O ‘habeas corpus’ interposto a 1 de Abril pela defesa dos 17 activistas angolanos condenados até oito anos e meio de prisão, pedindo a libertação até decisão dos recursos, ainda não chegou ao Tribunal Supremo para ser analisado. Consta que terá ido de bicicleta, depois de 20 dias à espera da requisição respectiva para… circular. Acontece que, para cúmulo, a bicicleta avariou no caminho.
A situação foi confirmada pelo advogado Luís Nascimento, dando conta que as equipas de Defesa concluíram agora que dois meses e meio depois da entrega do recurso, o mesmo ficou “retido” na 14.ª Secção do Tribunal Provincial de Luanda (primeira instância), durante cerca de 20 dias.
“O juiz da causa não entregou o documento, reteve-o, sem ter competência para isso e nem o passou a quem era dirigido [juiz-presidente do Supremo]”, apontou Luís Nascimento.
Só depois dessa data, explicou o mesmo advogado, o processo foi enviado, mas para o Tribunal Constitucional (TC), juntamente com um recurso de inconstitucionalidade do acórdão do mesmo caso, e não para o Tribunal Supremo, a quem compete decidir sobre o ‘habeas corpus’ e cujo juiz-presidente chegou a ordenar à primeira instância o seu envio.
O caso, duramente criticado pela Defesa, recordando a “urgência” de decidir um ‘habeas corpus’ por os activistas já estarem a cumprir pena de prisão sem que os recursos tenham sido analisados, motivará agora uma queixa para aquele mesmo Tribunal e para o Conselho Superior de Magistratura.
É que este recurso de ‘habeas corpus’ por “prisão ilegal” visa usar a “jurisprudência existente” sobre o efeito suspensivo dos recursos – neste caso interpostos para as instâncias superiores – à condenação, para que entretanto seja mantida a situação carcerária de todos, particularmente as duas jovens que estavam em liberdade e os restantes que estavam em prisão domiciliária, a 28 de Março, quando foi conhecida (embora há muito estivesse determinada) a sentença.
A maior parte dos 17 jovens activistas foram detidos a 20 de Junho de 2015 numa operação da Polícia em Luanda e acabaram condenados a penas de prisão efectiva entre dois anos e três meses e oito anos e seis meses, por supostos e nunca provados actos preparatórios para uma rebelião e associação de malfeitores.
Começaram de imediato a cumprir pena, apesar dos recursos interpostos no mesmo dia pela Defesa.
“O juiz da causa remeteu o processo [para o Tribunal Constitucional analisar um recurso de inconstitucionalidade], mas sem referir que a providência de ‘habeas corpus’ estava lá. Isto não podia ter acontecido. O venerando juiz-presidente deixou-se substituir por órgãos incompetentes e portanto é responsável pelo que está a acontecer, em que dois meses e meio depois o ‘habeas corpus’ ainda não está na posse do Tribunal Supremo”, apontou o advogado.
O caso é agravado, insiste Luís Nascimento, porque face ao atraso inicial a Defesa chegou a reclamar directamente ao juiz-presidente do Tribunal Supremo, em Abril, pelo facto de o ‘habeas corpus’ ter ficado retido na primeira instância.
“Isto é gravíssimo, são dois meses e meio em que os arguidos, que defendemos que merecem a liberdade, estão detidos porque um órgão de responsabilidade está a violar a lei. Isto tudo só poder ser intencional, com os autos do processo a esconderem lá no meio uma providência de ‘habeas corpus’ para ser decidida”, enfatizou.
O engenheiro Luaty Beirão foi condenado neste processo a uma pena total de cinco anos e meio de cadeia, enquanto o professor universitário Domingos da Cruz, autor do livro que o grupo utilizava nas suas reuniões semanais para discutir política, viu o tribunal aplicar-lhe uma condenação de oito anos e meio, por também ser o suposto líder da não menos suposta “associação de malfeitores”.
Na última sessão do julgamento, o Ministério Público do regime deixou cair a acusação de actos preparatórios para um atentado ao Presidente e outros governantes, apresentando uma nova, de associação de malfeitores, sobre a qual os activistas não chegaram a apresentar defesa, um dos argumentos dos recursos.
Os activistas garantiram em tribunal que defendiam acções pacíficas e que faziam uso dos direitos constitucionais de reunião e de associação.
Uma anedota em vários actos
A Defesa agiu no pressuposto, obviamente desfasado da realidade, de que em matéria judicial (como em muitas outras) Angola é um o que não é, um Estado de Direito.
