Espirro em Luanda,
gripe em Lisboa

O Banco de Portugal, liderado por Carlos Costa, diz que “considera todos os factos novos” para avaliar accionistas de bancos em Portugal, como é o caso da filha de José Eduardo dos Santos, Isabel dos Santos, que controla 42,5% do EuroBic. Supervisão? Há quem diga que sim.

O arresto preventivo de participações e contas de Isabel dos Santos em Angola não passou despercebido ao Banco de Portugal. Questionado pelo jornal português PÚBLICO sobre os efeitos desta iniciativa da justiça angolana no EuroBic, banco detido em 42,5% por Isabel dos Santos e supervisionado pelo Banco de Portugal, o supervisor da banca portuguesa esclareceu, através de fonte oficial, que “o Banco de Portugal considera todos os factos novos que possam ser relevantes para efeitos de avaliação/reavaliação da adequação de quaisquer pessoas que exerçam funções de administração/fiscalização ou sejam accionistas de instituições por si supervisionadas”.

Nesse contexto, sem nunca identificar o caso de Isabel dos Santos em concreto, mas respondendo à pergunta sobre o arresto preventivo dos bens da empresária pelas autoridades em Angola, a mesma fonte oficial acrescentou que “o Banco de Portugal interage e troca informação, nos limites do quadro normativo aplicável, com todas as entidades e autoridades, nacionais e internacionais, de forma a poder consubstanciar factos que possam ser relevantes no contexto desse juízo”.

Também a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) de Portugal, entidade reguladora do mercado de capitais, revelou ao PÚBLICO que “está a acompanhar as implicações da referida decisão judicial, designadamente no que respeita a eventuais obrigações de prestação de informação ao mercado por entidades nacionais”.

No entanto, tendo em conta que “a referida decisão incide primariamente sobre entidades de direito angolano, não se afigura por ora, e em face da informação disponível, exigível que sociedades cotadas nacionais, não visadas pela referida decisão, divulguem informação ao mercado”, concluiu.

O Tribunal Provincial de Luanda decretou na segunda-feira o arresto preventivo de contas bancárias pessoais de Isabel dos Santos, do marido, Sindika Dokolo, e do português Mário da Silva, além de nove empresas nas quais a empresária detém participações sociais. No caso português detém participações em sectores como a energia (Galp e Efacec), telecomunicações (Nos) ou banca (EuroBic).

Portugal captou investimento angolano nos últimos anos, com a maioria concentrada nos sectores da energia, banca e telecomunicações, grande parte através da empresária Isabel dos Santos, filha do antigo chefe de Estado de Angola, José Eduardo dos Santos.

Recorde-se que, presente na inauguração da nova unidade industrial da Efacec (foto), o então ministro da Economia de Portugal, transmitiu uma “palavra especial de agradecimento aos accionistas e, em particular, a Isabel dos Santos”, por “acreditar” na Efacec “num momento em que muitos não acreditavam ainda na economia portuguesa”.

Caldeira Cabral apontou ainda a Efacec como “um bom exemplo do que é a indústria portuguesa”, que “faz parte da solução para o problema de mobilidade mundial para o qual uma solução portuguesa está a ganhar espaço mundialmente”.

Por sectores, na energia, a petrolífera angolana Sonangol detém uma participação indirecta na Galp através da Amorim Energia. Isto porque a petrolífera do MPLA controla a Esperaza Holding, empresa que, conjuntamente com o grupo Amorim, detém a Amorim Energia, a qual é dona de 33,34% da Galp Energia.

A Amorim Energia tem como accionistas a Power, Oil & Gas (35%), Amorim Investimentos Energéticos (20%) e a Esperaza Holding BV (45%). Por sua vez, a Esperaza é detida em 60% pela Sonangol e 40% por Isabel dos Santos.

Em Outubro de 2015, através da Winterfell Industries, a empresária adquiriu a maioria do capital da Efacec Power Solutions, passando Mário da Silva – um dos visados no arresto de bens e “braço direito” de Isabel dos Santos – a presidir o Conselho de Administração.

Nas telecomunicações, Isabel dos Santos detém uma participação na Nos – ainda tentou comprar a PT SGPS, actual Pharol, em Novembro de 2014, mas falhou a operação. A entrada no sector deu-se em 20 de Dezembro de 2009, quando através da Kento Holding Limited, ficou com 10% da Zon Multimédia.

Em Maio de 2012, a Unitel International Holdings B.V. adquiriu 19,24% da operadora, no âmbito de movimentações que tinham como cenário uma possível fusão com a Optimus, da Sonaecom, do grupo Sonae.

Em Novembro do mesmo ano, a Sonaecom e Isabel do Santos tornaram pública a operação de fusão, que viria a dar origem à Nos, operadora controlada pela ZOPT, de que são accionistas a empresária angolana e o grupo português liderado Cláudia Azevedo.

