Sobas e reis? MPLA exige
mais do que vassalagem

A ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira, defendeu hoje, em Luanda, uma “reflexão aturada” sobre o papel das autoridades tradicionais, estimadas actualmente em cerca de 50 mil. Tem razão. É que já não basta estarem todas ao serviço do MPLA. Estão a perder o poder de determinar em quem é que as suas comunidades devem votar, o que é uma clara chatice.

Carolina Cerqueira discursava na abertura do III Encontro sobre as Autoridades Tradicionais em Angola, que tem entre vários objectivos fazer uma reflexão sobre o lugar e papel desse poder local nos processos de liderança comunitária e de autarquias locais e abordar formas para melhorar a organização das actividades das autoridades tradicionais, num contexto de mudança social e política.

A governante angolana sublinhou que a realização de uma reflexão aturada sobre o papel das autoridades tradicionais no processo de desenvolvimento de Angola só é possível de modo multidisciplinar, com vista a procurar compreender o percurso das mesmas.

Segundo Carolina Cerqueira, foram já realizados alguns trabalhos, sobretudo de quadros da área do direito, mas esses estudos encontram muito pouca conexão com as outras disciplinas do conhecimento científico, relativamente a um melhor entendimento sobre a sua organização social, sistemas de parentesco, bem como políticos e religiosos, entre outros.

Para a ministra, a discussão em Angola sobre as autoridades tradicionais deve exigir um estudo aturado e de coabitação para a coexistência normativa entre o direito formal e o direito costumeiro, este último exercido apenas pelos sobas, por razões históricas.

“Se por um lado ao Estado formal se exige uma Constituição para declarar e instituir os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, delimitar os poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial), por outro lado, as autoridades tradicionais existem e exercem o seu poder por via de uma legitimidade ancestral, histórico-carismática, das dinastias, gerações ou famílias, que descendem das ancestrais autoridades fundadoras da comunidade”, referiu a ministra.

O exercício de poder das autoridades tradicionais “não é plural”, sublinhou a ministra, é “restrito às elites de matriz cultural e de linhagem que, legitimadas pelos conselhos eleitorais tradicionais, assenta em práticas de exclusão para quem não pertença à linhagem ou à comunidade étnica”.

Contudo, é um facto que o processo colonial português veio a contribuir para que as autoridades tradicionais acabassem por ser “completamente deturpadas, desfeitas e rearranjadas”, vincou Carolina Cerqueira, acrescentando que em consequência algumas acabaram por ultrapassar as fronteiras do território nacional.

A ministra referiu que com a implantação das autarquias locais, cujas primeiras eleições estão previstas para 2020, a regulação da função administrativa formal das autoridades tradicionais venha a garantir a coesão social e contribua para a coesão nacional.

A titular da pasta da Cultura chamou a atenção para a multiplicidade de poderes, numa sociedade multiétnica e pós-conflito como Angola, enaltecendo (ordens superiores a isso obrigam) a posição do Governo angolano sobre o gradualismo na implementação das autarquias, o principal ponto de divergência entre o executivo, partidos da oposição e algumas organizações da sociedade civil.

O funcionamento das autoridades tradicionais levanta ainda dúvidas, segundo Carolina Cerqueira, tendo em conta o conflito armado e mesmo depois do seu fim, que deu origem à mobilidade demográfica trans-étnica, questionando como agiram nesse período, como exerciam o poder nos novos lugares e junto de que populações.

O Estado angolano reconhece a importância do poder local, apesar da lógica do seu funcionamento se reger por princípios próprios, que muitas vezes chocam com os princípios democráticos e com as regras do Estado de direito, admitiu a ministra.

Nesse sentido, Carolina Cerqueira propôs a revisão do Estatuto das Autoridades Tradicionais, aprovado em 2008, para a sua adaptação ao novo quadro constitucional e jurídico do país.

Os Sobas, os diamantes e o MPLA

O poder tradicional dos sobas angolanos nas Lundas nada pode fazer contra o das diamantíferas, que expulsam as comunidades locais de terrenos seculares e põem em causa todo o desenvolvimento agrícola das duas regiões. E que diz o Governo? Nada. A razão da força (do dinheiro) continua a derrotar em toda a linha a força da razão (dos direitos).

Os lamentos foram feitos à agência Lusa, em Março deste ano, por duas das principais autoridades tradicionais que reinam em comunidades nas Lundas Norte e Sul, em que destacaram a falta de acesso à terra, o incumprimento das promessas das diferentes empresas mineiras no direito à água, luz, educação, saúde e emprego, sendo também frequentes as escaramuças com as “rigorosas” forças de segurança locais e das próprias diamantíferas e a expulsão das suas terras com indemnizações de 300 kwanzas (0,83 euros).

Moçambique Kafula, soba do Bairro Kafula Luele, na Lunda Norte, salientou o “muito sofrimento” das populações, criticando as diamantíferas que “gerem” uma das maiores áreas de exploração de diamantes do mundo maior, empresas que se “esquecem” que lá, lado a lado, “também vivem pessoas que estão a morrer à fome”.

“As empresas mineiras violam muito o código mineiro. Nós, lá, estamos a sofrer muito, mas muito mesmo. É muito mesmo. Quando o Governo lhes dá a licença, o alvará, para a exploração de diamantes, não respeitam o povo. O objectivo deles é tirar os diamantes. Enquanto tirarem os diamantes não querem saber do povo. E, se tem lá pessoas, querem bater-lhes”, explicou o soba Moçambique Kafula.

