No dia 19 de Maio de 1991, no Alto Kauango, província do Moxico, foi assinado o primeiro acordo para a paz em Angola, entre o Governo e a UNITA, então movimento rebelde. São pouco referenciados, mas o Acordo de Kauango foi o primeiro e único mediado por um angolano, o jornalista William Tonet, que na altura era correspondente da Voz da América.
Por Orlando Castro
Jurista, docente universitário, fundador e director do jornal “Folha 8”, William Tonet conta como surge na pele de mediador das negociações entre o Governo e a UNITA.
Em Maio de 1991, encontrava-se a cobrir, para a Voz da América, a ofensiva que a UNITA estava a empreender para poder estender o seu cordão de segurança pelo Leste, quando assumiu o papel de ser mediador do acordo. Estavam consigo colegas como Luísa Ribeiro, da Agência Lusa, Nicolas Vadjon, e Rosa Inguane, da AIM (Agência de Informação de Moçambique).
As tropas do Governo eram comandadas pelo general Agostinho Nelumba “Sanjar” e as da UNITA pelo general Arlindo Chenda Pena “Ben Ben” (já falecido), que William considera um amigo.
Antes de Tonet assumir a mediação, conta o jornalista, o líder da UNITA, queria saber qual era o seu projecto e o por quê dessa intenção. Jonas Savimbi avisou que se algum mal acontecesse a um dos seus oficiais, William Tonet seria o responsável.
Ainda que à distância, o jornalista-mediador teve quatro dias de negociações com Jonas Savimbi e com o então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, no sentido de convencê-los que se tinha de parar com aquela ofensiva militar que era um contra-senso, na medida em que o Governo e a UNITA já se encontravam a negociar em Portugal, naquilo que depois veio a dar nos acordos de Bicesse.
E no dia 19 de Maio de 1991 foi assinado o Acordo do Alto Kauango. De 19 pontos, o documento foi assinado pelos generais Higino Carneiro, pelo Governo, e Ben Ben, pela UNITA. Um acordo que William Tonet faz questão de sublinhar que não foi de simples aperto de mãos.
William Tonet lamenta que aquele acordo não seja lembrado quando se falava do processo que levou à pacificação do país. O jornalista considera que o Acordo do Alto Kauango foi importante porque alguns articulados são transversais a tudo o que veio a seguir.
“Quer Bicesse, quer Lusaka, foram beber elementos do Acordo de Alto Kauango”, diz William Tonet, para quem o fracasso deveu-se àquilo que considera “cultura de exclusão dos outros”. Segundo o jornalista e jurista, não foi o acordo a falhar, mas sim “a eterna desconfiança” entre as partes.
“Nenhum líder – e esse é o dilema de Angola – pensou verdadeiramente no país. Cada um pensou no seu próprio projecto ideológico para implementá-lo em Angola. O desejo era apenas subjugar o outro”, conclui William Tonet.
A verdade não prescreve
Raramente o jornalista é notícia. Contudo, não deixa, antes e durante, de ser um cidadão que, mais do que qualquer outro, tem responsabilidades acrescidas, devendo por isso, sem pretensiosismos nem falsas modéstias, assumir junto daqueles a quem exclusivamente deve explicações, os angolanos, a verdade dos acontecimentos.
A História escreve-se com a verdade que, mesmo quando bombardeada insistentemente pela mentira, acabará por se sobrepor a todo o género de maquinações e acções de propaganda. É, por isso, legítimo que se faça pedagogia e formação quando, por razões mesquinhas, alguns tentam apagar o que de bom alguns, muitos, angolanos fizerem pela sua, pela nossa, terra. E tentam apagar, revelando um manifesto complexo de inferioridade, por temerem que a verdade os mate. Esquecem-se que, mesmo recorrendo à história, a salvação só se consegue com respeito pela verdade. E não é por esconder a verdade que ela deixa de existir.