Na banca, é a maior accionista do EuroBic – a Santoro Financial Holding SGPS detém 25% e a FiniSantoro Holding Limited 17,5%, de acordo com dados disponíveis no site da instituição -, com 42,5% do capital, após ter comprado uma parte da posição que pertencia ao empresário Américo Amorim.

A providência cautelar de arresto preventivo, decretada pelo Tribunal, inclui os 99,9% pertencentes a Isabel dos Santos junto da empresa Zap Midia SA, através da sua empresa Finstar – Sociedade de Investimento e Participações. A Zap Midia detém 70% da Zap, operadora de televisão paga, sendo que os restantes 30% estão nas mãos da Nos.

Quem elogia (sempre) alcança

Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, elogiou no passado dia 31 de Outubro o papel do banco central angolano na estabilização da economia de Angola, cujas políticas, “se forem bem feitas”, vão contribuir para um país mais próspero. “Se forem bem feitas”… Como diria La Palice, se Agostinho Neto não tivesse morrido… estaria vivo.

Carlos Costa, que estava em Luanda para participar em várias conferências e assinar um Acordo Geral de Cooperação entre o Banco Nacional de Angola e o Banco de Portugal, foi palestrante na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, numa conferência sobre “O Banco Central Europeu e a Zona Euro”.

Segundo o governador do banco central português, o BNA merece “um elogio rasgado pelo que está a fazer para o desenvolvimento da economia angolana”, que deverá ser marcado por um sistema bancário sólido, um sistema financeiro robusto e um sistema monetário adequado ao funcionamento da economia.

“Por isso eu só posso incentivar e desejar que os resultados alcançados beneficiem todos os angolanos”, referiu.

O responsável do banco central português sublinhou ainda que “se as coisas forem bem feitas, se aquilo que hoje está em curso for bem sucedido, o índice de felicidade dos angolanos seguramente vai aumentar”.

Na resposta à pergunta sobre o papel da política monetária, Carlos Costa disse que o papel do banco central é cuidar do sistema de circulação monetária na economia financeira, realçando que há uma divisão de trabalho, sendo sua tarefa a estabilidade de preços e o equilíbrio financeiro.

“Temos que assegurar que a economia real esteja em condições de funcionar. Se uma economia entra em colapso porque há desconfiança na moeda, no sistema financeiro, perda de mecanismo de cedência, da poupança, dos que têm capacidade de financiar para os que têm necessidade, então é um problema do banco central”, frisou.

Um governador (português) à moda do MPLA

Recorde-se que em Março de 2019 o Presidente da associação portuguesa Frente Cívica, Paulo de Morais, endereçou uma carta ao governador do Banco de Portugal, exactamente Carlos Costa, procurando saber qual o destino “do capital garantido pela “Garantia Autónoma até ao valor de cinco mil milhões e setecentos milhões de dólares norte-americanos a favor do Banco Espírito Santos Angola, SA (BESA) (…) que assume a responsabilidade pelo bom e integral cumprimentos das operações de crédito executadas” pelo BESA – nos termos do Despacho Presidencial Interno nº 7/2013, assinado pelo Presidente José Eduardo dos Santos.

A Frente Cívica recordava o Governador do Banco de Portugal que à data (início de 2014) o Banco Espírito Santo era detentor de 55,71% do BESA e que, “face a esta garantia, o Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, afirmou não se prever “impacto negativo relevante na posição de capital do BES, resultante da situação financeira do BESA”.

Assim, a Frente Cívica pretendia saber se a garantia foi ou não executada; como foi garantida a exposição do BES ao BESA esse tal ocorreu; se posteriormente o Banco de Portugal envidou esforços no sentido de recuperar, a favor do sistema financeiro português o capital referido; em que medidas as excelentes e actuais relações diplomáticas entre Portugal e Angola, a proximidade entre os presidente de Portugal e Angola contribuíram (ou não) para o desiderato da recuperação de tão elevado montante e, por último, se o capital não foi até hoje recuperado, solicita a informação sobre quem está a suportar esse prejuízo, se o BES, se o Novo Banco, o Fundo de Resolução ou o Estado Português.

Recorde-se que, segundo a sentença que considerou legal a resolução do BES, o Banco de Portugal não aceitou a garantia de Angola ao BES pela falta de informação fundamental para a tornar elegível.

Na sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, de quase 250 páginas e assinada por 20 juízes, é citada a defesa do Banco de Portugal no processo em causa e é referida também a garantia soberana que Angola deu ao BESA, no final de 2013, no valor de 5,7 mil milhões de dólares, e que Ricardo Salgado tem vindo a acusar as autoridades portuguesas de terem deitado fora, penalizando o banco de que era presidente.

