ANGOLA (RE)CONHECE “GUERRA” EM CABINDA

Escreve a VOA que o Governo de Angola admitiu pela primeira vez publicamente a existência de acções militares em Cabinda e reconheceu que a segurança na fronteira com a República do Congo “inspira muitos cuidados”.

As afirmações foram feitas numa altura que a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda-Forças Armadas de Cabinda (FLEC-FAC) – organização de guerrilha que actua na região e que reivindica a independência de Cabinda-, apelou ao boicote das eleições.

O Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, disse, no sábado, 19, existir na fronteira entre Angola e Congo uma “ofensiva armada de grupos criminosos”. Sem fazer referência à FLEC-FAC, Eugénio Laborinho considerou que estas acções “deixam vulnerável a segurança transfronteiriça entre os dois países”.

“Apesar das acções operativas que vêm sendo realizadas, no âmbito da prevenção e combate aos crimes transfronteiriços, a situação de segurança ao longo da fronteira comum ainda inspiram sérios cuidados, porquanto, uma vasta extensão da mesma encontra-se desprotegida, o que torna vulnerável a qualquer tipo de actos ilícitos”, precisou o ministro angolano do Interior.

Em termos oficiais, as autoridades angolanas sempre negaram a existência de ataques de guerrilheiros da FLEC-FAC às posições das Forças Armadas de Angola e de um clima real de instabilidade militar na região.

O porta-voz de uma das várias FLEC, Xavier Puati Itula, comemorou o reconhecimento do governo sobre a ofensiva armada e disse que a sua organização continuará as actividades de guerrilha enquanto o governo não iniciar uma negociação com o grupo.

Mas, desta vez, o ministro angolano disse ser urgente que os órgãos de defesa e segurança de Angola e do Congo tomem as medidas necessárias para que a fronteira entre os dois países não seja utilizada como esconderijo de grupos criminosos.

“Com vista a preservar as excelentes relações de boa vizinhança, urge a necessidade dos órgãos de defesa dos dois países tomarem as medidas pertinentes para que os dois territórios não sejam utilizados como bastiões e esconderijos de grupos criminosos”, disse.

Eugénio Laborinho fez estas declarações por altura de uma reunião que juntou, durante quatro dias, em Luanda, os ministros do interior de Angola e da República do Congo.

Num primeiro encontro, entre chefias militares dos dois países, realizado a 18 de Janeiro, em Massabi, foi aprovada a realização de operações conjuntas contra a FLEC-FAC.

O Governo de Angola tinha acusado a República do Congo de cumplicidade com a guerrilha, na sequência dos ataques de Massabi e Nhuca.

Em entrevista recente à VOA, o chefe do Estado-Maior General da FLEC-FAC, Estanislau Boma, garantiu que a resistência continua a lutar pela independência e apelou aos movimentos cívicos em Cabinda para boicotarem as eleições gerais, previstas para Agosto de 2022.

“Eleger Angola em Cabinda é eleger a opressão no nosso território”, disse Boma, que acusou o exército angolano de atacar a guerrilha.

Alexandre Kuanga Nsito, coordenador da Associação Cultural e de Desenvolvimento e dos Direitos Humanos de Cabinda, defende que, mais do que reconhecer a existência de guerra na região, o Governo deve promover o diálogo com a FLEC-FAC e com as sensibilidades políticas locais.

Na opinião daquele activista cívico, “o Presidente João Lourenço não devia perder a grande oportunidade de ganhar o Prémio Nobel da Paz promovendo o diálogo para a pacificação de Cabinda”.

Para o MPLA, quantas mais FLEC houver… melhor

Em Abril de 2021, a FLEC-FAC pediu à Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) “atenção particular” para o conflito em Cabinda, denunciando a política de militarização de Angola naquela região. É chover no molhado. Desde logo porque a estratégia do MPLA (também) passa por fomentar a existência de várias… FLEC. E está a ter sucesso.

