O jornalista e activista Rafael Marques afirma que o Presidente angolano, general João Lourenço, tem uma “visão redutora” sobre a “podridão” do sistema judicial do país, que diz estar “moribundo” e ser dirigido por “indivíduos com qualificações para chefiar associações criminosas”. Exactamente o que o Folha 8 e a TV8 têm dito nos últimos anos, nomeadamente pela voz do nosso Director, William Tonet.
Para nós é ponto assente que o general João Lourenço prefere ser assassinado pelo elogio do que salvo pela crítica. Tem, obviamente, esse direito. Também é ponto assente que privilegia os que lhe estendem a mão quando tropeça nas pedras, às vezes verdadeiros pedregulhos, da governação. Nós bem tentamos tirar as pedras antes de o presidente passar, tropeçar e cair. Mas se ele prefere trambolhar…
Em declarações à Lusa, Rafael Marques diz que “o nosso papel, enquanto educador, enquanto indivíduo que forma opinião pública, não é fazer exigências se sai ou não sai, é continuar a mostrar porque o poder judicial não funciona e porque este poder está a ser dirigido por indivíduos que têm mais qualificações para chefiar associações criminosas do que propriamente para chefiarem órgãos de soberania”.
Comentando sobre a propalada crise no poder judicial angolano, recusada, no entanto pelo Presidente angolano, general João Lourenço, em entrevista à Rádio France International (RFI), o activista (condecorado em 2019 por João Lourenço pelo seu empenho na luta contra a corrupção) considerou que a crise no sistema judicial angolano é uma realidade e a visão do estadista angolano é “redutora da vontade dos angolanos”.
“É o ponto de vista do Presidente. De acordo com a sua visão para o país não há crise, agora para nós, cidadãos, o poder judicial está moribundo, está praticamente morto, então temos aqui opiniões divergentes”, realçou.
Deste modo, frisou, temos o Presidente da República “que pensa de outra forma, de acordo com a sua visão para o país, que é uma visão redutora da vontade dos angolanos”, e do outro lado “a realidade que todos os dias os cidadãos angolanos enfrentam por falta de justiça”.
Para fundamentar os seus argumentos, o jornalista e director do portal Maka Angola apontou casos de cidadãos que disse estarem à espera de uma decisão judicial há 10 ou 15 anos.
“Então, como vamos dizer que não há crise na justiça? Quer dizer, nós levantamos apenas o véu da podridão do sistema judicial que de certo modo é o véu da podridão dos órgãos das instituições do Estado”, referiu.
“[Daí] termos de começar a pensar seriamente como é que nós conseguimos escalar essa montanha, que é estarmos em presença de um Estado completamente disfuncional, o Presidente está confortado com esse Estado, porque ele não está a passar fome”, salientou.
Rafael Marques argumentou, no entanto, que “o Presidente da República está bem, tem a sua vida e da sua família resolvida, mas a maioria dos angolanos não tem”. Maioria, presumimos, onde se incluem os nossos 20 milhões de pobres.
“Então o país não é só o Presidente, por isso é que nós, enquanto cidadãos, temos de olhar pelo país, não pelas palavras e acções do Presidente, mas, sobretudo, pela vontade colectiva dos cidadãos angolanos que querem um país melhor, que querem um país funcional”, acrescentou.
O Presidente da República, do MPLA e Titular do Poder Executivo considerou que não existe em Angola “uma crise institucional”, embora tenha reconhecido haver problemas no Tribunal de Contas e investigações que decorrem no Tribunal Supremo. Já antes, recorde-se, afirmara que em Angola não havia fome, veredicto que depois moldou para fome relativa.
“Uma crise institucional no país é muito forte dizer isso, forte demais”, disse João Lourenço, entrevistado pela RFI, quando questionado sobre a situação nos tribunais angolanos. A convicção do Presidente era de tal ordem que, mais uma vez, preferiu falar a um órgão de comunicação social estrangeiro e não a um autóctone, como se fôssemos todos matumbos.
A presidente demissionária do Tribunal de Contas (TdC), Exalgina Gambôa, apresentou demissão na quarta-feira ao Presidente da República com conhecimento ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, um dia após ser constituída arguida por crimes de extorsão, peculato e corrupção, num processo onde consta também o seu filho Hailé Vicente da Cruz, igualmente arguido
Na segunda-feira, João Lourenço anunciou que convidou Exalgina Gambôa a renunciar ao cargo em 21 de Fevereiro devido a várias “ocorrências” que a envolviam, mas a juíza só se demitiu dois dias depois, após ter pedido jubilação antecipada e ter sido constituída arguida.
Sobre a renúncia de Exalgina Gambôa, Rafael Marques disse que a juíza abandonou o cargo “por pressão pública, por conta das denúncias que foram feitas sobre a forma como transformou o Tribunal de Contas em seu mealheiro privado e em agência de viagens para os seus filhos”.
“E de outras negociatas que se vieram a saber, incluindo a exigência de um 1% da refinaria do Lobito e a tentativa de extorsão, chantagem diríamos assim, para que fossem visados certos contratos, sobretudo a nível do Ministério da Energia e Águas em troca de contrato para os filhos terem o negócio da montagem das linhas de transmissão de alta tensão”, apontou.
Rafael Marques defendeu a necessidade de a sociedade reflectir sobre como está organizada e como o poder judicial se organiza, “visando reformas de modo que o poder executivo tenha menos interferência política e o poder judicial possa ter a sua independência em termos de decisões soberanas”.
“O que vemos hoje é a forma como o poder está estruturado e o que se notou é que a presidente do Tribunal de Contas não partilhava com os pares o orçamento da instituição e fazia do orçamento da instituição a sua conta privada”, notou.
Rafael Marques salientou que o presidente do Tribunal Supremo, juiz Joel Leonardo, “até hoje” não submeteu um único orçamento da instituição à aprovação dos seus pares, “como manda a lei”.
“Portanto, quando se permite que os titulares dos principais órgãos de justiça violem as normas orçamentais, violem regras básicas, procedimentos de gestão, então, é muito difícil garantir que estes indivíduos sejam isentos nas suas acções e tenham capacidade de julgar com justiça e de acordo com lei”, considerou.
“Porque não estão habituados a seguir a lei no seu quotidiano profissional, então a partir daqui são estas questões que temos que analisar”, acrescentou.
O activista defendeu também debates públicos em torno do sistema judicial angolano, “para se atacar as causas da podridão do sistema judicial para que possa haver mudanças que não sejam dependentes exclusivamente da vontade do Presidente da República”.
“Mas, da vontade popular, porque os juízes actuam de acordo com a vontade popular e não pela vontade do Presidente [da República]”, realçou, observando que “quem lhes confere a soberania é o povo” e “a justiça é feita em nome do povo e não em nome do Presidente da República”.
Em relação à posição do Presidente angolano, à RFI, sobre o TdC, Rafael Marques defendeu que cabe à sociedade continuar a apresentar provas, fazer denúncias, porque a palavra do chefe de Estado “não é a mais importante da nação”.
“É a vontade popular, o próprio poder do Presidente da República emana da vontade popular, a sua legitimidade emana da vontade popular, assim como a dos juízes, então, é o povo que também tem representantes alternativos que vai continuar a escrutinar o poder judicial”, contrapôs.
“Como fica quando o Presidente da República reconhece que o presidente do Tribunal Supremo é suspeito de actos de corrupção? E então, vamos dizer um indivíduo que é suspeito de ser corrupto tem capacidade moral para julgar os corruptos?”, questionou.
Folha 8 com Lusa