De vez em quando (tudo depende das ordens superiores) o Conselho Directivo de uma “coisa” que se chama ERCA resolve dizer, não de sua justiça mas de justiça encomendada, umas palavras que mais não são do que uma prova de vida que justifique o tacho.
Por Orlando Castro
“N este mês de Outubro em que os órgãos da Comunicação Social Públicos, nomeadamente a Rádio Nacional de Angola, a Televisão Pública de Angola e a Agência Angola Press (ANGOP) celebram aniversário, a Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (ERCA) aproveita a ocasião para fazer uma apreciação ao Estado da Comunicação Social no país”, afirma a entidade com sentido de oportunidade já que, amanhã, será a vez de o Presidente da República analisar o estado da Nação.
“Assim, no quadro da sua função essencial de assegurar a objectividade e a isenção da informação e a salvaguarda da liberdade de expressão e de pensamento na Comunicação Social, a ERCA destaca os passos dados pelos órgãos públicos no sentido do exercício de um jornalismo abrangente e criativo, elemento que tem merecido o devido reconhecimento de observadores nacionais e estrangeiros”, escreve a rapaziada, ou, melhor, quem manda nela.
O panegírico dos órgãos públicos é uma obrigatoriedade pelo que, para além de propaganda, nada mais tem de válido. É isso que determinam as ordens superiores do MPLA e os diplomas de bajulação obtidos nas aulas de Educação Patriótica do… MPLA.
Diz a ERCA: “Assiste-se, ainda, a uma postura pouco profissional de alguns órgãos, que preferem enveredar pelo sensacionalismo primário, pela não verificação das fontes de informação e uso do contraditório, recorrendo a expedientes susceptíveis de configurar actos de difamação e calúnia, o que é contrário às boas práticas no exercício do jornalismo”.
Esta rapaziada que manda na ERCA sabe do que fala. Longos anos de experiência a praticar o que agora condenam dão-lhes, é claro, autoridade delegada para ambicionarem ir mais além de Chefe de Posto, tanto mais que sabem que num Estado de Direito Democrático não passariam de sipaios. Olham-se ao espelho e vêem o que chamam de “postura pouco profissional de alguns órgãos”.
A imoral moralidade dos analfabetos
Em Junho, esta mesma “coisa” assinalou “com preocupação, a publicação, pelo jornal “Folha 8”, em edições “on line”, de fotomontagens que atentam contra os direitos de personalidade de dignitários do Estado angolano, como o Chefe de Estado, os antigos presidentes da República e outras entidades públicas, expondo-os a situações lesivas à moral e aos bons costumes”.
A ERCA referiu que “estas práticas não se compaginam com o princípio segundo o qual os conteúdos difundidos pelos Meios de Comunicação Social devem pautar-se por critérios rigorosos que correspondam à ética e à deontologia profissionais”.
Vejamos se nos entendemos. Não é fácil mas é possível. Assim, não a ERCA mas alguns dos seus elementos, entendam que estamos no tempo de partido único mas não de único partido. E nada como começar por citar Paul Ricoeur: “Aquilo que se pensa ser bom é a ética. Aquilo que se impõe como obrigatório é a moral”.
O Folha 8 existe porque é preciso dar, continuar a dar, voz a quem a não tem. E em Angola são muitos milhões. A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com os 20 milhões de angolanos pobres e injustiçados.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de Angola ser um dos países mais corruptos do mundo.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de Angola ser um dos países com mais mortalidade infantil.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de milhões de angolanos serem gerados com fome, nascerem com fome e morrerem pouco depois com fome.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com um país que, além de ter o mesmo partido a governar desde que se tornou independente, continua a privilegiar os poucos que têm milhões, esquecendo os muitos milhões que têm pouco… ou nada.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com um regime que, por ter maioria parlamentar, aprova leis sem respaldo das demais forças legislativas e da maioria da classe jornalística, banaliza a sua função e viola a própria Constituição, ao chamar a si, competências das associações profissionais dos jornalistas, como atesta o art.º 49.º (Liberdade de associação profissional e empresarial).
