Guterres sabe bem, mas não quer saber, o que é Cabinda

O presidente da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC), Emmanuel Nzita, apelou à intervenção e “pressão” do secretário-geral da ONU, António Guterres, contra a “ocupação” daquele território por Angola, segundo uma carta hoje divulgada.

Por Orlando Castro (*)

Na carta, dirigida a António Guterres, Emmanuel Nzita, que se apresenta igualmente como “chefe do Governo provisório de Cabinda”, recorda que o povo daquele enclave, actualmente província de Angola limitada a norte pela República do Congo e a sul pela República Democrática do Congo, sem ligação terrestre ao restante território angolano, enfrenta “invasões a propriedades, limitação, de mobilidade e de emprego” e outras alegadas violações dos direitos humanos.

“Armas de última geração contra o povo indefeso, desemprego, uma autêntica prisão a céu aberto sob o olhar silencioso da ONU, União Europeia e União Africana”, lê-se na petição, em forma de carta aberta dirigida este mês pelo líder da Frente de Libertação do Estado de Cabinda – Forças Armadas Cabindesas (FLEC-FAC) ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas.

Aquela organização luta há cerca de 50 anos pela independência de Cabinda, contestando sempre o que apelida de “invasão militar angolana após o acordo de Alvor”, assinado em 1975, e considerando que “as autoridades políticas portuguesas, sem qualquer consulta aos cabindas, os entregaram aos angolanos”.

A FLEC-FAC recorda que a 1 de Fevereiro de 1885 foi assinado o Tratado de Simulambuco, que tornou aquele enclave num “protectorado português”, o que está na base da luta pela independência do território.

“Os sucessivos governos de Portugal, que aclamam e saúdam a independência das ex-colónias do ultramar português na Assembleia da República, ao invés da Constituição, fazem ouvidos moucos e olhos cegos ao lento genocídio do povo de Cabinda, hipotecado por causa da sua história e do petróleo, o garante de subsistência às elites de Angola e de Portugal reformadas”, acusa, na mesma carta, Emmanuel Nzita.

Para o líder da FLEC-FAC, que por várias vezes recorda o exemplo da pressão feita à volta da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia, o estatuto actual de Cabinda é claro: “somos os últimos órfãos da colonização do ultramar português.”

Com menos de um milhão de habitantes, Cabinda garante a produção, no “onshore” e “offshore”, de grande parte dos atuais 1,6 milhões de barris de petróleo produzidos por Angola diariamente.

No apelo à intervenção do secretário-geral da ONU, o líder daquela organização denuncia o “forte aparelho repressivo, com detenções, torturas, mortes de activistas e militares cabindenses, supostamente acusados de actividades nacionalistas contra o ocupante”.

Sublinha que Portugal “tem um papel a desempenhar” neste processo, nomeadamente “reparar o erro cometido contra o povo de Cabinda, que bem conhece a sua história e reúne em si as condições subjectivas e objectivas para definir por si o seu destino”.

“Só a ONU pode pressionar Portugal, tal como o fez no passado recente, no caso de Timor-Leste, ocupado pela Indonésia desde a independência em 1975. Portugal tem a responsabilidade directa da existência de Cabinda, como a sua última colónia em África”, lê-se.

Para Emmanuel Nzita, que lidera a FLEC-FAC no exílio, na Europa, “será uma vergonha acrescida”, se o actual secretário-geral das Nações Unidas, “português e digno defensor dos direitos humanos”, vier a “posicionar-se ao lado do opressor e da injustiça”.

Sublinhando o apelo para que, no decurso deste mandato de António Guterres, a ONU “aprove resoluções e possa responsabilizar Portugal e outros implicados” na “dívida histórica para com o povo de Cabinda”, Nzita garante: “O povo de Cabinda tem condições reunidas para, o mais breve possível, implantar na África central um novo estado, que se chamará: República Cabindense.”

Portugal? Cabinda? Treta

Ingenuamente os cabindas continuam a pensar que Portugal poderá fazer alguma coisa para repor a verdade e, sobretudo, a dignidade deste Povo.

Dizem-nos que os cabindas tinham alguma (embora pouca) esperança no que o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, poderia fazer em relação às reivindicações do Povo de Cabinda. O melhor é não ter a mínima esperança. O mesmo se aplica a António Guterres.