Quando alguém adoece, não há sequer em redor um posto médico que, à partida teria de ser garantido pelas diamantíferas, em redor, queixa-se, lamentando as sucessivas mortes de membros da comunidade local.

E quando protesta, a “segurança” em redor do perímetro das explorações “resolve” o assunto, sublinhou o soba, lembrando que a sua comunidade vai estar, em breve, junto daquela que irá tornar-se a maior mina de diamantes do mundo, a do Luaxe.

Trata-se de um povo maioritariamente agricultor que, face à abundância de diamantes, também garimpa nos vários rios e solos da região, mas que nada pode fazer dado a constante vigilância.

“Já falei várias vezes [com as empresas diamantíferas]: o povo não pode ir acartar água, não pode fazer pesca porque é acusado de ir garimpar. Se sabem que o povo está lá a garimpar porque é que eles metem lá a empresa? Eu sei que aquele é um gatuno, não vou meter lá um pão, se não vai roubar. Mas porque é que eles põem lá as empresas? O povo é garimpeiro e não tem empresa”, explicou.

Segundo o soba Moçambique Kafula, quando os administradores das empresas mineiras se deslocam a Luanda, há a intenção de demonstrar que as promessas são todas cumpridas e que não existem problemas com as comunidades locais, quando o povo “continua a sofrer muito”.

“Na boca eles falam [que sim, que cumprem as promessas], mas não realizam. Vêm aqui [a Luanda] e falam que nós estamos a ajudar. Se você for ao local vê o povo a viver mal. Mas quando chegam aqui, os executivos dizem que nos vão ajudar com isto e aquilo, mas, lá, não ajudam. Se ajudam é 1%. E vêm aqui e dizem que é 100%. Não estão a ajudar o povo. Estamos a sofrer muito. Precisamos da ajuda do Governo que, nas eleições (de agosto de 2017), disse que iria ajudar quando as ganhasse. Qual é o povo que está a ajudar? O povo está a morrer à fome”, frisou.

Por seu lado, o rei da Lunda, José Estêvão Mwatchissengue, soberano do poder tradicional do povo Lunda Tchoqwe, sublinhou que o panorama dos seus “súbditos” não é diferente daquele que se vive no Bairro Kafula Luele, em que o pouco é feito nas zonas urbanas e não nas rurais, “onde o povo está à deriva”.

“Prometeram a escola, luz, água e postos de saúde. A saúde nos bairros é precária. Construíram uma escola com quatro ou cinco salas e não há posto médico. A água, o sítio onde a colocaram, tiraram as pessoas das suas lavras e indemnizaram com 300 kwanzas, aquilo que eles acharam que tinham de dar deram. Tiraram-nos daquele lugar e foram colocá-los noutro sítio. No sítio onde os colocaram também estão a ser retirados de novo”, contou.

Segundo o rei Mwatchissengue, os sucessivos postos de controlo impedem a grande maioria das pessoas de circular entre as diferentes comunidades.

“Até eu, para ir visitar o Malude, a mina está de um lado, mas eles colocam o controlo para quem vai à vila, onde estão as comunidades. E tem havido choques entre a população e a segurança. Isto não é salutar. Há falta de emprego nas comunidades, de incentivos para a agricultura, de energia, de água, de medicamentos. Alguns bairros não têm postos médicos. Há falta de transportes. Há muitas crianças que estão sem estudar. Há muitas crianças e até alguns adultos sem registo civil”, prosseguiu o soberano lunda.

O cúmulo, explicou, foi atingido no Malude, embora haja outros bairros na mesma situação, quando as populações em redor da zona mineira foram “empurradas” para outra região para poderem prosseguir com as lavras.

“Mas já os estão a obrigar a sair outra vez, porque a empresa descobriu que também ali há diamantes. Não sei onde a população irá fazer agora as suas lavras, feitas com sacrifício, com enxada, para sustento familiar. Não existem máquinas lá para que possam haver algumas cooperativas ou associações agrícolas. Com o esforço que a população faz ainda complicam mais a sua vida dos cidadãos e é muito triste”, disse.

A 11 de Março de 2019, um estudo de uma organização não governamental de Angola criticou o Estado angolano pela “ausência” de responsabilização pelas comunidades que residem nas zonas de exploração diamantíferas, permitindo abusos das empresas de exploração mineira, sobretudo nas Lundas.

O estudo, intitulado “Os Impactos da Exploração Diamantífera sobre as Comunidades Locais”, foi elaborado entre Setembro de 2015 e idêntico mês de 2018, pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), coordenado por Serra Bango, e em que se critica o Estado por se ter “exonerado das suas responsabilidades no cuidado das populações” que vivem à volta das zonas de exploração diamantífera.

“Não têm acesso a água, o sistema de ensino é precário e o de saúde quase nulo. Os jovens vivem desempregados e há um elevado número de meninas com gravidezes precoces”, explicou Serra Bango, salientando que o Estado também “não tem a mínima preocupação” em criar condições para a promoção e inclusão dos jovens.

Questionado então sobre se as principais zonas de exploração mineira nas Lundas são um “Estado dentro do Estado”, Serra Bango reconheceu que “é quase isso”, defendendo que as concessões mineiras são “cidades dentro de uma cidade”, pondo em causa o porquê da existência zonas de exploração se estendem ao longo de 50 quilómetros.

Folha 8 com Lusa

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