Degradação económica e social sem precedentes

Há três anos, no dia 26 de Setembro de 2017, João Manuel Gonçalves Lourenço tomava posse como chefe de Estado, com o propósito de “corrigir o que estava mal no país”. Mas a degradação da economia e da situação social em três anos atingiu recordes sem precedentes. A corrupção, a repressão e a fragilidade das superestruturas político-jurídicas e económicas herdadas do seu predecessor colocam-se como desafios cruciais.

Por José Marcos Mavungo (*)

Todos sabemos o famoso slogan do actual Presidente da República de Angola na campanha eleitoral de Agosto 2017: «Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem». A memória da época revela a inquietação na opinião pública nacional e internacional perante as amarras de José Eduardo dos Santos, que arquitectara um período de governação escaldante, autoritário, mortífero, de abusos de poder, de corrupção endémica, de fracasso económico e de grave exclusão social… Pode dizer-se que o slogan suscitou alguma esperança perante a ideologia governativa de Angola que, durante décadas, provocou os desastres humanos, sociais e económicos que tão bem conhecemos.

Hoje, sem sombra de dúvida, nos novos ventos de João Lourenço, há maior consciência da realidade política, social e económica; e já temos vindo a habituar-nos a mudanças profundas nos mitos sociais – o fim do medo político e de uma classe estrepitosa de homens de costas largas e donos do país, a exonerações da família real eduardista de posições-chave na governação do país. Além disso, o chefe máximo de Angola melhorou a percepção da corrupção do país pelo segundo ano consecutivo, passando da 167ª, em 2017, para 146ª posição, em 2019.

Porém, os programas do governo no tocante à dita luta cerrada contra corrupção, ao respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e ao desenvolvimento (e.g. o PIIM) continuam circunstanciais e precários.

Com efeito, três anos depois, nas mudanças, a sociedade civil continua a apontar projectos inflacionados a disparar o alarme da corrupção, do nepotismo e do tráfego de influência. A ilusão dos novos ventos revela-se na deficiência da Constituição e das leis de combate à corrupção, no adiamento de eleições autárquicas e na incapacidade do Executivo em travar o preço da cesta básica, numa economia em recessão constante e uma situação social marcando “15 milhões de habitantes privados de alimentação, água, assistência médica e medicamentosa” (Fonte: Ovilongwa).

Além disso, destapou-se, o véu de uma justiça selectiva, como se todos os grandes magnatas do regime não tivessem participado do sistema e saque do país. E com algum destaque, a família biológica e alguns amigos próximos de José Eduardo dos Santos vivem no centro do furação da justiça angolana, desde 26 de Setembro de 2017. Recentemente, a grande comoção da família real eduardista estendeu-se à casa de Agostinho Neto.

«Não se trata de perseguição política», mas de «cidadãos a contas com a justiça» segredou João Lourenço ao jornalista da RTP, em Março de 2019. E a afirmação parece ter sentido, quando, a 28 de Novembro de 2018, em Lisboa, o chefe de Estado angolano manifestou a sua vontade e determinação em lutar contra a corrupção, mesmo supondo estar perante «um ninho de marimbondos» (uma espécie de vespas), um desafio comparável a «brincar com o fogo»; e até porque não faltam familiares e amigos de José Eduardo dos Santos e Agostinho Neto em liberdade e sem processo na Procuradoria-Geral da República.

Contudo, custa a acreditar, quando se vê que, no grosso do actual «entourage» do Presidente da República de Angola, estão as mesmas gerações de «marimbondos» e autores morais de vários «crimes políticos», chamadas ao poder, uns no Governo e na Assembleia Nacional, outros no partido e no Exército, todos eles exercendo a sua acção sobre a vida dos novos poderes instituídos e nada acontece contra eles. A parcialidade da PGR, que se depreende da clara posição favorável aos detentores do poder, evidencia as debilidades de um processo de combate à corrução politizado por forças inflexíveis.