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de o Parlamento (do MPLA) impor leis da comunicação social e do Estatuto dos jornalistas, contra a vontade destes, assumindo o ónus de um comprometimento ignóbil, de assassínio das liberdades, de imprensa, de informação e de expressão.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de a ERCA (cópia da ERC portuguesa) esquecer o Artigo 44º da Constituição onde (deixem-no ser ingénuos) “É garantida a liberdade de imprensa, não podendo esta ser sujeita a qualquer censura prévia, nomeadamente de natureza política, ideológica ou artística”, onde “o Estado assegura o pluralismo de expressão e garante a diferença de propriedade e a diversidade editorial dos meios de comunicação; assegura a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão”.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos que a ERCA não compreenda que quando a liberdade está em jogo, toda a liberdade; de expressão, de Imprensa, de igualdade, entre outras, os jornalistas que ainda não têm a cabeça na guilhotina e pensam pela própria cabeça devem resistir à tentação da cobardia do silêncio.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos em, pondo o poder das ideias acima das ideias de poder, ter forças para lutar pela liberdade de imprensa, enquanto direito fundamental. Essa luta é, aliás, a melhor forma de continuarmos a ser jornalistas.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos o facto de, por exemplo, o secretário de Estado da Comunicação Social, Celso Malavoloneke, dizer que o Governo quer um jornalismo mais sério, baseado no patriotismo, na ética e na deontológica profissional o que, aliás, é uma tese adaptada do tempo de partido único.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de só a própria existência de um ministério da Comunicação Social ser reveladora da enormíssima distância a que estamos das democracias e dos Estados de Direito.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com a tentativa de o secretário de Estado, ou do ministro, ou do próprio Titular do Poder Executivo nos vir dar lições do que é um “jornalismo mais sério, baseado no patriotismo, na ética e na deontológica profissional”.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Mas afinal, para além dos leitores, ouvintes e telespectadores, bem como dos eventuais órgãos da classe, quem é que define o que é “jornalismo sério”, quem é que avalia o “patriotismo” dos jornalistas, ou a sua ética e deontologia? Ou, com outros protagonistas e roupagens diferentes, estamos a voltar (se é que já de lá saímos) ao tempo em que patriotismo, ética e deontologia eram sinónimos exclusivos de MPLA?
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com a afirmação de Celso Malavoloneke de que o Ministério da Comunicação Social vai prestar uma atenção especial na formação e qualificação dos jornalistas, para que estes estejam aptos para corresponder às expectativas do Governo.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de esta mesma ERCA nada dizer quando um membro do Governo quer qualificar os jornalistas para que eles, atente-se, “estejam aptos para corresponder às expectativas do Governo”. Ou seja, serão formatados para serem não jornalistas mas meros propagandistas ao serviço do Governo, não defraudando as encomendas e as “ordens superiores” que devem veicular.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com o facto de João Lourenço ter dito o mesmo que Celso Malavoloneke.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Nós preocupamo-nos com as pessoas a quem devemos prestar contas: os leitores. Se calhar não seremos tão patrióticos como o Governo deseja, como alguns membros da ERCA querem que sejamos. Para nós, se o Jornalista não procura saber o que se passa é um imbecil. Se sabe o que se passa e se cala é um criminoso. Daí a nossa oposição total aos imbecis e criminosos.
A ERCA preocupa-se com as fotomontagens. Sejamos optimistas. Alguns membros da ERCA sabem que a caricatura, o cartoon, a fotomontagem são meios comumente usados no jornalismo como forma de opinião, crítica e informação, nada tendo a ver com uma deliberada intenção de expor os visados a “situações lesivas à moral e aos bons costumes”, e muito menos atentar “contra os direitos de personalidade de dignitários do Estado angolano, como o Chefe de Estado, os antigos presidentes da República e outras entidades públicas”.