Não adianta o MPLA, o regime, os que se julgam donos da verdade, “esquecerem” a verdade dos factos. Eles são exactamente isso, factos. E um deles, o de ter sido um angolano a mediar pela primeira vez o conflito entre angolanos, deveria ser motivo de regozijo e de reconhecimento interno e externo. Só a mesquinhez de uns tantos pode levar a que se tente, sem sucesso – é certo, apagar esta verdade. Uma de muitas outras que, infelizmente, ainda se encontram enclausuradas por medo de represálias.
O facto de o cidadão, jornalista, William Tonet ser considerado pelo MPLA inimigo público do regime, mau grado a sua luta ter sido sempre em prol dos angolanos, revela igualmente que na História que o regime quer que se escreva só têm lugar os que são livres para estarem de acordo com ele.
William Tonet é filho de um co-fundador do MPLA, já falecido, que chegou a ser deputado pelo partido no poder na mais longa legislatura do país. Quando o nacionalista Guilherme Tonet foi para as matas, o pequeno William tinha 3 anos de idade e o pai levou-o consigo, para caso ele morresse, com uma bala colonial, “ele continuasse a luta”, segundo palavras do seu progenitor. É assim que passa a viver a sua infância nas matas, nos Congos; Kinshasa e Brazzaville e na cadeia de São Nicolau, ao lado do pai.
Mesmo que pintem a história de outra forma, a verdade é que William Tonet nasceu dentro do MPLA e assim se percebe a fidelidade racional, crítica e independente, que mantém a este partido que, todos os dias, o maltrata por discordar das suas práticas. Em finais da década de 70 esteve muito perto de uma corrente de esquerda do MPLA próxima de Nito Alves. Foi detido. Passou cerca de dois anos nas masmorras da Segurança de Estado, depois de ter sido preso por um seu “ex-canoa”, no campo de São Nicolau, transformado num dos mais terríveis membros da DISA, Carlos Jorge.
Durante o processo de “reinserção na sociedade”, depois de ter sido expulso por Costa Andrade Ndunduma do Jornal de Angola, fez estágio como “camaramen” na TPA, única forma de um considerado “fraccionista” entrar num órgão de comunicação social. Posteriormente foi ascendendo, como “cameramen”, assistente de realização e realizador, dos programas de maior audiência de todos os tempos na Televisão Popular de Angola, como os programas Horizonte e Panorama Económico.
Portanto, já naquele tempo de monopartidarismo, William Tonet tinha um programa critico, pelo que não se lhe pode apontar esta sua veia interventiva, apenas depois da instauração do multipartidarismo. Foi ainda ele quem abriu oficialmente a delegação da TPA em Benguela. Mudou-se depois para Portugal onde exerceu jornalismo, aprendendo com vários “monstros sagrados” do jornalismo português (Emídio Rangel, Cáceres Monteiro, Ferreira Fernandes, Luís Alberto Ferreira, Mário Crespo, Sérgio Ribeiro, entre outros) e tornando-se igualmente num dos melhores do nosso jornalismo.
“Comecei a fazer jornalismo depois de 1977, pois até essa altura estava nas Forças Armadas. Como fui apanhado na onda dos presos de 1977, ao sair fiquei bastante frustrado com a forma como esse processo decorreu. Depois da cadeia e de ter sido colocado em Benguela e Kuando Kubango, entrei como assistente de operador de câmara na TPA, depois de ter sido rejeitado pelo “Jornal de Angola”, onde participei num concurso, orientado e fiscalizado por Victor Aleixo, um dos responsáveis da redacção. Tive boa prestação, mas o director da altura, Costa Andrade Ndunduma, disse não poder aceitar um fraccionista nos seus quadros. Tive de correr dali para fora,” conta William Tonet, certamente orgulhoso de, com derrotas e vitórias, nunca se ter desviado da missão de dar voz a quem a não tem.