Certo, já se esboçam na actual equipa governativa alguns rostos jovens tecnocratas. Mas, a cautela do Presidente revela-se comprometedora e excessiva, especialmente em vista a evitar o fracasso em lidar com os atuais ditos novos tempos.

Desta forma, se assaca mais responsabilidades nos males de Angola à família biológica e a alguns amigos próximos de José Eduardo dos Santos, enquanto João Lourenço vai levando ao colo as suas forças de segurança e muitos dignitários do regime (e.g. Manuel Vicente, cuja fortuna e gestão da Sonangol revelam indícios de crime, clamando por uma investigação forense), apesar de tantos casos conhecidos sobre corrupção e assassinatos de pacatos cidadãos, impedindo assim o funcionamento normal das instituições de administração da justiça.

Talvez se pretenda por esse meio mostrar a dificuldade e a complexidade da cruzada contra a corrupção, e as consequências de «brincar com o fogo» (combater milhões de vespas), evitando assim que todos os altos dignitários do regime (incluindo ele próprio João Lourenço) fossem queimados, incriminados. Já que «contra milhões ninguém combate», a cruzada contra a corrupção, que tem suscitado guerra entre marimbondos, dá-nos a impressão de um cenário em que, no futuro, as «vespas» entre si se farão amigos; e depois se abriria caminho para um processo de reconciliação à maneira do regime, pelo qual todos seriam amnistiados.

Por outro lado, no tocante aos direitos humanos, a pandemia do novo coronavírus tornou-se pretexto para que pacatos cidadãos fossem mortos pelas balas impiedosas da Polícia Nacional; e a repressão à liberdade de expressão é aterradora, destacando-se Cabinda, terra de muito crime político, onde a «questão de Cabinda» é uma pedra no sapato de João Lourenço e os activistas sociais estão sob cerco. Os assassinatos e a repressão não ficaram para trás, mesmo com a nova liderança no país. Como foi Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos, assim é também João Lourenço.

Sobre dossiês sensíveis em matéria de crimes políticos, como o 27 de Maio de 1977, a descrição do plano de Reconciliação em Memória às Vítimas dos Conflitos Políticos lançado no dia 27 de Agosto de 2019 evidencia um processo inconsistente. Ninguém fala do apuramento da verdade, nem se avança com a possibilidade de se pedir perdão à Nação, o que permitiria assumir “o sofrimento provocado” a milhares de cidadãos, vítimas dos desvarios do regime e reduzidos à uma vida caótica e indigna.

Hoje, aos três anos, mais do que um tempo para lançar as bases da reorganização do país, «O Programa de reformas de João Lourenço» – a mais difícil e famosa ruptura com a governação de José Eduardo dos Santos – continua na ordem do dia e cada vez mais encalacrado.

Até agora, João Lourenço continua indeciso sobre o destino a dar ao país, não tem ainda agenda de governação. Nem se quer é o garante de que os limites da Constituição não podem ser ultrapassados pela lógica dos interesses individualistas e partidários, o que tem reflexos no exercício dos direitos de cidadania e no combate à corrupção. Nada permite acreditar em mudanças substanciais, excepto em um novo chefe de Estado absentista, e apoiado por um «entourage» de governantes amigáveis, a maioria dos quais antigos dignitários da governação de José Eduardo dos Santos.

E, neste enquanto “o pau vai e vem”, João Lourenço vai estruturando o seu discurso no sentido de desmantelar a influência de José Eduardo dos Santos e da sua família biológica, e de consolidar o poder absoluto herdado do antecessor. E nisto, o novo chefe de Estado de Angola usa a razão dos interesses políticos e exercita a sabedoria de Maquiavel, apoiando-se em retórica revestida de sensacionalismo contra José Eduardo dos Santos e o saque do seu governo.

As ameaças que esta situação pesa sobre a actual governação enxerga a olho nu, prognosticando «um futuro negro». Pelo que os Angolanos precisam de abordar os actuais dilemas e conflitos latentes (entre os quais «a repartição dos recursos», «a criminalização das manifestações» e «a questão de Cabinda»), do ponto de vista político-jurídico, social, económico e cultural, o que permitiria aprofundar e garantir uma paz duradoira e um desenvolvimento sustentável.

