As exportações de petróleo de Angola caíram 48% em Maio face ao valor de Abril, para 225 mil milhões de kwanzas, de acordo com os dados do Ministério das Finanças citados pelas agências de notícias internacionais. A pandemia da Covid-19 “só” veio demonstrar que o rei vai nu e que os generais não estão propriamente vocacionados para gerir um país.
O valor das exportações de petróleo passou de 432,5 mil milhões de kwanzas (644 milhões de euros), em Abril, para 225,3 mil milhões de kwanzas (338 milhões de euros) em Maio, comprovando o significativo e pavoroso declínio da actividade económica (que há 45 anos aguarda para ser diversificada) não só em Angola, mas também nos países compradores do crude, embora estes saibam e pratiquem a diversificação económica.
A queda da receita acompanhou também a descida da produção, com as exportações a caírem para 40,9 milhões de barris em Maio, face aos 44,6 milhões de Abril, ao passo que o preço médio do barril desceu de 29,60 dólares em Abril para 18,24 em Maio.
A forte queda da receita petrolífera, a principal e quase exclusiva fonte de receita do país, aprofundou uma crise económica já existente e levou o Governo a aderir à Iniciativa da Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) do G20 e a anunciar que está em conversações com países clientes para ajustar as modalidades de pagamentos da dívida pública, que deverá ultrapassar largamente os 100% do Produto Interno Bruto este ano, segundo o consenso dos analistas.
Porque será que em Novembro do ano passado, numa altura em que ainda ninguém tinha ouvido falar, ou imaginado, a pandemia da Covid-19, já a ministra das Finanças, Vera Daves, afirmou que a dívida pública deveria atingir um valor recorde em 2020, estimando que o rácio do stock da dívida sobre o PIB poderia diminuir a partir da segunda metade de 2020.
Na altura (19 de Novembro de 2019), a este propósito, o Folha 8 escreveu: “Fé em Deus, meia bola e força, pontapé para a frente e depois se verá”. Viu-se. Chatice. Chegou o Covid-19.
Dirigindo-se aos deputados da Assembleia Nacional, no dia em que era apreciada e votada no plenário a proposta do Orçamento Geral do Estado para 2020, a ministra sublinhou que a actual proposta responde à necessidade de prosseguir com o reequilíbrio das finanças públicas e apontou a “elevada incerteza” do ambiente económico internacional que levaram o executivo a adoptar uma “abordagem conservadora” quanto ao preço do petróleo.
No OGE para 2020, o executivo usou um preço médio de 55 dólares por barril e projectou uma produção média diária de hidrocarbonetos (do sector petrolífero e do gás) de 1.436,9 mil barris de petróleo equivalentes, por dia, em 2020.
Com um crescimento esperado de 1,5% para o sector dos hidrocarbonetos e de 1,9% para os sectores não petrolíferos, Vera Daves projectou para 2020 um crescimento de 1,8% do PIB, uma taxa que ainda que “reduzida”, representa a reversão do ciclo de baixo crescimento que se regista desde 2016.
Apesar do aumento da inflação para 25%, necessário para “acomodar” ajustamentos do regime de preços de alguns bens e serviços e a “transição para um regime cambial mais competitivo”, a ministra considerou positiva a trajectória de consolidação fiscal, salientando que o OGE 2020 apresentava um saldo positivo de 1,2% do PIB, superior às estimativas de 1,0% do PIB para 2019.
Apesar do saldo fiscal positivo, “o ano de 2020 adivinha-se muito desafiante do ponto de vista da gestão de tesouraria, dado que o rácio entre o serviço da dívida e a receita fiscal atingirá o valor recorde de 114%”, admitiu Vera Daves, projectando que o rácio do stock da dívida sobre o PIB comece a decrescer a partir da segunda metade de 2020.
Para conseguir reduzir o rácio já em 2021 e ganhar folga de tesouraria, o executivo pretendia seguir uma estratégia de financiamento que privilegiasse a dívida de longo prazo.
Segundo Vera Daves, as necessidades brutas de financiamento ascendiam a 7 biliões e 879 mil milhões de kwanzas, que seriam financiadas através do superavit fiscal, financiamento interno e externo e venda de activos.
A ministra salientou o peso do sector social na despesa orçamentada (2,3 biliões de kwanzas num total de cerca de 15 biliões de kwanzas, aproximadamente o mesmo valor em termos de receitas) dando como exemplo o impacto do Programa de Transferências Sociais Monetárias.
Este programa, através do qual se pretendia garantir um rendimento mínimo mensal para cerca de um milhão de famílias consideradas como muito vulneráveis, está na fase final de preparação e deveria entrar em funcionamento no primeiro trimestre de 2020.
Vera Daves afirmou ainda que o OGE estava exposto a “riscos exógenos e endógenos”, sublinhando que, no caso destes riscos “se materializarem no sentido favorável” e gerarem maiores saldos de tesouraria, seria acelerado o processo de redução da dívida financeira e com fornecedores do Estado.
