A ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van-Dunem, disse hoje que a decisão de enviar o processo do ex-vice-Presidente angolano Manuel Vicente para Angola foi uma “decisão judicial”, argumentando que, por essa razão, não houve qualquer interferência do poder executivo. Façamos um longo intervalo para rir à grande com esta anedota…
Numa entrevista hoje divulgada pela Rádio Nacional de Angola (RNA), por ocasião da vinda a despacho que vai efectuar de 16 a 18 deste mês, Francisca Van-Dunem indiciou que, em Portugal, o poder judicial é “totalmente independente” do executivo, pelo que, sublinhou, não tem de comentar se se tratou de uma decisão correta ou menos correta.
Sim. É mesmo para continuar a rir.
“Não discuto se foi acertada ou se foi menos acertada. Não há aqui um problema de acerto ou menos desacerto. Aquilo que houve foi uma decisão judicial e, como compreenderá, não devo, não comento, decisões judiciais. O processo correu todo no sistema judicial, que tem total independência relativamente ao executivo, e esse é um aspecto que é importante frisar, que tem de facto independência relativamente ao executivo. O sistema judicial decidiu e, do meu ponto de vista, não tenho de comentar a decisão”, afirmou.
“Foi uma questão de apreciação que as autoridades judiciárias portuguesas fizeram, na altura pelo Ministério Público português, a respeito da reunião ou não dos pressupostos para transmissão do processo. Como já disse, e quero reiterar, há matérias do Judiciário que o Governo não interfere. Há um respeito absoluto pela separação de poderes”, acrescentou a ministra da Justiça portuguesa, natural de Angola.
Na entrevista, Francisca Van-Dunem não indicou se irá falar do caso com as autoridades angolanas quando estiver em Luanda.
Em causa está o processo Operação Fizz, que levou ao esfriamento das relações entre Angola e Portugal, depois de a justiça portuguesa ter acusado o ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, dos crimes e corrupção activa, falsificação de documentos e branqueamento de capitais.
Sobre o caso, o Presidente João Lourenço disse, em Janeiro de 2018, que as relações entre os dois países iam “depender muito” da resolução do processo de Manuel Vicente e classificou a atitude da justiça portuguesa até então como “uma ofensa” para o seu país.
“Lamentavelmente (Portugal) não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento e por essa razão mantemos a nossa posição”, enfatizou, na altura, João Lourenço.
Em Maio, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu enviar o processo para julgamento em Luanda, onde o procurador-geral da República angolano, Helder Pitta Grós indicou que o processo de investigação está em curso, sem nunca ter adiantado pormenores.
No processo julgado em Lisboa, O ex-procurador do Ministério Público Orlando Figueira foi condenado em Dezembro a seis anos e oito meses de prisão efectiva e o advogado Paulo Amaral Blanco a quatro anos e quatro meses de prisão com pena suspensa.
Brincar com coisas que deveriam ser sérias
António Costa, primeiro-ministro de Portugal, garante (seja lá o que isso for) que houve “absoluto consenso” entre governo e Presidência da República quanto à questão da substituição da Procuradora-Geral da República (PGR), negando que a animosidade com Angola (caso Manuel Vicente) tenha estado na origem da substituição de Joana Marques Vidal por Lucília Gago. Alguém acredita?
Paulo de Morais, presidente da portuguesa Frente Cívica, nunca teve dúvidas: “Francisca Van Dunem, Ministra portuguesa da Justiça, prestou um serviço ao regime de Angola, traindo Portugal”.
Estamos a falar do caso Manuel Vicente. Recorde-se que João Lourenço disse no início deste processo que o Governo angolano “não tinha pressa” e que “a bola não está do nosso lado, está do lado de Portugal”. A resposta portuguesa, indirecta mas com o rabo de fora, não demorou a chegar.
“Nós não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro”, disse o Presidente da República, que falava nos jardins do Palácio Presidencial, em Luanda, na sua primeira conferência de imprensa com mais de uma centena de jornalistas de órgãos nacionais e estrangeiros, quando passavam 100 dias após ter chegado à liderança no Governo.
Pois é. Importa, contudo, ver para além do óbvio. “O Presidente angolano, João Lourenço, entrou em conflito aberto com o Ministério Público português, liderado pela Procuradora-Geral Joana Marques Vidal”, afirmou na altura Paulo de Morais, acrescentando que “o diferendo teve origem no julgamento” de Manuel Vicente por corrupção, em Lisboa.
“O regime angolano pretende a transferência do processo para Luanda, o que é manifestamente impossível, porque em Angola Manuel Vicente goza neste momento de imunidade e seria, muito provavelmente, mais tarde, abrangido por uma oportuna amnistia. Tem pois de ser julgado por corrupção em Portugal”, considerou em Janeiro de 2018, em declarações ao Folha 8, o presidente da Frente Cívica.