Vamos por partes. Só por manifesta falta de seriedade intelectual e cobardia, típica dos sucessivos governos portugueses (António Guterres foi primeiro-ministro de 28 de Outubro de 1995 a 6 de Abril de 2002) e respectivos presidentes da República, é que Portugal pode dizer (mesmo que pense o contrário) que Cabinda é parte integrante de Angola.

Cabinda – repita-se – foi comprada pelo MPLA nos saldos lançados pelos então donos do poder em Portugal, de que são exemplos, entre outros, Melo Antunes, Rosa Coutinho, Costa Gomes, Mário Soares, Almeida Santos.

É claro que, tal como em Timor-Leste, até à vitória final, continuará a indiferença (em grande parte comprada com o petróleo de… Cabinda), seja de Portugal, da CPLP, da ONU ou de qualquer outra coisa que tenha preço. Desconhecemos que haja alguma que não tenha preço.

E é pena, sobretudo quanto a Portugal, que à luz do Direito Internacional ainda é a potência administrante de Cabinda. Lisboa terá um dia de perceber que Cabinda não é, nunca foi, nunca será uma província de Angola. Tal como, ao contrário do que dizia Salazar, Angola só foi província portuguesa (Portugal, na altura, ia do Minho a Timor) pelo uso da força.

Por manifesta ignorância histórica e política, bem como por subordinação aos interesses económicos do regime do MPLA, os governantes portugueses fingem, ao contrário do que dizem pensar do Kosovo, que Cabinda sempre foi parte integrante de Angola. Mas se estudarem alguma coisa sobre o assunto, verão que nunca foi assim, mau grado o branqueamento dado à situação pelos subscritores portugueses do Acordo de Alvor.

Tese de Adriano Moreira

Vejamos o que sobre o assunto pensa Adriano Moreira, impoluto cidadão português, referência incontornável de credibilidade intelectual:

“Nesta questão da globalização, em que circulam expressões como Estado-continente para designar os de maior extensão territorial e Estado-baleia para referir os das populações desmedidas, acrescendo o fenómeno dos grandes espaços que agregam várias soberanias cooperativas, as atenções desviam-se facilmente das pequenas identidades políticas, cuja autonomia de Governo não foi consagrada pela História, e olham com displicência para as que lhes parecem uma arqueologia de resíduos.

Casos como os do Mónaco, São Marino, Andorra, parecem amparados por um sobrevivente respeito dos ocidentais pela História, mas a dissolução da Jugoslávia, a desagregação da URSS, a complexidade do Médio Oriente, destinos como o do Tibete, encontram difícil amparo em escalas de valores participadas.

Nesta data, Cabinda é um território cuja situação tem de ser avaliada tendo em vista este conjunto de variáveis: um pequeno território com uma população de dimensão correspondente; multiplicação de soberanias interessadas no seu estatuto efectivo, num quadro internacional incerto, com todas as sedes de legitimidade em crise, bastando lembrar os efeitos que a segunda guerra do Iraque teve na consistência das solidariedades no Conselho de Segurança, na NATO, e na própria União Europeia.

Em primeiro lugar, acontece que o respeito pela identidade e vontade de ocupar um lugar igual na comunidade internacional não depende nem da dimensão territorial nem da expressão numérica da população: é um direito dos povos, que não foi limitado pela regra indicativa da ONU, no sentido de as fronteiras da independência serem as que tinham sido traçadas pela soberania colonizadora.

No caso de Cabinda, o ordenamento constitucional português, que durou até 1976, nunca impediu a afirmação reiterada da identidade específica de Cabinda, nem a especificidade do título que uniu Cabinda à coroa de Portugal, o anualmente e solenemente festejado Tratado de Simulambuco, em relação também, com expressão única, com o facto de os bustos dos reis portugueses em exercício por vezes assinalarem as sepulturas dos líderes políticos locais que faleciam.

A decisão de cada povo, com sentimento de identidade, convergir para espaços políticos mais vastos, optando por limitações de soberania, por grupos de soberanias cooperativas ou por autonomias regionalizadas, faz parte da liberdade com que organiza a preservação da sua identidade, não pode ser uma imposição exógena, que contrarie os princípios e valores a que a Carta da ONU vinculou a defesa da paz e da dignidade dos povos e dos homens.

É finalmente certo que o petróleo, como as antigas especiarias, tende para fazer esquecer as limitações que estavam implícitas na resposta do anónimo marinheiro de Vasco da Gama, e que Cabinda enfrenta o risco de ser absorvida pela percepção actual da África útil.

