A Primavera anda por cá

A investigadora Rebecca Engebretsen, da Universidade de Oxford, considera que se a classe média em Angola continuar a perder poder de compra isso pode desencadear perturbações sociais e políticas como aconteceu em vários países na Primavera Árabe.

“U m decréscimo no poder de compra do grupo que detém o poder em Luanda pode desencadear perturbações sociais e políticas, como aconteceu noutros países durante a Primavera Árabe”, escreveu a investigadora Rebecca Engebretsen numa análise publicada na AllAfrica Global Media.

Para esta doutoranda em Oxford, o Governo angolano (do MPLA, no poder desde 1975), assim com a classe dirigente, “no ambiente de preços baixos, enfrenta um dilema delicado”, que consiste em apostar na diversificação económica a sério, mas isso implica que a classe média e a elite dirigente perca os benefícios da oligarquia que foi criando.

“Por um lado, os decisores políticos estão cientes que defender o valor da moeda é cada vez mais oneroso, e a sua capacidade para o fazerem está a diminuir porque as reservas externas continuam a ser usadas”, escreve Rebecca Engebretsen, acrescentando que, “ao mesmo tempo, estão também cientes que a desvalorização pode ser boa para promover outras partes da economia que há muito sofrem de falta de competitividade”.

Aumentar a atractividade dos sectores não petrolíferos “é crucial se Angola quiser acabar com os ciclos de crescimento-empobrecimento” que surgem da exposição excessiva à variação dos preços do petróleo.

Aumentar a diversificação económica tem, no entanto, desvantagens: “Por outro lado, aumentar a competição pode colocar em perigo os interesses da classe dirigente que pode poder as suas posições oligárquicas, até porque se as importações se tornarem mais caras, a classe média cada vez maior de Angola pode ter dificuldade de acesso aos bens internacionais que se habituou a ter, e os decisores políticos em Luanda está bem cientes que uma diminuição no poder de compra do grupo que detém o poder pode desencadear perturbações sociais e políticas, como aconteceu noutros países durante a Primavera Árabe”.

Para já, as grandes reservas internacionais têm permitido a ‘quadratura do círculo’, estando a ser usadas “pelo Governo para defender o valor do kwanza e apoiar as necessidades de importação em vez de qualquer transformação real da economia”

Só que, conclui Rebecca Engebretsen, “se os preços do petróleo continuarem baixos, é questionável quanto tempo este modelo pode realisticamente ser mantido”.

Na análise, a investigadora lembra que entre 2002 e 2014 Angola recebeu 468 mil milhões de dólares em receitas do petróleo, que vale 95% das exportações e mais de 75% das receitas fiscais.

A queda do preço do petróleo fez descer as receitas fiscais em mais de 50% face ao ano passado e cortou todas as previsões de crescimento da economia para 2016, que não deve passar dos 4%.

Ditadores bons e maus

José Eduardo dos Santos está no poder desde 21 de Setembro de 1979. Uma das suas características genéticas tem a ver com a capacidade de adaptação, interna e externa, para não olhar a meios para atingir os fins. Sobreviveu às mutações internas do MPLA, mesmo recorrendo aos jacarés para eliminar camaradas, e às externas, mantendo-se a flutuar com a queda do Muro de Berlim.

A sua longevidade no poder, resistindo a todo o ripo de primaveras, é digna de registo. José Eduardo dos Santos é, por enquanto, o segundo presidente da República há mais tempo em funções em todo o mundo. Apenas por um mês perde o primeiro lugar para o seu amigo Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, da Guiné Equatorial. Nunca foi nominalmente eleito, e é nisso que reside um dos seus múltiplos segredos. Como reconhece, aceitou uma “democracia que foi imposta”, sabe que um dia passará de bestial a besta mas não está preocupado. Os paraísos fiscais não falam quando são alimentados pelo dinheiro do petróleo e dos diamantes.

José Eduardo dos Santos chegou à Presidência da então República Popular de Angola quando tinha 37 anos, sucedendo a Agostinho Neto, assassinado em Moscovo por complicações, diz-se, após uma cirurgia a um cancro hepático.

Passando oficialmente, até talvez com alguma glorificação, ao lado dos massacres (30 mil, 80 mil mortos?) do 27 de Maio de 1977, ultrapassou pela esquerda, pela direita, por cima e por baixo os potenciais candidatos à sucessão de Agostinho Neto, casos de Lúcio Lara, Ambrósio Lukoki e Pascoal Luvualu. E conseguiu tal feito porque os que mandavam no MPLA acreditaram que ele seria um mero sipaio. Enganaram-se. Ele evoluiu de sipaio para chefe do posto e foi por aí fora.