Coerente com a sua linha estratégica, o Governo preparava-se para angariar até 3 mil milhões de dólares nos mercados internacionais ainda em 2019 ou no princípio de 2020, tendo na altura reunido com investidores em Nova Iorque. Numa nota enviada aos clientes, o gabinete de estudos do Banco Fomento Angola dizia que a equipa do Ministério das Finanças reunira com vários investidores numa operação apoiada pelo Deutsche Bank, ICBC e Standard Chartered.
A autorização presidencial para aquele emissão foi publicada a 7 de Novembro, e nela pode ler-se que “é autorizada a ministra das Finanças, no âmbito do Programa Global de Médio Prazo para a Emissão de Títulos de Dívida Soberana, a emitir títulos de dívida soberana nos mercados internacionais sob a forma de Eurobonds, até ao montante de 3 mil milhões de dólares [2,71 mil milhões de euros] ou o equivalente em outros moedas, em uma ou mais séries”.
A assunção de mais este encargo deveria, de per si, elevar o rácio da dívida pública em mais de três pontos percentuais face ao PIB, que o Fundo Monetário Internacional estimava que valia cerca de 90 mil milhões de dólares.
Ainda segundo os dados do FMI, divulgados em Outubro de 2019, este rácio deveria ficar, no final desse ano, nos… 95% do PIB.
Curiosidades da banha da cobra
O Governo do MPLA (o único que Angola conhece desde 1975) previa em Junho de 2018 reduzir o rácio da dívida pública para 60% do PIB até 2022, meta inicialmente inscrita nos objectivos governamentais para este ano e referência para o endividamento público.
O objectivo constava do Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018-2022, aprovado pelo Governo, contendo um conjunto de programas com a estratégia governamental para o desenvolvimento nacional na actual legislatura.
O documento traçava expressamente a meta de “diminuir o rácio Dívida/PIB de 67% em 2017 para 60% até 2022” e o objectivo de “assegurar a sustentabilidade da dívida pública, através da implementação de uma estratégia de gestão da dívida”. Em 2015, o rácio da dívida pública angolana rondou os 46% do PIB e em 2013 os 25%.
Devido à crise financeira, económica e cambial decorrente da quebra nas receitas com a exportação de petróleo, que em 2019 se arrastava desde 2014, o Governo do MPLA tem recorrido à emissão de dívida e a financiamentos externos para garantir a continuidade de projectos públicos.
No final 2016, o Governo avançou mesmo com uma alteração à Lei do Regime Jurídico de Emissão e Gestão da Dívida Pública Directa e Indirecta. O Estado/MPLA deixou de estar vinculado à obrigatoriedade legal de não ultrapassar um nível endividamento equivalente a 60% do PIB, passando esse limite a ser apenas uma referência.
Especificamente, o programa de Melhoria da Gestão das Finanças Públicas idealizado pelo Governo para a actual legislatura, até 2022, previa intervir ao nível da “arrecadação de receitas, procurando melhorar a previsibilidade da tesouraria do Estado” e assumindo (isto é como quem diz!) o compromisso com a “afectação de recursos”, para que “decorra de forma estratégica e que a prestação de serviços seja eficiente”.
“Temos de alterar a actual trajectória da dívida, sob pena de estarmos a hipotecar as gerações futuras. Portanto, o objectivo deve ser usar a folga que for obtida pelo diferencial do preço do petróleo, comparativamente ao preço de referência definido no Orçamento Geral do Estado, para reduzir a pressão sobre a dívida”, alertou anteriormente o ex-ministro das Finanças, Archer Mangueira, a propósito da subida da cotação internacional do barril de crude.
O Governo previa captar 6,721 biliões de kwanzas (22.800 milhões de euros) de dívida pública em 2018, totalizando 54.500 milhões de euros de endividamento até final do ano, segundo o Plano Anual de Endividamento (PAE).
De acordo com o documento, elaborado pelo Ministério das Finanças, estas necessidades, repartidas por 4,762 biliões de kwanzas (16.100 milhões de euros) a captar em dívida emitida internamente e 1,959 biliões de kwanzas (6.600 milhões de euros) em desembolsos externos, visam “colmatar as necessidades de financiamento” do OGE de 2018.
“O ‘stock’ de dívida governamental deverá permanecer com a tendência de crescimento verificada nos anos anteriores, que se fundamenta numa maior participação da dívida titulada”, referia o documento, apontando um crescimento de 18% face a 2017.
O aumento da dívida pública deveu-se essencialmente à depreciação do kwanza face ao dólar e ao apoio financeiro dado às empresas públicas (do Estado, do MPLA), ultrapassando os 74 mil milhões de dólares, cerca de 66% do PIB, no final de 2017.
A Moody’s, por exemplo, tem visto em Angola (ao contrário do MPLA) a degradação da balança de pagamentos e o aumento das necessidades de financiamento devido à assunção da dívida da Sonangol.
Terá o Governo capacidade e vontade para lidar com a sustentabilidade da trajectória da dívida? São mais as dúvidas do que as certezas. Os generais não estão propriamente vocacionados para gerir um país.
Folha 8 com Lusa