E é importante frisá-lo com veemência, não suceda que a ignorância dos actuais indicadores de alerta da existência de conflitos prepare os angolanos para um futuro preenche de apreensões. E isto, sobretudo pela incapacidade manifesta dos governantes em tirar as populações da miséria, da fome, das doenças, da corrupção, das injustiças, dos crimes políticos, das tensões sociais e políticas.

Observe-se, a história das Nações não se compadece com o tempo curto de vida de um governante no poder, já que tudo depende das escolhas feitas e das oportunidades perdidas. Às vezes os governantes deixam de governar para viver para si próprios conformando com o pouco que têm.

Por conseguinte, dificilmente se compadeceria aplicar aos três anos da governação de João Lourenço a ideia de ter criado condições para se governar, isto é, redefinir a situação e potenciar ao país estruturas e instituições fortes que possam resistir às paixões individualistas e partidaristas.

A nível de instituições democráticas, o Estado angolano não evolui, está estagnado numa época passada, a da ditadura eduardista que legou ao povo angolano superestruturas estalinistas: a actual Constituição atípica, que ninguém votou, continua com um poder absoluto e absolutista, acreditando-se acima do bem e do mal, sem contrapoder que os equilibre. Além disso, as instituições jurídicas continuam escravas do terror dos detentores do poder; e o prestígio dos quadros chamados para sustentar o programa de desenvolvimento do país está sendo repelido pela fragilidade de superestruturas caducas.

A chaga aberta na memória das gerações que têm vindo a sofrer os desvarios do regime nestes últimos 45 anos, as consequências desta situação nos nossos dias constituem um aviso sério: ou se repetirão os erros e sofrerão as consequências.

Donde, a urgência de reformas coerentes e consistentes. Ser ou não ser eis a questão. Uns querem estas reformas nuas e cruas, isto é, uma ruptura radical; enquanto outros querem vê-las bem vestidas para o cerimonial de um processo gradual.

Em todo o caso, porém, «o Programa de João Lourenço» só terá efeitos positivos se o governo promover um processo de reconciliação nacional coerente, animada por consciências lúcidas. É grave continuar a caucionar os crimes políticos destes 45 anos de governação estalinista em Angola.

Resta então encarar este período de destruição e de esbanjamento nacional, em que a classe política dominante, os senhores absolutos do partido controlavam a administração, comiam e bebiam como se não houvesse o amanhã. Há, pois, a obrigação de tirar lições destes amargos anos, marcados pela perversão da consciência política e das instituições da Governação e da Administração da Justiça aos fins de ganho pessoal e partidarista.

Como? Delinear uma Visão Estratégica para um Plano de Recuperação e operar reformas tão grandes que consubstanciem uma ruptura, que ultrapasse o desgaste a que se chegou ao fim de um ciclo de governação perversa.

Nesta senda, o mais importante é educar, formar e sensibilizar para que os problemas do país sejam levados para uma «Comissão da Verdade e Reconciliação», como foi o caso da África do Sul e Serra Leoa, e, assim, traçar as linhas mestras de uma verdadeira reconciliação em Angola.

Depois da Comissão da Verdade e Reconciliação, do diálogo e debates, dos consensos em vista a humanizar a sociedade, haveria então a segunda etapa: mudar a Constituição – reformular leis com resquícios ditatoriais, e combater práticas despóticas e de corrupção advindas dos 38 anos do eduardismo. Desta forma, se poderá fazer escolhas acertadas e coerentes, alinhar novos programas políticos pensados para promover não só o crescimento económico, mas também a paz dos espíritos e o desenvolvimento social.

Assim, João Lourenço terá um compromisso sério e coerente de «melhorar o que está bem e corrigir o que está mal». Assim, saberá ousar aproximar-se cada vez mais perto das pessoas, e conceder a Justiça, a Paz e o Desenvolvimento ao povo.

(*) Activista dos Direito Humanos

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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