Recorde-se que na última sessão da farsa mascarada de julgamento, o Ministério Público apresentou a delirante tese de “associação de malfeitores”, sobre a qual – como sabia – os activistas não chegaram a apresentar defesa.
O Tribunal deu como provado (de acordo com as ordens superiores e já incluídas na sentença mesmo antes do julgamento começar) que os acusados formaram uma associação de malfeitores, pelas reuniões que realizaram em Luanda entre Maio e Junho de 2015 (quando foram detidos). Num “plano” desenvolvido em co-autoria, pretendiam – disse o tribunal – destituir os órgãos de soberania legitimamente eleitos, através de acções de “Raiva, Revolta e Revolução”, colocando no poder elementos da sua “conveniência” e que integravam a lista para um “governo de salvação nacional”.
É caso para dizer que estes 17 jovens tinham um poder nunca visto.
Os activistas garantiram em tribunal que defendiam acções pacíficas e que nestes encontros discutiam política e liam um livro de Domingos da Cruz, fazendo uso dos direitos constitucionais de reunião e de associação.
É claro que, mais uma vez, os jovens confundiram a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obras ao julgarem que também eles viviam numa democracia e num Estado de Direito.
A propósito deste caso, o Presidente da República e do MPLA, também chefe do Governo, afirmou que “não se deve permitir” que o povo “seja submetido a mais uma situação dramática como a que viveu em 27 de Maio de 1977″, aludindo à morte de milhares de pessoas numa suposta tentativa de golpe de Estado protagonizada por elementos do próprio MPLA.
“Quem quer alcançar o cargo de Presidente da República e formar Governo, que crie, se não tiver, o seu partido político, nos termos da Constituição e da Lei, e se candidate às eleições. Quem escolhe a via da força para tomar o poder ou usa meios para tal anti-constitucionais não é democrata. É tirano ou ditador”, acusou José Eduardo dos Santos que, por sinal, está no poder desde 1979 sem nunca ter sido nominalmente eleito.
Os advogados sabem à partida qual é o resultado de todos os recursos. Pretendem apenas mostrar, mais uma vez, o grau de independência e de desrespeito pela lei que é praticado pelas instâncias judiciais do país.
É evidente, como todos sabemos, que se os jovens detidos estivessem em liberdade iriam continuar a sua actividade criminosa. Por alguma razão o despacho da ala radical do MPLA, eufemisticamente apelidada de Ministério Público, afirma que os activistas foram detidos – nem mais, nem menos – “em flagrante delito” quando se preparavam para uma actividade criminosa, cuja etílica matéria de facto recolhida pelos peritos revela “actos preparatórios para a prática de rebelião e atentado contra o Presidente da República”.
Abona a favor da decisão o facto de, nesse flagrante delito, ter sido descoberto em poder dos jovens diverso material bélico, altamente letal, a saber: 12 esferográficas BIC (azuis), um lápis de carvão (vermelho), três blocos de papel (brancos) e um livro sobre como derrubar as ditaduras.
Sabe-se, igualmente, que a Polícia Nacional do regime descobriu que os jovens activistas tinham mísseis escondidos nas lapiseiras, Kalashnikovs camufladas nos telemóveis e outro armamento pesado e letal disfarçado nos blocos de apontamentos. São, reconheça-se, provas mais do que suficientes para provar que estavam a preparar um golpe de Estado.
Os jovens estavam no seu quartel-general numa reunião dos seus estrategas militares que planeavam o golpe a partir da leitura do livro “Da ditadura à democracia — Uma estrutura conceptual para a libertação”, do norte-americano Gene Sharp.
No quintal, debaixo de uma mangueira, o exército mobilizado por esses jovens (talvez uns milhões de guerrilheiros – o Ministério Público do regime foi omisso nesta contagem) afinava os códigos para lançamento dos mísseis e, talvez, até de ogivas nucleares contra a residência de Eduardo dos Santos…
Perante este manancial de provas, o Ministério Público do regime provou que os jovens activistas estavam envolvidos numa conspiração para a “destituição do Presidente da República e de outros órgãos de soberania”, plano que estava a ser congeminado há muito, muito tempo. Cerca de três meses.
Recorde-se que os procuradores do regime entendem, baseados nos dados recolhidos, que as sessões de formação realizadas na livraria Kiazele, na Vila Alice, em Luanda, visavam “mobilizar as massas populares ideais para desacreditar a governação do executivo angolano”. Coisa inexequível dada a credibilidade de que goza, há 40 anos, o regime, e há 36 anos o Presidente Eduardo dos Santos.