A Lei da Probidade Pública constitui, pelo menos em teoria, o que se poderá considerar um passo importante, eventualmente decisivo, para uma boa governação, tendo em conta o reforço dos mecanismos de combate à cultura da corrupção e a institucionalização dos pilares de uma democracia e de um Estado de Direito.
Por Orlando Castro
M esmo em países que são de facto, e não apenas de jure, democracias, a corrupção é uma enfermidade contagiosa que está na origem do colapso financeiro de muitas sociedades. Na verdade, se os países não matarem a corrupção acabam por ser mortos por ela.
Seja como for, Angola não pode viver com o mal dos outros embora, reconheça-se, possa bem com eles. Não adianta tapar o sol com uma peneira como, por exemplo, faz o Procurador-Geral da República, José Maria de Sousa, quando reconhece que a corrupção em Angola é “preocupante”, mas desculpa-se dizendo que esse é um problema que se vive em todo o mundo.
“Com certeza (que é preocupante), não só em Angola. Mesmo naqueles países que apregoam contra outros, esquecem-se que, internamente, também têm esse problema, que é universal”, referiu em tempos o nosso PGR, acrescentando que “todos os países deverão unir-se para dar um combate cerrado a essas práticas, porque nenhum país conseguirá combater sozinho a criminalidade organizada, até porque, se tivermos a atenção devida, determinadas práticas que se tornaram habituais nos nossos países vieram, de algum modo, dos países desenvolvidos”.
“A corrupção não nasceu dos nativos, porque tínhamos uma forma primitiva de fazer comércio, de fazer trocas, que não permitia sequer a corrupção. A corrupção vem de fora, e agora vamos ter de encontrar forma de a combater e combater com aqueles que melhor conhecem o fenómeno”, sustenta José Maria de Sousa.
Esquecendo, ou não se lembrando, que só por si as leis não resolvem os problemas, o PGR parece acreditar que o facto de Angola ter assinado a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção é a solução milagrosa para acabar com o problema. Mas não é. Apesar de muitas leis deficientes e inócuas, o que nos faz falta é cumprir rigorosamente as que existem. Se fossem cumpridas, embora não sanassem a questão, certamente que seriam um bom instrumento de combate à corrupção e à lavagem de capitais.
“Temos cumprido com muitas cartas rogatórias, nomeadamente vindas de Portugal, e não só. Recebemos cartas rogatórias em matéria penal de muitos países e cumprimos e temos já instaurado em Angola alguns processos a respeito dessa matéria”, diz José Maria de Sousa.
“Temos de ser persistentes para que África possa estar unida no combate à criminalidade transnacional e internacional”, diz também João Maria de Sousa, saltando a necessidade de o exemplo dever partir de dentro para fora, de cima para baixo.
Recorde-se que a Assembleia Nacional aprovou no dia 5 de Março de 2010, com o devido destaque propagandístico da imprensa do regime e não só, por unanimidade, a Lei da Probidade Administrativa, que visa, visava ou visaria (de acordo com a versão oficial) moralizar a actuação dos agentes públicos do nosso país.
Foi dito na altura (restam dúvidas se hoje a tese é a mesma ou se, por acaso, também foi… corrompida) que o objectivo da lei é conferir à gestão pública uma maior transparência, respeito dos valores da democracia, da moralidade e dos valores éticos, universalmente aceites.
Foi em 2010. Cinco anos depois somam-se os casos de desrespeito pelos valores da democracia, da moralidade e dos valores éticos.
O presidente da República, do MPLA (partido no poder desde 1975) e chefe do Executivo (para além de outros cargos), José Eduardo dos Santos, quando na altura deu posse ao Governo reafirmou a sua aposta na “tolerância zero” aos actos ilícitos na administração pública. Todos os anos o mais alto magistrado da nação reafirma os princípios, todos os anos eles são sistemática e endemicamente violados pela sua gente.
Apesar da unanimidade do Parlamento, dos encómios dos areópagos internacionais, da propaganda interna, o melhor é fazer, continuar a fazer, o que é aconselhável e mais prudente quando chegam notícias sobre a honorabilidade do regime, esperar (sentado) para ver se – com o nosso típico optimismo africano – nos próximos dez anos a “tolerância zero” sai do papel, sai da lei, sai da teoria, em relação aos donos dos aviários e não, como é habitual, relativamente aos pilha-galinhas que são, reconheça-se, bodes expiatórios ideais para mascarar a realidade.
Essa lei “define os deveres e a responsabilidade e obrigações dos servidores públicos na sua actividade quotidiana de forma a assegurar-se a moralidade, a imparcialidade e a honestidade administrativa”. A lei diz tudo. A prática também. Por outras palavras, a lei só se aplica às zungueiras e similares e não, como era pressuposto, aos donos do poder.
