Numa típica acção de propaganda, João Lourenço resolveu condecorar cerca de 500 personalidades angolanas, que – diz – se destacaram no processo de conquista da Independência Nacional, da paz, democracia e reconciliação nacional. A lata (ausência de vergonha, atrevimento, descaramento, ousadia, topete) é de tal ordem que um dos condecorados é (a título póstumo) Alves Bernardo Baptista «Nito Alves» (Ordem dos Combatentes da Liberdade, 1.º Grau).
Ou seja, o MPLA/João Lourenço continua a manter como único herói nacional o assassino António Agostinho Neto, o então presidente que mandou assassinar (e com ele mais uns milhares de angolanos) Alves Bernardo Baptista «Nito Alves», agora condecorado.
Recorde-se que a desfaçatez de João Lourenço é de tal ordem que deu aval à entrega dos restos mortais de vítimas dos massacres de 27 de Maio de 1977, ordenados por Agostinho Neto, entregues às famílias, incluindo os corpos de Sita Vales, José Van-Dunem e “Nito Alves” que – afinal – não correspondiam (de acordo com os testes de ADN) a essas vítimas.
De facto, a máquina de propaganda do Governo angolano e da CIVICOP – Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos, ao realizar cerimónias fúnebres e entregar corpos em cerimónias públicas amplamente televisionadas, em véspera de eleições, mais não foram do que um macabro exercício de crueldade.
O país viu. O mundo também. Todo o país viu e viveu esse momento como um suposto tempo de verdade e reconciliação. Porém, nem todos aceitaram “comer e calar”. Alguns familiares dos assassinados pediram a realização de testes de ADN para confirmar a identidade dos cadáveres.
O Governo angolano promoveu, no ano passado, as cerimónias fúnebres de Alves Bernardo Batista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio Lourenço Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete, vítimas dos massacres ordenados em 27 de Maio de 1977 pelo único herói nacional que o MPLA permite, venera e endeusa.
No local onde foram encontradas essas ossadas, estariam também as de José Van-Dunem e Sita Vales, um jovem casal de dirigentes do MPLA, que foram também assassinados na altura, mas os seus familiares exigiram novos exames forenses, tendo-se deslocado a Luanda uma equipa de especialistas portugueses, liderada pelo ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Duarte Nuno Vieira.
E foi com espanto (típico da ingenuidade dos sofredores) e dor que após a realização dos exames, se concluiu que nenhuma das amostras corresponde aos cadáveres apresentados.
Um familiar das vítimas disse que os peritos portugueses encontraram oito corpos misturados em sacos, tiveram de reconstituir cada corpo e posteriormente fazer os exames. “Um desses corpos, entre os oito, era apenas uma mandíbula. Entre estes havia duas crianças”, relatou.
Os órfãos manifestam-se “incrédulos”, lamentando que à “vida familiar amputada” e “marcada pela tristeza” da perda dos pais se tenha assistido a um “exercício de crueldade, em que se reavivaram gratuitamente sentimentos de perda, de dor e de mágoa, com objectivos que nada têm de nobre”.
E se nenhum dos restos examinados corresponde às pessoas a quem se disse pertencerem, o que se passará com os restos mortais já entregues às famílias e enterrados sem exames prévios?
Os órfãos criticam também a metodologia seguida pela CIVICOP, porque envolvia pessoas ligadas ao genocídio de Maio de 1977 e que nenhum interesse teriam (ou têm) na reposição da verdade, e não incluía representantes das vítimas, nem clarificaram os procedimentos adoptados na localização e identificação dos cadáveres.
Há seguramente ainda muito por desvendar sobre o que aconteceu no dia 27 de Maio de 1977, sobre os acontecimentos que o precederam e sobre a barbárie que se lhe seguiu. Melhor. Está quase tudo por desvendar. E a verdade só será conhecida quando o MPLA deixar de ser o único dono do país. Enquanto isso não acontecer, o carrasco (Agostinho Neto) continuará a ser o único herói do reino..
Os órfãos realçam que há cerca de ano e meio viram “uma luz no fundo deste longo túnel”, com o reconhecimento por parte do Presidente João Lourenço, pela primeira vez na história de Angola independente, dos excessos do Estado nos acontecimentos que se seguiram ao 27 de Maio, que incluiu a morte de milhares (60 mil? 80 mil?) de cidadãos angolanos.
Um gesto que, dizem, olharam inicialmente “com desconfiança, por ser inédito, por ter lugar em ano anterior ao de eleições”, mas que acabaram por reconhecer como o primeiro sinal genuíno de busca pública da verdade e de intenção de reconciliação.
Paralelamente, foi criada toda uma máquina de propaganda que poderia garantir tudo menos um trabalho rigoroso e um resultado sério, indo ao ponto de exibir na televisão retroescavadoras que estariam a remover restos mortais e o anúncio público da possível localização de cadáveres de pessoas, reavivando sentimentos de profunda comoção e sofrimento nas famílias.
Ao descobrirem que as amostras de ADN afinal (como dissera o MPLA) não correspondem aos cadáveres dos seus familiares, os órfãos pedem que os responsáveis e participantes na repressão – muitos dos quais ainda vivos e identificados – sejam chamados a indicar, sob juramento, os locais onde foram enterrados ou lançados os corpos a que tiraram ou mandaram tirar a vida.
De facto, 45 anos é tempo suficiente para se encarar a verdade e para o país enfrentar os seus traumas.
“Não conseguiremos ultrapassar esta tragédia e aprender com ela se continuarmos a recusar-nos a enfrentar verdadeiramente os factos”, afirmam os órfãos, que querem “publicamente exprimir a decepção com todo este processo”, e apelam ao povo angolano “que se una na busca da verdade”.
Em 27 de Maio de 1977, uma tentativa (segundo a tese oficial do MPLA) de golpe de Estado, numa operação liderada por Nito Alves – então ex-ministro do Interior desde a independência (11 de Novembro de 1975) até Outubro de 1976 -, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, com o apoios dos militares cubanos.
Em Abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a CIVICOP), para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002 (fim da guerra civil).