E é neste contexto que, mais uma vez, entra o acocorado e servil funcionamento do Governo de António Costa. “Ora, no mesmo momento em que João Lourenço ameaça Portugal e exige a transferência do processo para Angola, em conflito com Joana Marques Vidal que não permite (e bem!) que tal aconteça – a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, vem anunciar que a Procuradora-Geral de Portugal está de saída. Ou seja, João Lourenço pode “estar descansado”, porque a actual Procuradora-Geral irá deixar de “importunar” o novo poder angolano”, afirmou na altura Paulo de Morais, acertando na muche.
“Francisca Van Dunem, perante um conflito entre um Chefe de Estado estrangeiro e o Ministério Público português, não hesitou: de forma subserviente, colocou-se de cócoras perante o dirigente estrangeiro. Com esta atitude, indigna de um estado democrático, esquece a autonomia da Justiça num regime em que há separação de poderes. E – pior! – envergonha Portugal”, afirmou Paulo de Morais.
O Presidente da Frente Cívica acrescentou: “Finalmente, note-se que Manuel Vicente é o ex-vice-presidente de Angola, cujo apoio João Lourenço quer garantir. E recorde-se que Francisca Van Dunem é de origem e família angolana, o que torna o caso muito mais grave”.
Um Costa a dar à costa
Recorde-se que depois do encontro que teve em Abidjan no âmbito da cimeira entre a União Europeia e a União Africana com João Lourenço, o primeiro-ministro português, António Costa reconheceu e lamentou a impotência política para resolver, como gostaria, um caso de justiça.
“Ficou claro que o único irritante que existe nas nossas relações é algo que transcende o Presidente da República de Angola e o primeiro-ministro de Portugal, transcende o poder político e tem a ver com um tema da exclusiva responsabilidade das autoridades judiciárias portuguesas”, disse António Costa.
No entanto, com a habilidade política e às vezes até politiqueira que se lhe reconhece, António Costa não descansou enquanto não descobriu uma saída política, mesmo que indirecta, para alterar o curso do processo na Justiça. Vai daí, ordenou à sua Ministra da Justiça para, nove meses antes da altura em que o assunto deveria ser analisado, divulgar que Joana Marques Vidal (uma acérrima defensora do julgamento de Manuel Vicente em Portugal) não seria reconduzida.
Em entrevista à TSF, para além de clara e inequivocamente ter dito que o mandato de Joana Marques Vidal terminava em Outubro, Francisca Van Dunen citou o próprio António Costa: “Este é claramente um processo judicial e é no espaço judicial que deve ser tratado”. É? No Espaço Judicial? Então porque razão o Governo de Angola encaminhou o pedido de transferência do processo por via diplomática?
Como explicou o Público, “na resolução da Assembleia da República que aprovou a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal assinada pelos Estados membros da CPLP, define-se que, em matéria judicial, a autoridade central para efeitos da aplicação da Convenção é a PGR. E é aqui que reside a impotência diplomática de Belém e São Bento: nenhum poder político tem legitimidade para dar indicações ao Ministério Público em matéria judicial, tendo a PGR soberania e liberdade para decidir, mesmo que os políticos não gostem”.
E então, como no caso vertente, quando o Governo de Lisboa não gosta das decisões do Ministério Público mas nada pode fazer para alterar essa realidade, restava-lhe a solução apontada por Francisca Van Dunem: afasta-se a PGR.
A propósito da separação de poderes em Angola, e como se já não bastasse termos governantes, políticos e generais a querer entrar para o anedotário mundial, eis que o então presidente do Tribunal Supremo de Angola, Manuel Aragão, também apresentou a sua candidatura no dia 3 de Março de 2017.
Vejamos a anedota: “Há uma efectiva separação de poderes no país, entre poder político e os tribunais”.
“Os que dizem que não existe, cabe a eles provarem. Se calhar não estão em condições de nos dar lições, a julgar pelos exemplos”, apontou Manuel Aragão, em declarações aos jornalistas à margem da cerimónia de abertura do Ano Judicial 2017.
Insistindo na efectiva separação de poderes em Angola, o então presidente do Tribunal Supremo recordou: “Somos todos representantes de um poder único, que é o Estado. A soberania é do povo”.
A reacção do então Presidente do Tribunal Supremo, sem destinatário especificado na declaração, surgiu no entanto uma semana depois de a diplomacia angolana ter criticado fortemente as autoridades portugueses, pela forma “inamistosa e despropositada” como foi divulgada a acusação de corrupção do Ministério Público a Manuel Vicente.
Folha com Lusa
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