Ao contrário do que dizem e mandam dizer os generais do Presidente, também nós gostaríamos de acreditar que a Constituição, que as leis são iguais para todos. Mas não são. Aliás, José Eduardo dos Santos, um político inteligente, sabe que perante as leis existem pelo menos dois tipos de cidadãos. Os de primeira, os que estão acima das leis, e os de segunda que as têm de cumprir. Aliás, muitos destes até são obrigados a cumprir as “leis” do livre arbítrio dos poderosos.
É claro que a maioria dos angolanos não acredita no cumprimento das leis. Têm, contudo, de estar caladinhos e nem pecar em pensamentos. José Eduardo dos Santos sabe disso mas, tanto quanto parece, basta-lhe acreditar que a Lei da Probidade Administrativa fará que Angola suba para aí meio lugar nos últimos lugares do “ranking” que analisa a corrupção.
Prevalecendo o tal nosso optimismo, dir-se-á que, se calhar, para haver probidade seria preciso que o poder judicial fosse independente e que o Presidente da República não fosse o “cabeça de lista” (ou seja o deputado colocado no primeiro lugar da lista), eleito pelo do circulo nacional nas eleições para a Assembleia Nacional, mas sim eleito nominalmente.
Se calhar para haver probidade seria preciso que não fosse o Presidente a escolher o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, os Chefes do Estado Maior dos diversos ramos.
Se calhar para haver probidade seria preciso que Angola fosse de facto – não apenas no articulado legal – um Estado de Direito, coisa que manifestamente (ainda) não é.
O (mau) exemplo português
Paulo Morais, hoje candidato às eleições Presidenciais em Portugal, quando foi vice-presidente da Associação Transparência e Integridade (TIAC), considerou “verdadeiramente vergonhoso” para o Estado português as conclusões do relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre o combate à corrupção transnacional.
Quanto ao desempenho de Portugal, o relatório da OCDE sublinhava que “a aplicação da legislação sobre corrupção transnacional tem sido muito baixa” e que “nem uma única acusação resultou de 15 queixas sobre o suborno de funcionários estrangeiros por parte de empresas portuguesas em países de risco”.
O relatório assinala que Portugal tem ligações importantes com países considerados de alto risco em termos de corrupção, como Angola. Paulo Morais realçou que o relatório constata que “todas as medidas que deviam ser tomadas” por Portugal no combate à corrupção transnacional não o foram efectivamente e que Portugal é “um país que favorece determinadas situações de lavagem de dinheiro, nomeadamente de dinheiro proveniente de economias mais perigosas em termos de corrupção, como é o caso de Angola”.
“Verifica-se também que o estado português não protege devidamente os denunciantes de situações deste género, ou seja, todo o ambiente em Portugal é favorável á corrupção, nomeadamente nas transacções internacionais”, disse Paulo Morais, indicando que situações de “comissionamento, de fraude e de corrupção” são “aparentemente ignorados pelo Estado português e não são combatidas”.
Segundo o então vice-presidente da TIAC, os únicos aspectos positivos identificados pelo relatório são o facto de hoje, em Portugal, existir “alguma capacidade de acesso a informação bancária” e com a “não supressão de meios” atribuídos às autoridades judiciárias para realizarem a investigação, apesar do momento de crise económica.
“Tudo o resto é muito negativo” para Portugal, enfatizou Paulo Morais, que considerou que relativamente a determinadas economias, como a angolana, Portugal devia seguir o exemplo de países nórdicos que tentam ajudar a actividades das suas empresas em Angola no sentido de “acabar com os mecanismos da corrupção, comissionamento e troca de favores”. Pelo contrário – vincou – as “autoridades portuguesas parecem querer de alguma maneira benzer ou sancionar todo o esquema de comissionamento, que é hoje o grande problema nos negócios com Angola”. Trata-se de comissionamento “não oficial, subterrâneo e secreto”, destinado a pagar aqueles que “em Angola facilitam os negócios a empresas portuguesas”.
Paulo Morais alertou que isso acontece porque, em Portugal, “as empresas têm ainda hoje a capacidade de terem na sua contabilidade um conjunto de despesas confidenciais”, que se destinam, em larga medida, para pagar comissões e subornos nesses países, por forma a “olear a máquina dos negócios com a corrupção”. Quanto a Portugal, o relatório da OCDE indica ainda que “várias investigações foram encerradas prematuramente” e que “algumas queixas nem foram investigadas”, defendendo que “Portugal deve investigar todas as alegações de corrupção transnacional de modo mais claro e completo”.