“Constatando a incapacidade e indisponibilidade de Angola, a FLEC-FAC apela para uma atenção particular ao conflito em Cabinda” e para “o contributo para a resolução deste conflito” da SADC, diz, em comunicado, a chamada direcção político-militar da FLEC-FAC.

O apelo foi dirigido especialmente ao presidente do órgão de Política, Defesa e Segurança da SADC, Mokgweetsi Eric Keabetswe Masisi, e numa altura em que a organização esteve reunida, em Maputo, para analisar a crise na província moçambicana de Cabo Delgado.

“Esquecer o conflito em Cabinda é contribuir para o agravamento do ambiente de defesa e segurança na região e um meio de permitir ao estado angolano prosseguir com a sua política de regressão e militarização de Cabinda e dos estados vizinhos”, acrescentava a FLEC no comunicado.

Os independentistas (todos a monte mas quase todos separados) de Cabinda reclamam a autodeterminação do território e o cumprimento do Tratado de Simulambuco. Assinado em 1 de Fevereiro de 1885 entre o Governo português e os autóctones cabindenses, o Tratado de Simulambuco selou a criação de um protectorado português, no qual Portugal se comprometeu a manter a integridade dos territórios.

Os independentistas de Cabinda defendem (e bem) que o território era uma colónia independente de Portugal e deveria ter sido tratada enquanto tal no processo de independência de Angola.

Em contrapartida, o território, de onde é extraída a grande parte do petróleo de Angola, tornou-se numa província angolana. Recorde-se que a Angola também foi província de Portugal e que Timor-Leste foi igualmente província indonésia.

Seja qual for o ponto de vista da análise, é matéria de facto que Portugal honrou desde 1885 até 1974 o compromisso assumido com os cabindas, razão pela qual em matéria constitucional incluiu Cabinda na Nação portuguesa, fazendo-o de forma autónoma e bem diferenciada de outras situações coloniais.

De facto, e ao contrário das teses unilaterais dos descolonizadores que tomaram o poder em Portugal em 1974, no artigo da Constituição Portuguesa referente à Nação Portuguesa sempre constava, sempre constou e ainda lá está para quem tiver dúvidas, que o território de Portugal era, na África Ocidental, constituído pelos Arquipélagos de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, Forte de S. João Baptista de Ajudá, Guiné, Cabinda e Angola.

Na Lei Orgânica do Ultramar (designação que substituiu a referência às colónias), de 1972 (portanto, dois anos antes da Revolução de 1974), diz-se de forma clara que o território português se compunha das províncias com a extensão e limites que constarem da lei e dos tratados (Simulambuco, obviamente) ou convenções internacionais aplicáveis.

Apesar de alguma amnésia colectiva, sempre apetecível quando toca a não assumir responsabilidades, muitas das gerações que ainda hoje estão no activo da política portuguesa, aprenderam a completa e inequívoca separação, tanto jurídica como administrativa, que a Constituição reconhecia com força de lei para o território de Cabinda.

Recorde-se, sobretudo aos que teimam em que uma mentira dita muitas vezes acaba, mais cedo ou mais tarde, por se tornar verdade, que até meados do século passado, por exemplo, quem viajasse de avião ou navio e que passassem por Cabinda a caminho de Luanda, ou ao contrário, passavam por uma alfândega, o que só é entendível à luz de serem dois territórios distintos.

Aliás, o Governador-Geral de Angola ou um Secretário Provincial sempre se deslocaram a Cabinda na data do aniversário do Tratado para presidir, junto ao monumento de Simulambuco, às cerimónias que reforçavam e validavam o que fora assinado pelas autoridades portuguesas de então.

É certo, igualmente, que em 1955, para facilitar a administração do território, Cabinda foi considerada como um distrito de Angola. Apesar disso, e reconhecendo que de facto se tratava de um mero expediente administrativo, Portugal reafirmava que Cabinda não era Angola, citando a esse propósito que se mantinha o articulado que constava da Constituição.