“Durante os primeiros anos fingi-me de morto. Deixei que me vissem como um fiel herdeiro do falecido Presidente e, ao mesmo tempo, fui libertando sem alarde os fraccionistas que haviam sobrevivido aos fuzilamentos e aos campos de concentração. Nomeei alguns para importantes cargos governamentais. Nunca mais criaram problemas”, escreve José Eduardo Agualusa no conto “O bom déspota”.

É claro que Eduardo dos Santos tem uma visão deferente sobre o tempo que leva no poder: “Eu acho que é muito tempo, até demasiado, mas também temos que ver as razões de natureza conjuntural que nos levaram a esta situação”, disse à Bandeirantes do Brasil, acrescentando que, “depois da independência, acho que foram trinta e tal anos de guerra, em que o país ficou adiado, portanto não pôde consolidar essas instituições do Estado, nem sequer pôde tornar regular o funcionamento do processo de democratização, por isso muitas vezes as eleições tiveram que ser adiadas”.

O que para o presidente foram “trinta e tal anos” foram de facto, 27. Ou seja, de 1975 e 2002. Forte, forte ele é só nas contas que envolvem o dinheiro sacado ao erário público. Nessas ele não se engana.

“A queda do Muro de Berlim aconteceu no momento certo. Por um lado, permitiu-me afastar um ou outro marxista fanático, trôpegas múmias ideológicas, perdidas no tempo, que não se deixavam comprar, nem com cargos nem com bens de consumo. Por outro, permitiu-me abrir o país às delícias do capitalismo, para benefício de toda a nossa grande família e do país em geral. A abertura ao capitalismo foi também a grande machadada na guerrilha, até essa altura apoiada pelos Estados Unidos e pela direita internacional. Se nós nos juntávamos ao capitalismo, porque haveria o capitalismo de nos combater?”, interroga José Eduardo Agualusa no referido conto.

Pois é. Foi isso mesmo. Como líder do MPLA, do governo e da República, Eduardo dos Santos, enterrou Lenine, o comunismo e rendeu-se ao capitalismo, aceitando mesmo que figurativamente se desse ao país uns laivos de democracia e de multipartidarismo.

Eduardo dos Santos, engenheiro de petróleo formado pelo Instituto de Petróleo e Química de Baku, na então União Soviética, engavetou o socialismo em parte incerta e, em entrevista ao Expresso, em 18 de Julho de 1992, disse: “Penso que o socialismo estava condenado ao fracasso. Mas não era essa a conclusão a que se tinha chegado naquela altura, em que se pensava que o socialismo era uma alternativa ao capitalismo”.

“O sistema de gestão da economia socialista não era capaz de dar resposta aos numerosos problemas com que se defrontava a sociedade. O afundamento do sistema socialista não foi uma grande surpresa para nós e não nos afectou profundamente. Nós já nos havíamos engajado em todo um processo de reajustamento do nosso sistema,” afirmou Eduardo dos Santos em Abril de 1992 ao Le Courrier.

Nessa enorme capacidade de assassinar os camaras de ontem e comprar os de hoje, Eduardo dos Santos fez com que o MPLA, no III Congresso extraordinário de 1992, deixasse de ser “Partido do Trabalho”, a República deixasse se ser “Popular” e até a Assembleia do Povo passa a ser Assembleia Nacional.

Sem o fantasma de Jonas Savimbi no activo, o país cresceu, cresceu. Entre 2004 e 2008 a economia registou um crescimento médio de 17% ao ano; a crise financeira internacional provocou uma sensível desaceleração entre 2009 e 2011, com valores entre 2,4% e 3,4%; mas o índice subiu em 2012 para perto dos 7%.

Mfonobong Nsehe, articulista da Forbes, diz que ”para cumprir os seus novos desígnios, José Eduardo dos Santos passou a conduzir o governo como se fosse a sua empresa de investimentos privada”. E fá-lo “canalizando as suas energias para intimidar os média e desviar fundos para a sua conta pessoal e da sua família”.

Família em que surge como rainha a filha Isabel que, por sinal, no início do de 2013 se tornou a primeira bilionária africana. As acções de empresas cotadas em Portugal juntamente com activos em Angola, “elevaram o valor líquido [da fortuna de Isabel dos Santos] acima da fasquia de mil milhões de dólares, fazendo da empresária de 40 anos a primeira mulher bilionária africana”.

Acrescenta a Forbes que os negócios de Isabel dos Santos são uma forma de “extrair dinheiro do seu país, enquanto se mantém à distância, de maneira formal. Garante igualmente que se o pai for derrubado pode reclamar os seus bens, através da sua filha. Se morrer enquanto está no poder, ela mantém o saque na família.”

