Ao fim de quase quatro anos, será para valer?

Nesta terça-feira, 2 de Março de 2021, o Presidente da República de Angola anunciou uma revisão pontual da Constituição, tendo como objectivos, entre outros, clarificar os mecanismos de fiscalização política, dar direito de voto a residentes no estrangeiro e eliminar o princípio de gradualismo nas autarquias.

Por José Marcos Mavungo (*)

Depois de quase quatro anos de resistência, João Lourenço considera agora a necessidade de fazer mudanças dentro da lei fundamental de Angola. Eis que o Presidente da República agora, já admite alterações com a necessidade de “preservar a estabilidade nacional e os valores” do Estado de Direitos democrático. Afinal, a atual Constituição e Leis do país têm consequências económicas e sociais negativas.

Aparentemente, João Lourenço parece ter tomado a consciência do facto de que as instituições de um país são essenciais para determinar se ele sofre ou não desta maldição governativa que faz com que Angola, um país com abundantes recursos naturais, tenha um fraco desempenho.

O tom da comunicação feita no arranque dos trabalhos da segunda sessão ordinária do Conselho de Ministros parecia ser uma tomada de consciência da orientação da formação Constitucional que não permite uma governação racional do país, tendo em conta a evidência do actual pobre desempenho económico e estagnação do processo de mudanças, o alto nível de corrupção, de repressão, de assassinato de pacatos cidadãos e de governança precária em Angola.

Porém, o discurso de João Lourenço não mudou, quando se refere a manifestantes e aos espíritos irreverentes, que não cessam de imprimir uma nota negativa à sua governação. As referências às manifestações de 30 de Janeiro, em Cafunfo, na Lunda Norte, como “acto de rebelião armada”, “protagonizado por cidadãos nacionais e estrangeiros que atacaram com armas uma esquadra policial” constitui a expressão da manutenção de uma linguagem firme que não consegue romper com os costumes antigos caracterizados pela diabolização da oposição.

João Lourenço continua a deificar os poderes absolutos, as práticas despóticas herdadas dos seus predecessores, bem como a violência política e policial decorrente das debilidades institucionais que criaram incentivos viciosos nestes últimos 46 anos.

Por esta razão, o Presidente da República não tem de cuidar da forma da Constituição, pois este instrumento jurídico não pode ser trabalhado à medida dos valores humanos, uma vez que foi improvisado sob espora do momento pela classe política dominante, cujo passivo nestes últimos anos os persegue sem evasão possível.

A este nível, o discurso de João Lourenço nesta terça-feira é frustrante, pelo menos para aqueles que acreditam nos valores/princípios da convivência democrática, ao ponto de continuar a levantar dúvidas sobre a vontade do chefe de Estado angolano em conferir ao país uma “melhor Constituição”, capaz de congregar os angolanos em torno de um projeto comum de sociedade de paz e progresso social”.

O Presidente da República anunciou nesta terça-feira uma revisão pontual da Constituição. Porque que a sociedade precisa desta revisão? Quais são os seus conteúdos e objetivos? Como deve decorrer esta revisão e quais as suas consequências para a vida dos cidadãos? Como vai permitir uma gestão racional dos recursos do país e permitir a solução de muitos outros problemas, entre os quais a “fiscalização política” e a melhoria do relacionamento institucional entre os órgãos de soberania? Como conferir ao país instituições fortes, suscetíveis de resistir a paixões individualistas e partidocráticas.

Estas são, entre outras, as questões legítimas para as quais são muitos os que procuram as respostas: políticos e activistas dos direitos humanos, estudiosos e jornalistas, clérigos e humanistas, professores e homens de negócios, trabalhadores e aldeões. São muitos os que querem compreender o que na verdade se está a passar em Angola, em especial graças ao facto de os jornais nacionais e a imprensa internacional continuarem a ser invadidos por notícias de fome, doenças, grave exclusão social, atropelos às liberdades e aos direitos humanos e má vontade na governança contra o país.

Observe-se, desde a subida de João Lourenço ao poder, em Setembro de 2017, as reformas são o foco da vida intelectual da sociedade angolana. Também, tem-se vindo a reclamar uma solução justa para o diferendo de Cabinda e a situação das Lundas. É natural, porque dizem respeito ao futuro do país e do continente africano. As mudanças que devem ser provocadas afectam a todos e dizem respeito aos problemas mais vitais da sociedade. Em toda a parte, as pessoas estão ansiosas por saber quando vai acabar o actual martírio das populações e em que nova sociedade se vai viver, depois de décadas de governação perversa, de desvarios de um regime.

Estas questões constituem um convite ao diálogo nacional animada por consciências lúcidas para se fazer reformas coerentes e consistentes, suscetíveis de reconciliar os angolanos. Isto significa que o mais relevante para se encontrar soluções a estas questões é o diálogo sobre a erosão provocada pelas crises sucessivas desde os anos da luta de libertação nacional.

Desde os anos 60 até hoje, todas as vivências, boas ou más, deveriam constituir para os angolanos uma importante lição e contribuir para o seu objectivo de procura da verdade sobre as reformas a fazer no sentido de reconciliar os angolanos, e assim, pôr fim ao atual clima de hostilidades em que funcionam as instituições democráticas.

Se, depois da revisão pontual da Constituição continuarmos a observar que os cidadãos não podem exercer livremente o direito de reunião e de manifestação, enfrentando os atropelos de uma vida sociopolítica e jurídico conturbada por governantes e agentes da ordem que lhes causam muitos problemas, e os instintos políticos e militares continuarem a subjugar a razão jurídica, a corromper juízes e procuradores.

Se continuar a existir a mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices do regime que, ao longo destes últimos 60 anos, impediram a instauração de um verdadeiro Estado de direito Democrático, e sem vontade manifesta para erradicar a malignidade de rancorosos e gratuitos elementos das forças de segurança e da ordem pública afectos ao partido no poder.

Se os mandões continuarem a sustentar o crime como virtude da governação, e continuarmos a assistir cidadãos a serem vítimas de actos de barbárie ou de detenções arbitrárias no exercício de seus direitos de cidadania, e não existir vontade manifesta de erradicar o actual sistema de governação perversa, pelo que as instituições democráticas funcionam em um meio hostil e os cidadãos estão reduzidos a uma vida caótica e indigna.

Se, por tudo isto, o Estado continuar a emagrecer, a deixar o poder nas mãos de déspotas que sacrificam homens de boa vontade, perseguem os pacíficos da terra, submetem 70% das populações a uma pobreza abjecta, o país continuará em emaranhadas teias de interesses individualistas e partidocráticas, que não passam de burocracias de odres velhos e corruptos, enriquecendo os muitos oportunistas, amigos de estimação e familiares de ocasião que deambulam ou comem na manjedoura das escadas do poder.

Assim, o Estado continuará ainda mais Leviatan (crocodilo), menos eficaz, muitíssimo mais esbanjador, ficando escravo de tanto parasitismo que come a sociedade, sem que esta consiga alimento para tanto vício instituído.

Deste modo, Angola faz-nos pensar ao reinado cruel de Abimelec de que nos fala a parábola de Jotam (Jz 9, 7-15), que sublinha a “tolice criminosa” do filho bastardo de Gedeão que se apresentou desejando o cargo de rei de Israel, e para isso matou todos os seus 70 irmãos (filhos legítimos de seu pai), para que não houvesse concorrentes.

Nestas circunstâncias, diria que seria mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que o João Lourenço operar reformas substanciais em Angola.

(*) Activista dos Direito Humanos

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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