Minas (das que matam) não nos largam

Angola libertou, nos últimos cinco anos, 90% das áreas suspeitas de contaminação por minas, mas os progressos não retiraram o país da lista dos 10 estados mais contaminados, segundo um relatório hoje divulgado. Sejamos justos e não imputemos responsabilidades ao Governo de João Lourenço que, como é visível, tem outras prioridades mais importantes e que não passam por salvar angolanos de serem mortos, ou feridos, pelas minas da nossa vergonha.

De acordo com o relatório anual da Campanha Internacional para a Erradicação de Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês), o Landmine Monitor, Angola mantém-se entre os países classificados como tendo contaminação massiva, ou seja, com mais de 100 quilómetros quadrados de áreas com minas terrestres e outros engenhos explosivos.

Além de Angola, incluem-se neste grupo o Chade, Afeganistão, Camboja, Tailândia, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Turquia, Iraque e Iémen, todos estados signatários do Tratado para a Erradicação das Minas Terrestres, que cumpre este ano duas décadas de existência.

Há 20 anos, 164 países comprometeram-se a banir o uso, produção, comércio e armazenagem de minas antipessoal, bem como a destruir os `stocks` destes dispositivos, limpar as áreas contaminadas num período de 10 anos e fornecer assistência às vítimas destes engenhos explosivos, na sua maioria civis.

Há 33 países que continuam fora do tratado, mas, segundo a ICBL, têm respeitado as suas principais determinações e rejeitado o uso destes engenhos pelas respectivas forças armadas.

“O estigma contra as minas antipessoal continua forte”, assinala o relatório, que documentou apenas o uso de minas por forças governamentais durante este ano em Mianmar, país que não integra o tratado.

As minas antipessoal são hoje usadas sobretudo por grupos armados não estatais, tendo sido registado o seu uso em pelo menos seis países: Afeganistão, Nigéria, Iémen, Índia, Mianmar e Paquistão.

Angola surge entre os países que detém minas terrestres armazenadas para treino ou investigação, tendo declarado 1.304 dispositivos (2018), menos 156 do que inicialmente declarado.

Entre 2014 e 2018, Angola conseguiu limpar 9.74 quilómetros quadrados terras minadas.

O tratado para a eliminação de minas pessoais entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2003 em Angola, que, ao abrigo do artigo 5, tinha até 2013 para limpar as zonas minadas sobre a sua jurisdição, no entanto, o país submeteu dois pedidos de extensão para cumprir o objectivo de descontaminação e espera até 31 de Dezembro de 2025 limpar os 105.05 quilómetros que permanecem contaminados.

Em 2006, cumprindo outra das disposições do tratado, Angola reportou ter completado a destruição de mais de 81 mil minas antipessoal que tinha armazenadas.

O relatório assinala ainda que o país registou uma redução dos fundos para o programa de desminagem após a perda de financiamento da União Europeia, em 2016, e dos Estados Unidos, em 2018, o que se reflectiu nos progressos na limpeza das áreas minadas.

Segundo o documento, em 2015 foram desminados 4,1 quilómetros quadrados, tendo-se, desde essa altura, situado a área anual média limpa nos 1,1 quilómetros quadrados.

De acordo com o relatório, a maioria dos Estados orçamenta actividades de desminagem, mas os fundos raramente são suficientes para suportar os programas na sua totalidade, sendo que, no caso de Angola, os “significativos fundos” destinados pelo Governo para as acções de limpeza foram quase “exclusivamente” associados a projectos de grandes infra-estruturas.

O relatório assinala ainda Moçambique como um dos 31 países que se declararam livres de minas nos últimos cinco anos.

O relatório ICBL deste ano apresenta uma revisão dos progressos alcançados nos 20 anos após a entrada em vigor do Tratado para a Erradicação de Minas sublinhando o “sucesso impressionante do tratado” traduzido na quase total eliminação do uso destes dispositivos por forças governamentais.

No entanto, o documento alerta para o número global de vítimas mortais e feridos causados pela explosão de minas terrestres, que se manteve alto em 2018 pelo quarto ano consecutivo.

Em 2018, o Landmine Monitor registou 6.897 mortos ou feridos por minas terrestres ou outros restos explosivos, número inflacionado pelos conflitos no Afeganistão, Mali, Mianmar, Nigéria, Síria e Ucrânia.

O lançamento do relatório antecede a quarta conferência “Um mundo livre de minas”, que decorre em Oslo, Noruega, entre 25 e 29 de Novembro, e conta com a participação de 170 especialistas, activistas e sobreviventes de minas terrestres.

A conferência vai apelar para um compromisso financeiro e político “claro” que permita cumprir o objectivo de erradicação das minas terrestres até 2025 e fornecer apoio aos sobreviventes e às comunidades afectadas.

As minas (ainda) andam por aí

As verbas do Orçamento Geral do Estado diminuíram, assim como financiamento internacional. Estima-se que existam em Angola entre 40 a 60 mil vítimas de minas, número que o Governo quer apurar com mais rigor mas que, certamente, precisam do reforço orçamental que o Executivo diz não ter.