A resposta firme tem de adoptar a advertência do PNUD (2004): «São necessárias políticas multiculturais que reconheçam diferenças, defendam a diversidade e promovam liberdades culturais, para que todas as pessoas possam optar por falar a sua língua, praticar a sua religião e participar na formação da sua cultura, para que todas as pessoas possam optar por ser quem são.

Os cabindas não exigem mais, e não se lhes pode pedir que exijam menos: “Optar por ser quem são”.»

As “verdades” absolutas do regime

O Povo de Cabinda, embora habituado a comunicados enviesados do Governo angolano sobre Cabinda, continua a ter dificuldades em compreender e digerir o que o regime entende como verdades absolutas.

Verdades absolutas que lembram aquelas do Império romano que, aliás, tinha homens sérios na sua direcção. Diz o provérbio latino que quem se cala (parece) que consente, e é por isso que a sociedade civil de Cabinda acha pertinente ir dizendo de sua justiça, diante de tantos quiproquós gerados e difundidos pelo regime.

Ouvindo a verdade absoluta do regime, fica-se com a impressão que o nacionalismo cabinda, com as suas lídimas aspirações à autodeterminação, surge nos fins dos anos noventa. Essa é a estratégia oficial que, ao subverter a realidade, tenta passar a ideia de que os cabindas são terroristas e subversivos, justificando por isso prisões, raptos e assassinatos.

A “paz” que o regime impõe em Cabinda é ter as povoações cercadas de militares, é impedir que os cabindas vão livremente às lavras e à caça, é conviverem, sem direito à indignação, com a discriminação e permanentemente sob a mira de uma polícia com carta-branca para tudo, de uma Polícia de Investigação Criminal que primeiro prende e, posteriormente, investiga.

O regime do MPLA, o único que os angolanos conhecem desde 1975, até quer impor em Cabinda um deus, uma igreja e um pastor à força da baioneta.

Reconciliação para os cabindas é, segundo o regime de Eduardo dos Santos, desaparecer como Povo e ajoelhar-se diante um poder sempre predisposto a humilhar e a descaracterizá-lo. Desenvolvimento para Cabinda é ter a mão estendida aos dois Congos para o frango, o feijão, o cimento e para a dor de dentes.

Existe guerra em Cabinda

Em Cabinda vive-se uma guerra, desmentindo todos os que em Luanda dizem o contrário. Como se isso não bastasse, o regime confunde deliberadamente diálogo com monólogo. Tem sido sempre esta permanente sobranceria do Governo angolano, quando dialoga, monologando com o Povo de Cabinda, ao impor à FLEC as suas soluções unilaterais, amordaçando a Sociedade Civil, ao reduzir o seu espaço e calar a sua voz. Numa palavra; o cabinda não tem direito à cidadania.

As gerações sucedem-se, mas mantém-se indelével o sentimento profundo de um Povo, que uma acção política tendente simplesmente a cercear tudo o que cheira a cabinda: História (datas e momentos marcantes) e Cultura (nomes, língua e espaço vital) não logrou aniquilar. A política da palmatória não desenvolveu, até agora, no cabinda a Síndrome de Estocolmo, pelo contrário, enrijeceu a sua determinação em salvaguardar a sua especificidade.

Nenhuma solução será encontrada para Cabinda se o Governo e o MPLA (são uma e a mesma coisa), porque nem todo o Povo angolano pensa assim, continuarem a sofrer da psicose da ponte sobre-o rio Zaire. Esta unir-se-á com a RDC e não com Cabinda, se o cabinda não for poder em Cabinda.

É um contra-senso que alguém que tenha lutado contra o colonialismo teime, agora, que um outro povo não viva a sua liberdade plena (mestre do seu destino colectivamente consentido e das suas riquezas) e que todos os dias lhe recordam que não é livre.

A FLEC e todos os seus líderes estiveram sempre abertos ao diálogo e a Sociedade Civil um facilitador, todavia, do lado do Governo meramente um fazer-de-contas com um monólogo insistente e ensurdecedor.

No que a Cabinda respeita, Portugal não se lembra dos compromissos que assinou ontem e, por isso, muito menos se recordará dos assinados há mais de um século. E, tanto quanto parece, mesmo os assinados ontem já estarão hoje fora de validade.

Portugal não só violou o Tratado de Simulambuco de 1 de Fevereiro 1885 como, pelos Acordos de Alvor, ultrajou o povo de Cabinda, sendo por isso responsável, pelo menos moral (se é que isso tem algum significado), por tudo quanto se passa no território, seu protectorado, ocupado por Angola.

(*) Com Lusa

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