O Presidente angolano, João Lourenço, assegurou hoje ao seu homólogo da República Democrática do Congo (RD Congo) que o Executivo não interfere na justiça, num encontro onde foram analisadas as consequências do arresto de bens de Isabel dos Santos. Alguém acredita? Nem Félix Tshisekedi acredita. Mas a arte de bem receber é sempre mais agradável quando se contam… anedotas.
Que o Presidente da República, João Lourenço, não interfere na justiça… até nós acreditamos. No entanto, já não acreditamos que o Presidente do MPLA (João Lourenço) não interfira, tal como não acreditamos que o Titular do Poder Executivo (João Lourenço) não interfira.
Segundo uma nota da Casa Civil do Presidente, divulgada após o encontro de João Lourenço com Félix Tshisekedi, em Benguela, os chefes de Estado aproveitaram a ocasião para falar sobre o combate à corrupção e analisar as consequências da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, de 30 de Dezembro de 2019, que impôs o arresto de contas bancárias pessoais da filha do antigo Presidente de Angola e do seu marido, Sindika Dokolo, bem como de nove empresas nas quais a empresária detém participações.
A nota diz que “os chefes de Estado consideraram ter havido grande magnanimidade da parte do Estado angolano” ao estabelecer um período de seis meses para o repatriamento de capitais, “oportunidade não aproveitada no devido tempo”.
“Consideraram ainda que, passado um ano após o fim desse período de graça, o Estado angolano, na defesa dos interesses dos lesados, os angolanos, tem toda a legitimidade de accionar os meios legais, judiciais, diplomáticos e outros que julgar necessários, a fim de garantir o efectivo repatriamento dos capitais colocados ilicitamente fora do país e providenciar a recuperação de bens em território nacional”, continua.
Durante o encontro, os governantes “realçaram que o melhor caminho para os visados será a máxima colaboração com as autoridades competentes do Estado e com a Justiça angolana”.
Neste sentido, João Lourenço apelou à cooperação internacional “no sentido de apoiar o esforço de combate a corrupção e à impunidade em Angola” e enfatizou ao seu homólogo que Angola observa a separação de poderes, assegurando que “o executivo não interfere na acção da Justiça”.
Os chefes de Estado abordaram igualmente a exploração petrolífera na Zona de Interesse Comum (ZIC) dos dois países e acordaram que as equipas técnicas de Angola e da RD Congo vão reunir-se em breve para estabelecerem o cronograma de acções necessário para a implementação de um projecto conjunto.
Separação de poderes? O que é isso?
A propósito da separação de poderes em Angola, e como se já não bastasse termos governantes, políticos e generais a querer entrar para o anedotário mundial, recorde-se que o presidente do Tribunal Supremo de Angola, Manuel Aragão, também apresentou a sua candidatura no dia 3 de Março de 2017.
Vejamos a anedota: “Há uma efectiva separação de poderes no país, entre poder político e os tribunais”.
“Os que dizem que não existe, cabe a eles provarem. Se calhar não estão em condições de nos dar lições, a julgar pelos exemplos”, apontou Manuel Aragão, em declarações aos jornalistas à margem da cerimónia de abertura do Ano Judicial 2017.
Insistindo na efectiva separação de poderes em Angola, o presidente do Tribunal Supremo angolano recordou: “Somos todos representantes de um poder único, que é o Estado. A soberania é do povo”.
A reacção do então Presidente do Tribunal Supremo (escolhido por José Eduardo dos Santos), sem destinatário especificado na declaração, surgiu no entanto uma semana depois de a diplomacia angolana ter criticado fortemente as autoridades portugueses, pela forma “inamistosa e despropositada” como foi divulgada a acusação de corrupção do Ministério Público a Manuel Vicente.
Certamente que este esclarecimento de Manuel Aragão não se destinou aos países mais democráticos do mundo com os quais o regime do MPLA se identifica na plenitude, como são os casos da Guiné Equatorial e da Coreia do Norte.