Em entrevista à Lusa, o chefe do gabinete de Intercâmbio e Cooperação da Comissão Intersectorial de Desminagem e Assistência Humanitária (CNIDAH), Adriano Gonçalves, assumiu o problema: “Há cerca de dez anos que vimos sofrendo declínios de financiamento à desminagem em Angola”, na ordem dos 90%, o que tem tido impacto directo nas actividades de limpeza de campos minados que tem sido “consideravelmente” reduzida.

Além da redução dos financiamentos dos doadores internacionais, que têm de acudir “a muitas prioridades” também as verbas provenientes do Orçamento Geral do Estado diminuíram bastante, penalizadas pela queda dos preços do petróleo em 2014, uma razão que tem servido às mil maravilhas para justificar tudo, até mesmo o que é injustificável. “Gostaríamos que a desminagem fosse feita com maior celeridade e maior intensidade”, admite o responsável.

Por isso, a visita do Príncipe Harry a Angola, que passou por locais onde esteve a sua mãe, Diana de Gales, em 1997, foi vista como “uma das grandes oportunidades para mostrar” no terreno os resultados da acção contra as minas no país.

Os longos períodos de conflito, primeiro no período colonial, iniciado em 1961 e logo após a independência, em 1975, numa guerra civil que só teve fim em 2002, deixou espalhadas pelo país milhares de minas e outros engenhos explosivos por detonar que, apesar das operações de limpeza, continuam a fazer vítimas.

Isto levou a que o Governo investisse numa campanha de sensibilização para o risco de minas e outros engenhos explosivos, e está a ser liderada pelo Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, para “reforçar” a prevenção.

Adriano Gonçalves justifica também este aumento com a “maior mobilidade das pessoas” que voltaram a encarar a agricultura quase sempre como único meio de subsistência e procuram terrenos agrícolas, já sem receio das minas, regressando “de forma um pouco desorganizada”.

As minas afectam fundamentalmente os civis e, neste grupo, mulheres e crianças são as principais vítimas, pois “andam pelas lavras e estão susceptíveis de encontrar a qualquer momento os engenhos explosivos”.

O Estado angolano é o principal financiador das actividades de desminagem em Angola, através de quatro operadores públicos (Instituto Nacional de Desminagem, Brigadas da Casa de Segurança da Presidência, as Brigadas da Polícia de Guarda Fronteira e as Brigadas de Engenharia das Forças Armadas Angolanas), existindo ainda quatro operadores internacionais (Halo Trust, Mine Advisoy Group, Norwegian Peoples Aid e APOPO).

Signatária da Convenção de Otava, Angola comprometeu-se a eliminar as minas antipessoais no seu território até 31 de Dezembro de 2025, mas o dirigente da CNIDAH encara este prazo com cepticismo. “Estamos cientes de que a dimensão do problema não é igual em todos os Estados-partes e no que concerne a Angola temos a certeza de que teremos grandes dificuldades em cumprir este desiderato até 2025”, afirmou, salientou que o Governo “fará todos os possíveis” para ter a maior redução possível de campos minados, “que ainda são muitos”.

Além das actividades de desminagem, a CNIDAH aposta noutras vertentes, desde a educação e prevenção para o risco dos engenhos explosivos remanescentes da guerra à assistência às vítimas.

A comissão “intervém para que este grupo alvo tenha uma assistência médica e medicamentosa aceitável”, incluindo acompanhamento psicológico “para quem de repente se vê numa situação adversa” e formação profissional para dar novas competências às vítimas de minas, adiantou o responsável.

Faltam muitos milhões

O Governo necessita, segundo revelação feita a 27 de Agosto de 2019, de 300 milhões de dólares (269,7 milhões de euros) para se ver livre de minas até 2025.

Regressemos a 7 de Junho de 2019. “Estamos entre os países considerados com alto nível de contaminação e ainda não saímos dessa área”, disse nesse dia, em Luanda, Adriano Gonçalves, que falava à margem de um encontro de Coordenação e Avaliação do Programa de Desminagem em Angola, tendo em conta a Agenda 2025, estabelecida para os países concluírem a desminagem, assumindo que, “realisticamente, Angola não poderá atingir a meta”.

Segundo o responsável, nos últimos dez anos o sector tem registado um “decréscimo de financiamento” a nível dos doadores, entre o Estado angolano e os parceiros internacionais, que já atingiu um “nível de quase 90%”.

“O que levou a que muitos operadores que estavam a fazer um trabalho muito valioso em Angola tiveram de se retirar e os que permanecem estão com níveis muito baixo de actividades, em termos de recursos humanos e materiais”, adiantou.

“Estamos conscientes de que esta data [2025] não será tão realística para nós, porque precisaríamos de 350 milhões de dólares [308 milhões de euros] para libertar cerca de 450 áreas afectadas por ano, que seriam cerca de 15 milhões de metros quadrados por ano, para que chegássemos, em 2025, e tivéssemos o problema completamente resolvido”, referiu.

“O que nos satisfaz é que estamos num bom caminho, estamos a fazer todo esforço para que pelo menos ao chegarmos a esta data tenhamos o máximo possível feito”, disse.

Folha 8 com Lusa

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