Segundo o tribunal, na defesa apresentada, o Banco de Portugal indicou que no documento da garantia havia a “falta de envio dos Anexos I e II”, onde deveriam estar identificados os créditos e os imóveis protegidos, o que “impossibilitou o supervisor de proceder a uma análise integral e cuidada que permitisse aferir do compromisso assumido e a verificação cabal dos requisitos prudenciais (…), designadamente o de saber qual o efectivo objecto dessa garantia”.

O Tribunal Administrativo de Lisboa disse mesmo que “resulta claramente probatório que o BES não forneceu ao Banco de Portugal – não obstante a insistência deste último para o efeito – as informações necessárias à elegibilidade da mesma para efeitos prudenciais”.

Além disso, diz o Banco de Portugal que em 27 de Julho o Banco Nacional de Angola informou que após inspecção ao BESA percebeu que havia créditos problemáticos não cobertos pela garantia e que impôs um conjunto de medidas correctivas. A garantia veio a ser revogada por Angola em 4 de Agosto de 2014, no dia seguinte à resolução do BES em Portugal.

Em início de Março, em entrevista à TSF, o último presidente do BES, Ricardo Salgado, perguntou se se “conhece algum Estado que tenha desprezado uma garantia de outro Estado”, referindo que o então “Presidente da República de Angola [José Eduardo dos Santos] fez questão de assinar e dizer que era ‘first demand’”.

A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa significa a primeira vitória do banco central, imerso em 400 processos que contestam as medidas tomadas na resolução do BES, uma vez que considera que decisão do banco central de 3 de Agosto de 2014 foi legal e constitucional.

Apesar da complexidade do seu teor e da legislação citada, esta sentença faz um importante resumo do que se passou nos BES nos meses antes da resolução: nos finais de 2013, o BdP “intensificou vigilância” ao BES; em 14 de Fevereiro de 2014 a proibição do BES de vender papel comercial do Grupo Espírito Santo (GES) sem autorização do banco central; a determinação em 14 de Fevereiro de medidas de reforço dos rácios de capital (que leva ao aumento de capital de Junho, de 1.045 milhões de euros); as medidas que obrigam à substituição dos administradores do BES em Julho (destaque para a saída de Salgado e substituição pelo economista Vítor Bento, caindo a hipótese de subir a presidente Morais Pires, braço-direito de Salgado no banco).

A imposição em 22 de Julho de uma provisão especial de 2.000 milhões de euros para riscos da exposição ao (GES); a fuga de depósitos que se intensifica após 10 de Julho e que ascenderá a seis mil milhões de euros; a intimação em 29 de Julho para um plano de recapitalização com recurso a fundos privados (nunca aconteceria porque, segundo o Banco de Portugal, anteriores interessados desapareceram); a apresentação, em 30 de Julho de 2014, de prejuízos históricos de 3.557,3 milhões de euros, referentes ao primeiro semestre, mais 1.500 milhões de euros do que os comunicados em 10 de Julho, devido à descoberta de perdas por recompra de obrigações próprias e de garantias prestadas a um credor da Venezuela (as cartas de conforto); e, por fim, a retirada pelo Banco Central Europeu do estatuto de contraparte ao BES, exigindo-lhe a devolução dos 10 mil milhões de euros que lhe tinha emprestado.

Todos estes eventos confluíram na resolução do BES, em 3 de Agosto de 2014, considerando o tribunal que, perante solvabilidade insuficiente e falta de liquidez, “não havia um cenário alternativo [à resolução] que não fosse o da liquidação”, o que seria ainda pior já que, além de ter custos para os credores e accionistas, prejudicaria ainda “o erário público e bem assim o contribuinte e ainda o depositante”.

Quanto à alternativa de injecção de dinheiro pelo Estado, diz o tribunal que isso teria de ser uma decisão do Governo, não do Banco de Portugal, e que mesmo essa só teria benefícios para os credores subordinados e os accionistas.

“Note-se que a questão da recapitalização pública, enquanto medida menos gravosa, na óptica apresentada pelos autores da presente acção, só o é numa perspectiva totalmente individual e utilitarista do erário público”, lê-se na página 214.

Esta sentença debruça-se ainda sobre o decreto-lei do Governo que permite a resolução (DL 114-A/2014, de 1 de Agosto), porquanto os autores da acção defendem a sua ilegalidade, uma vez que o Governo deliberou sobre um tema para que precisava de autorização legislativa do parlamento, com o tribunal a considerar esse diploma legal, numa parte da sentença muito intrincada do ponto de vista jurídico em que até é citado o livro “O Capital”, de Karl Marx, a propósito da intervenção estatal nos meios de produção.

O tribunal não dá ainda razão aos autores da acção judicial quando consideram que o Banco de Portugal não deu a informação toda ao mercado quando já em Julho de 2014 dizia que o BES era sólido, considerando que “toda e qualquer comunicação ou exteriorização por parte do Banco de Portugal, anterior a 28 de Julho é certa, correta e verdadeira”, isto “face aos dados de que dispunha naquelas datas”.

Folha 8 com Público e Lusa

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