OMC em Novembro, ainda não foi decidido.

A África do Sul tem já dois locais de montagem e embalagem de vacinas anti-Covid-19: o instituto Biovac na cidade do Cabo deverá começar a embalar a vacina Pfizer-BioNTech no início do ano e a Aspen Pharmacare, a maior farmacêutica em África, produz a vacina da Johnson & Johnson na sua fábrica de Gqeberha (sul).

Soon-Shiong, que tem também nacionalidade norte-americana, fez fortuna a desenvolver um medicamento anti-cancro chamado Abraxane e é fundador do conglomerado NantWorks, com sede nos EUA, e accionista da equipa de basquetebol norte-americano Los Angeles Lakers.

A sapiência do mestre João Lourenço

O Presidente angolano, João Lourenço, juntou-se ao Presidente do MPLA e ao Titular do Poder Executivo num apelo à união de esforços entre todos os países africanos para melhor explorarem os mecanismos de acesso às vacinas contra o novo coronavírus que “injustamente não estão” ao seu alcance.

“O nosso continente só poderá vencer a pandemia da Covid-19 se houver a união de esforços entre todos os países africanos, no sentido de melhor explorarmos os mecanismos de acesso às vacinas que injustamente não estão ao nosso alcance”, disse João Lourenço durante uma cerimónia realizada na Guiné-Conacri, onde foi condecorado com Grã-Cruz da Ordem Nacional da República da Guiné.

João Lourenço foi o segundo cidadão angolano a ser prestigiado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional da Guiné, depois de António Agostinho Neto (o único herói nacional que o MPLA autoriza em Angola) no ano de 1973.

Segundo João Lourenço, o mundo tem-se deparado com a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, que tem colocado à prova os sistemas de saúde, bem como as economias, devido a rápida propagação da Covid-19, e às restrições que são obrigados a aplicar, para reduzir ao máximo possível os danos.

Na sua intervenção apelou ainda à liberalização das patentes das vacinas contra o novo coronavírus, permitindo, com isso, o aumento da sua produção, a redução de preços e a consequente diminuição das desigualdades no acesso às vacinas, por parte dos países menos desenvolvidos como os países africanos que considera estarem a ser tratados de forma desigual.

João Lourenço fez também referência à situação de segurança em África nos últimos tempos que “não tem evoluído tão positivamente quanto seria desejável” apesar de algumas iniciativas desenvolvidas no sentido de inverter esta tendência.

“Realço, nesta perspectiva, outros factos importantes como a realização de eleições de forma pacífica em alguns pontos do nosso continente com historial de conflitos pós-eleitorais, facto que reforça a esperança e a ideia de que a África despertou para a necessidade da construção da estabilidade e da segurança como factores incontornáveis para assegurar a concretização dos nossos grandes objectivos de redução da pobreza, e de construção do bem-estar e prosperidade dos nossos povos”, frisou.

João Lourenço esteve, nesta incursão filosófica sobre eleições em África, ao seu melhor nível. Mostrou, com rara perspicácia, que quem sabe… sabe. Por alguma razão ele próprio é um presidente não nominalmente eleito e lidera um partido que só está no poder há quase 46 anos e que, até agora, nunca fez uma só eleição autárquica.

O Presidente angolano destacou assim a importância de um trabalho contínuo e de forma unida e conjugada, no sentido de construir um continente livre de conflitos armados, de destruição e deslocações forçadas das suas populações.

João Lourenço defende que é fundamental a adopção de formas de governação “cada vez mais participativas, inclusivas e genuinamente africanas, de modo a contribuir para a promoção de uma cultura africana de paz, de justiça e de respeito pelos princípios dos direitos humanos”. Ou seja, em síntese, fazer tudo o que o MPLA não fez, não faz e nunca fará.

O presidente de Angola considera que “é urgente” corrigir a actual realidade do difícil acesso às vacinas por parte dos países africanos — que não têm capacidade própria de produção. João Lourenço apelou à solidariedade dos parceiros internacionais para ajudar o continente africano a recuperar dos estragos da crise sanitária global, salientando que é “urgente” corrigir as dificuldades de acesso às vacinas nestes países.

Não. Não estamos a repetir o “discurso” de João Lourenço feito na Guiné-Conacri. Estamos a citar o que ele dissera no dia 27 de Abril de 2021 aos seus homólogos de Cabo Verde, Jorge Fonseca, de Moçambique, Filipe Nyusi, da Guiné-Bissau, Umaru Sissoco Embaló, da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang, e de São Tomé e Príncipe, Jorge Bom Jesus, na abertura da Conferência dos Chefes de Estado e de governo do Fórum PALOP que se realizou, de forma virtual, em Luanda.

Nessa intervenção, o Presidente angolano salientou que estes países têm encontrado obstáculos diversos que retardam o seu desenvolvimento e comprometem os seus objectivos, referindo exemplos como a volatilidade dos preços das matérias-primas, bem como, nos últimos tempos, o impacto da Covid-19.

“Com o surgimento das vacinas, estamos a ver actualmente uma luz ao fundo do túnel, no percurso que temos feito para encontrar soluções que ajudem a mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19″, assinalou João Lourenço, acrescentando que “é preciso fazer perceber os nossos parceiros internacionais que o continente africano precisa de muita compreensão e solidariedade para nos recompormos dos estragos e dos prejuízos que esta crise sanitária global provocou nos nossos países”.

Além disso, “é urgente” corrigir a actual realidade do difícil acesso às vacinas por parte dos países africanos “que não têm capacidade própria de produção local das vacinas, não têm grandes recursos financeiros para as adquirir e com isso correm o sério risco de ver suas populações virem a ser vacinadas apenas depois de o mundo mais desenvolvido o ter feito”.

O chefe de Estado angolano expressou também aos seus homólogos preocupação quanto à “instabilidade e conflito permanente que prevalecem no continente e agravam os dramas sociais e humanitários da população”.

“Não nos podemos conformar com esta realidade. Na nossa qualidade de um grupo de países africanos ligados por uma história e luta comuns, preocupa-nos a situação de conflito que assolam a República irmã de Moçambique, alguns países da Região dos Grandes Lagos e da CEEAC [Comunidade Económica dos Estados da África Central], e da Região do Sahel no nosso continente”, sublinhou.

“Acredito que se formos capazes de potenciar o uso das capacidades materiais e intelectuais que cada uma das nossas nações possui, estaremos em condições de nos complementarmos nos domínios da educação, saúde, defesa e segurança, entre outros. Preconizamos um intenso movimento entre os nossos países, de empresários, académicos, turistas, investigadores e estudantes, e de agentes da cultura e da ciência”, frisou.

Um “capital“, reforçou, que deve servir de base para aprofundar os laços de amizade, bem como a cooperação económica e intercâmbio comercial.

Para João Lourenço os posicionamentos estratégicos consensuais devem ser também adoptados em questões relativas ao clima, no sentido em que as decisões não condicionam o direito destes países, que sofrem “uma forte incidência dos graves efeitos provocados pelas alterações climáticas, ao desenvolvimento“.

Folha 8 com Lusa

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