UM NOVO APARTHEID

O escritor moçambicano Mia Couto classificou hoje como “um novo apartheid” o fecho de fronteiras à África Austral imposto por vários países, após a descoberta da variante Ómicron do vírus da Covid-19.

“Estes países que foram bloqueados, uma espécie de novo ‘apartheid’, viam a possibilidade de neste fim de ano, principalmente naquilo que é a indústria turística, terem algum outro alento, mas não vai suceder”, lamentou, numa alusão ao regime de segregação racial que durante décadas vigorou na África do Sul.

Mia Couto falava ao lado de outro escritor, José Eduardo Agualusa, que inaugurou em Maputo a exposição de fotografia e poemas “O Mais Belo Fim Do Mundo” sobre a Ilha de Moçambique – actual morada de Agualusa.

Ambos se insurgiram no domingo contra as restrições com um texto conjunto intitulado “Duas Pandemias?” (que aqui reproduzimos), que publicaram na Internet e que se tornou viral.

Três dias depois, não só reafirmam o que escreveram como alertam para o avolumar dos prejuízos com a continuação do que classificam como um bloqueio.

“Os danos provocados já são enormes”, referiu Agualusa, evocando um artigo do dia sobre o rombo no turismo da África do Sul e as dificuldades particulares a que tem assistido em Moçambique.

E se “nas últimas semanas havia alguma esperança”, agora “voltou tudo atrás” considerando a situação “absurda”: “Tomara a Europa ter os mesmos números [de Covid-19] que Moçambique e, no entanto, o país é prejudicado desta maneira”.

“Gostávamos que esses países tivessem sido tão ágeis, tão rápidos na distribuição equitativa das vacinas”, como na decisão de fechar fronteiras, acrescentou Mia Couto, sublinhando que tudo o que escreveram “não se altera se por acaso se provar que esta variante tem gravidade”.

Nada muda porque aquilo que seria um “procedimento” adequado não foi seguido e neste caso foi “o mais fácil, menos credível e correto que fizeram com agilidade”.

“Infelizmente já não é só a Europa, há vários países africanos que se juntaram a essa coisa precipitada e não eficaz de erguer muros”, numa altura em que “está mais que sabido” que “há várias outras alternativas mais eficientes” de lidar com a pandemia.

A ciência está a ser substituída “por razões de natureza política” e de “reposta ao medo” para tomar decisões”, acrescentou.

A situação “exige sobretudo que os políticos oiçam mais os cientistas, que não tomem decisões antes de ouvir as pessoas da ciência, que são quem pode falar sobre este tipo de questões”, concluiu Agualusa.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou na terça-feira que “as proibições de viagens não vão impedir a propagação internacional” da variante Ómicron e “representam um fardo pesado para vidas e meios de subsistência”, podendo “ter um impacto adverso nos esforços globais” de luta contra a pandemia”.

Numa tentativa de conter a propagação da nova estirpe do SARS-CoV-2, diversos países, incluindo Portugal, fecharam fronteiras aos estrangeiros ou suspenderam e restringiram viagens internacionais, em particular para a África Austral, nomeadamente com Moçambique.

O país lusófono tem um total acumulado de 1.941 mortes e 151.594 casos de Covid-19, dos quais 98% recuperados e sete internados.

“Duas pandemias?”

«No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infecção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infecções.

Cientistas sul-africanos foram capazes de detectar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.

O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas.

Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de protecção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.

Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.»

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