Pessoas Politicamente Expostas
Acresce que os visadas são Pessoas Politicamente Expostas, definição que em qualquer Estado de Direito inclui, entre outros (no caso português, por exemplo), Chefes de Estado, chefes de Governo e membros do Governo, designadamente ministros, secretários e subsecretários de Estado ou equiparados; Deputados; Juízes do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas, e membros de supremos tribunais, tribunais constitucionais e de outros órgãos judiciais de alto nível de outros estados e de organizações internacionais; Representantes da República e membros dos órgãos de governo próprio de regiões autónomas; Provedor de Justiça, Conselheiros de Estado, e membros da Comissão Nacional da Protecção de Dados, do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Superior do Ministério Público, do Conselho Superior de Defesa Nacional, do Conselho Económico e Social, e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social; Chefes de missões diplomáticas e de postos consulares; Oficiais Generais das Forças Armadas em efectividade de serviço; Presidentes e vereadores com funções executivas de câmaras municipais; Membros de órgãos de administração e fiscalização de bancos centrais, incluindo o Banco Central Europeu; Membros de órgãos de administração e de fiscalização de institutos públicos, fundações públicas, estabelecimentos públicos e entidades administrativas independentes, qualquer que seja o modo da sua designação; Membros de órgãos de administração e de fiscalização de entidades pertencentes ao sector público empresarial, incluindo os sectores empresarial, regional e local; Membros dos órgãos executivos de direcção de partidos políticos de âmbito nacional ou regional; directores, directores-adjuntos e membros do conselho de administração ou pessoas que exercem funções equivalentes numa organização internacional.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à imagem encontram-se protegidos constitucionalmente. A extensão do âmbito de tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada varia em função da natureza do caso e da condição das pessoas (notoriedade, exercício de cargo público, Pessoas Politicamente Expostas, etc.).
A foto de uma pessoa não pode ser exposta sem consentimento dela, não carecendo desse consentimento quando assim o justifique a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
Os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos casos expressamente admitidos pela Constituição, sendo que qualquer intervenção restritiva nesse domínio, mesmo que constitucionalmente autorizada, apenas será legítima se justificada pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro interesse constitucionalmente protegido, devendo respeitar as exigências do princípio da proporcionalidade e não podendo afectar o conteúdo essencial dos direitos.
As Pessoas Politicamente Expostas (PEP) são aquelas pessoas que, segundo a definição do Parlamento Europeu (PE), “podem representar um risco mais elevado de corrupção pelo facto de exercerem ou terem exercido funções públicas importantes”, como chefes de Estado, chefes de governo, ministros, membros dos órgãos de direcção de partidos políticos, juízes de tribunais supremos e deputados, assim como cônjuge, pais, filhos e os cônjuges destes últimos.
É claro que a definição do Parlamento Europeu não se aplica a Angola. Aliás, todo o Direito Internacional só se aplica a Angola no que o regime do MPLA entender que se deve aplicar. E pode mesmo acontecer que se aplique aos partidos da Oposição e não ao partido do Governo.
Dando como válida esta definição do PE, presumimos que João Lourenço seja uma PPE por ser ao mesmo tempo chefe de Estado, chefe de Governo e líder do MPLA.
A lei das PPE é a principal responsável, por exemplo, pelo aparecimento de boa parte dos inquéritos criminais relacionados com titulares de cargos políticos e públicos de Angola. Manuel Vicente, vice-presidente, João Maria de Sousa, procurador-geral, e diversos generais com cargos políticos com Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ e Leopoldino Nascimento ‘Dino’, começaram a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) por suspeitas de branqueamento de capitais devido às comunicações obrigatórias que os bancos do sistema financeiro português são obrigados a fazer para a Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária – e que levam sempre à abertura de um pré-inquérito para averiguar se existem suspeitas fundadas para uma investigação formal no DCIAP.
A directiva europeia original de 2005 foi actualizada em Maio de 2015 com uma directiva do Parlamento Europeu que alarga de forma significativa o âmbito de quem tem acesso às informações relacionadas com as PEP.
Com as novas regras, os países da União Europeia são obrigados a manter um registo central com informações sobre os beneficiários efectivos de sociedades, fundações e outras estruturas, visando identificar as pessoas que estão, na realidade, por detrás dessas entidades.
Nota. Parte deste texto já foi aqui publicado no dia 19 de Junho de 2018, sob o título “Resposta à ERCA”. A repetição justifica-se porque alguns membros da ERCA, nomeadamente o seu Presidente, ainda não entenderam a diferença entre a “gira fã da ERCA” e a “girafa da ERCA”…