O segundo filho, por ordem de idade, é José Filomeno dos Santos, “Zenú”, nascido da ligação com Maria Luísa Perdigão Abrantes, a segunda mulher de José Eduardo dos Santos. Zenú, apontado como sucessor nesta dinastia, foi nomeado para gerir o Fundo Soberano de Angola, dotado de 5.000 milhões de dólares.

Coréon Dú, outro filho, chegou a usar, em 2006, o endereço do Palácio Presidencial como residência privada para criar a Semba Comunicação, empresa(?) que recebe mais de 40 milhões de dólares do orçamento da Presidência para a gestão da TPA 2 e outras supostas acções de melhoria da imagem presidencial.

Rafael Marques diz que, para além da família, “o círculo dos mais endinheirados empresários angolanos é fechado por pessoas muito próximas a José Eduardo dos Santos de entre as quais avultam os generais Kopelipa, Dino Fragoso e Manuel Vicente, o vice-presidente.

Também nesta matéria Eduardo dos Santos tem uma explicação para, é claro, justificar e legitimar uma elite de ricos empresários, tal como o fez no discurso do Estado da Nação, em 16 de Outubro de 2013: “A acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade”.

E se, segundo Eduardo dos Santos, empresas americanas, inglesas e francesas do sector dos petróleos, bem como as empresas e bancos comerciais com interesses portugueses “levam de Angola todos os anos dezenas de biliões de dólares, por que é que eles podem ter empresas privadas dessa dimensão e os angolanos não?”

“Nós precisamos de empresas, empresários e grupos económicos nacionais fortes e eficientes no sector público e privado e de elites capazes em todos os domínios, para sairmos progressivamente da situação de país subdesenvolvido”, explica o “querido líder”.

Pois é. E o resto, o subdesenvolvimento do país? Recordam-se, por exemplo, do relatório Africa Progress Report 2013, elaborado por um grupo de personalidades coordenada por Kofi Annan e do qual fez parte Graça Machel? Neles e dizia: “Enquanto a elite angolana usa o rendimento do petróleo para comprar activos no estrangeiro, em Angola as crianças passam fome”. A taxa de mortalidade infantil, até aos cinco anos, de Angola está no topo da lista: é a oitava maior do mundo, com 161 mortes em 1000 crianças por ano, o que representa 116 mil mortes todos os anos. A subnutrição explica um terço destes óbitos de crianças.

“Em nome do desenvolvimento económico, sob a égide do capitalismo, encontram-se justificações para a prática da corrupção, a falta de transparência nas contas do Estado e a falta de reconhecimento dos direitos de propriedade. A moral e a ética não fazem parte da cultura da ‘burguesia angolana emergente’, o que ‘legitima’ a coarctação da democracia em defesa do status quo da elite reinante”, afirma o economista José Dias Amaral.

“José Eduardo dos Santos está há tanto tempo no cargo que passou a governar o país como um autêntico monarca”, acusa por sua vez o cientista político Nelson Pestana, da Universidade Católica de Angola, e dirigente do Bloco Democrático.

Pânico primaveril/Redes Sociais

A Primavera árabe espalhou, continua espalhar, o pavor no círculo presidencial, ainda atormentado subconscientemente pelo fantasma de Jonas Savimbi.

“Nas chamadas redes sociais, que são organizadas via Internet, e nalguns outros meios de comunicação social fala-se de revolução, mas não se fala de alternância democrática. Para essa gente, revolução quer dizer juntar pessoas e fazer manifestações, mesmo as não autorizadas, para insultar, denegrir, provocar distúrbios e confusão, com o propósito de obrigar a polícia a agir e poderem dizer que não há liberdade de expressão e não há respeito pelos direitos. É esta via de provocação que estão a escolher para tentar derrubar governos eleitos que estão no cumprimento do seu mandato”, disse à nação Eduardo dos Santos já em 2011, versão agora repetida.

Quanto ao seu enriquecimento, Eduardo dos Santos explica: “Na Internet, alguém pôs a circular a notícia de que o Presidente de Angola tem uma fortuna de vinte biliões de dólares no estrangeiro. Se essa pessoa fosse honesta e séria, devia indicar imediatamente ao Departamento de Inteligência Financeira do Banco Nacional de Angola (BNA) os nomes dos bancos e os números das contas em que esse dinheiro está depositado, para que o Tesouro Nacional possa transferir esse montante para as suas contas”.

Farto de chorar, o Povo ri-se. A Primavera anda por cá…

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