Ao serviço da Voz da América (VoA), esteve na Jamba, o então quartel general da UNITA, a cobrir um dos seus congressos. Os serviços de inteligência da UNITA detiveram-no após notarem que trazia passaporte angolano. Acusaram-no de ser espião ao serviço do MPLA. Após intervenção norte-americana foi solto e Jonas Savimbi desculpou-se. Esteve então com velhos amigos dos bancos da escola, no Huambo, entre os quais o general Arlindo Chenda Pena “Ben Ben”, Abel Chivukuvuku, Paulo Lukamba Gato, Kainhale Vatuva, entre outros.
Na guerra do Huambo, após as primeiras eleições gerais em Angola, William Tonet esteve enquanto jornalista na frente de combate acompanhando as FAPLA. Perante a derrota destas e consequente recuo, foi baleado e andou cerca de uma semana a pé com os militares das FAPLA, até Benguela, onde seriam resgatados. Totalmente fragilizado e com uma bala cravada na perna e as rótulas dos joelhos partidas, o jornalista na companhia da família, foi evacuado, para Lisboa, pela direcção de Informação da SIC (sua entidade empregadora), que fez deslocar, propositadamente, a Luanda, o jornalista Paulo Camacho.
A SIC foi o primeiro órgão internacional a ter um relato mais imparcial sobre a realidade militar vivida no Huambo, até ao recuo das tropas governamentais, exibindo as imagens televisivas, o que acabou por irritar as autoridades angolanas, que até hoje não lho perdoam. “Eu sou fiel aos meus ideais e compromissos. Na altura, a minha entidade empregadora era a SIC, tanto que estava acreditado em Angola, pelo Centro de Imprensa Aníbal de Melo, como correspondente internacional, portanto nunca traí ninguém, fui apenas fiel aos meus princípios e tudo o resto é diversão e calúnia de gente bajuladora e desinformada. No entanto um dia a verdadeira história sobre quem resistiu, quem comandou a resistência e quem fez o quê para que houvesse uma das maiores colunas de recuo organizado, virá a lume, e aí muita água irá correr por debaixo da ponte”.
No hospital foi-lhe detectada uma úlcera no estômago, por ter ficado longos períodos a comer mal e toda espécie de animais e plantas silvestres, úlcera que até hoje é responsável pelo seu estado de saúde.
No seu regresso a Angola voltou ao jornalismo, criando um dos primeiros jornais privados no país, o “Folha 8″. Recorde-se que por cá passaram jornalistas como Graça Campos, Reginaldo Silva, Gilberto Neto, Salas Neto, Gustavo Costa, Nsolele Kimpuanza, João Paulo Nganga, Jorge Eurico, entre outros.
Foi detido por diversas vezes e é o jornalista com um número recorde de processos judiciais no mundo, 117. Não deixa, entretanto, de ser curioso que o Presidente João Lourenço tenha consciência do desempenho patriótico de William Tonet, tal como conhece bem o seu papel no acordo do Alto Kauango, ma se deixe enredar pelos mais extremistas membros do MPLA que, por uma questão de sobrevivência, fazem do nosso Director a razão de todos os males.
A passividade do Presidente tem, aliás, levado a que a força da razão seja assassinada pela razão da força, situação que pode a todo o momento – como insistentemente alerta William Tonet – levar à implosão do país. Aceita-se que todo o percurso profissional, mas sobretudo o de cidadania activa, que remonta, pelo menos, ao acordo do Alto Kauango, de William Tonet, sejam uma espinha enorme entalada na garganta de alguns dirigentes do MPLA. Mas não é matando o mensageiro, reescrevendo a verdade, em parte já histórica, que se calará a mensagem. Essa está dentro de todos os angolanos.
A filosofia oficial é valorizar os que dizem que fazem e não os que fazem, os que colocam a subserviência no lugar da competência, os que trocam um prato de pirão em pé por uma lagosta de cócoras. Mas, não nos parece que seja esse tipo de sociedade, de dirigentes, que os angolanos querem. É, à revelia ou não das ordens de João Lourenço, um sistema que mata mesmo.