Aliás que melhor prova o mundo pode querer da separação de poderes quando, em Angola, o Presidente da República escolhe o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica e o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas?
Numa nota do Ministério das Relações Exteriores de 24 de Fevereiro de 2017, o Governo angolano protestou veementemente contra as acusações, “cujo aproveitamento tem sido feito por forças interessadas em perturbar ou mesmo destruir as relações amistosas existentes entre os dois Estados”.
Timidamente o Governo português limitou-se a, oficialmente, recordar o “princípio da separação de poderes” que vigora em Portugal, onde as autoridades judiciárias actuam com “total independência” face ao executivo.
No documento do ministério angolano, refere-se que as autoridades angolanas tomaram conhecimento “com bastante preocupação, através dos órgãos de comunicação social portugueses”, da acusação do Ministério Público português “por supostos factos criminais imputados ao senhor engenheiro Manuel Vicente”.
Para o Governo de Luanda, a forma (pelos vistos o conteúdo é o que menos importa) como foi veiculada a notícia constitui um “sério ataque à República de Angola, susceptível de perturbar as relações existentes entre os dois Estados”.
“Não deixa de ser evidente que, sempre que estas relações estabilizam e alcançam novos patamares, se criem pseudo factos prejudiciais aos verdadeiros interesses dos dois países, atingindo a soberania de Angola ou altas entidades do país por calúnia ou difamação”, sublinhava a nota da diplomacia angolana.
Eis, na íntegra, o comunicado hoje divulgado pela Casa Civil do Presidente da República:
«1. O Chefe de Estado de Angola, Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço, e o Chefe de Estado da República Democrática do Congo, Sua Excelência Félix Antoine Tshisekedi Tshilombo, mantiveram hoje, 5 de Janeiro de 2020, um encontro na cidade de Benguela.
2. Durante o encontro, que se enquadra no âmbito das relações de amizade, cooperação e boa vizinhança, os Chefes de Estado abordaram o dossier da ZIC (Zona de Interesse Comum) de exploração petrolífera.
3. Nesse sentido, acordaram que equipas técnicas dos dois países vão reunir-se o mais brevemente possível para estabelecerem o cronograma de acções necessário para a implementação do Projecto Conjunto.
4. Os Chefes de Estado aproveitaram também a ocasião para analisar as consequências da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, de 30 de Dezembro de 2019.
5. Sobre a matéria de combate à corrupção e à impunidade, os Chefes de Estado consideraram ter havido grande magnanimidade da parte do Estado angolano ao estabelecer um período de graça de seis meses no âmbito da Lei n.º 9/18 de 26 de Junho, sobre Repatriamento de Recursos Financeiros, oportunidade não aproveitada no devido tempo.
6. Consideraram ainda que passado um ano após o fim desse período de graça, o Estado angolano, na defesa dos interesses dos lesados, os angolanos, tem toda a legitimidade de accionar os meios legais, judiciais, diplomáticos e outros que julgar necessários, a fim de garantir o efectivo repatriamento dos capitais colocados ilicitamente fora do País, e providenciar a recuperação de bens em território nacional, ao abrigo da Lei n.º 15/18 de 26 de Dezembro, sobre Perda Alargada de Bens e Repatriamento Coercivo de Capitais
7. Realçaram que o melhor caminho para os visados será a máxima colaboração com as autoridades competentes do Estado e com a Justiça angolana, e neste contexto, o Chefe de Estado angolano apelou à cooperação internacional no sentido de apoiar o esforço de combate a corrupção e à impunidade em Angola.
8. Chefe de Estado angolano enfatizou o respeito ao princípio da observância da separação de poderes, e assegurou que o Executivo não interfere na acção da Justiça.
9. Os Chefes de Estado engajaram-se a prosseguir os processos de transição política nos respectivos países de forma pacífica e harmoniosa, no interesse dos dois povos.
10. Sua Excelência o Presidente Félix Tshisekedi agradeceu ao seu homólogo a pronta disponibilidade de O receber para esta diligência.»