O general Silvino Silvério Marques, que foi Governador-Geral de Angola, entre 1962 e 1965, afirma que o ministro Silva Cunha, (a propósito da preparação do Estatuto Político-Administrativo da Província de Angola de 1963) por ordem do chefe de Governo, António de Oliveira Salazar, indagou o Governador-Geral de Angola no sentido de saber se concordava que Cabinda, administrada então como distrito de Angola, passasse a ter um estatuto especial de autonomia.

Ouvido o Conselho Económico-Social de Angola, Silva Cunha recebeu uma resposta negativa, situação que assim se manteve durante os 13 anos da guerra colonial.

Ou seja, ficou visível que a administração de Cabinda como um distrito de Angola era uma situação meramente burocrático-administrativa, nunca tendo Portugal alterado o espírito a e letra do Tratado de Simulambuco.

Em tudo, aliás, a situação de Cabinda relativamente a Angola era na altura da Revolução de 1974 similar, ou até coincidente, com a dos protectorados belgas do Ruanda e do Burundi em relação ao Congo Belga. Estes tornaram-se independentes.

Em 1961, altura em que se inicia a luta armada pela independência de Angola, em Cabinda – ou melhor, tendo cabindas como protagonistas – existia apenas um movimento independentista que, contudo, excluía a luta armada como meio para atingir esse fim. O diálogo com Portugal era a sua única arma.

Em 1958 foi fundada por destacados elementos da comunidade cabinda radicada em Leopoldville a AREC (Association dês Ressortissants de l’Enclave de Cabinda, (Associação dos Originários do Enclave de Cabinda).

Eram figuras destacadas da AREC, Luís Ranque Franque (Presidente), João Francisco Quintão, José Cândido Ramos, João Púcuta, José Puna e Telo Geraldo, quase todos descendentes directos dos nobres líderes de Cabinda que subscreveram o Tratado de Simulambuco. Por isso, do ponto de vista político sempre afirmaram que Cabinda era um protectorado de Portugal, negando qualquer envolvimento activo, ou apenas simpatia, pelos movimentos angolanos que lançaram a luta armada pela independência… de Angola.

Antes do início das hostilidades armadas em Angola, ou seja, a 12 de Agosto de 1960, a AREC escreveu ao Presidente do Conselho e ao Ministro do Ultramar, pedindo a independência de Cabinda.

Segundo um documento intitulado “O que quer a AREC”, a organização dizia que era chegada a altura de acabar com o protectorado consignado no Tratado de Simulambuco e assim chegar à independência de Cabinda.

Ainda em 1960, Novembro, um comunicado da AREC dizia que nada tinha a ver com organizações angolanas como a UPA, a ALIAZO, a NGWIZACO e o MPLA. Certamente porque Portugal se mantinha indiferente à sua existência, a organização liderada por Luís Ranque Franque, começou a fazer elucidativos apelos à rebelião contra os portugueses.

A 20 de Dezembro de 1960, a AREC faz circular em Cabinda um manifesto anti-europeu onde, pela primeira vez, aparece também o nome do MLEC – Movimento de Libertação do Enclave de Cabinda que, poucos dias depois, endereça um memorando a diversas entidades oficiais de Portugal reclamando a independência e dando, mais uma vez, como terminado o acordo de protectorado.

Numa tentativa desesperada e inconsequente para ser reconhecido, o MLEC aproveita o dia 1 de Fevereiro de 1961 (comemorações do Tratado Simulambuco) para lançar o boato de que a comida à venda em Cabinda estava envenenada.

No dia 23 de Março de 1961, logo após os primeiros actos armados da UPA em Angola, as autoridades portuguesas prenderem em Cabinda alguns dirigentes do movimento, entre os quais o barão Puna, tendo apreendido grandes quantidades de propaganda anti-Portugal.

A acção de Portugal foi aproveitada pelo MLEC que, a 11 de Abril de 1961, paga a publicação de um comunicado no “Courrier d’Afrique” onde fala do que chama “os massacres de Cabinda”. Dado o exagero e manifesta falsidade da afirmação, a população de Cabinda teve uma reacção contrária, obrigando o MLEC a corrigir a pontaria.

A 5 de Setembro de 1961, o MLEC regressa aparentemente à via pacifista e Henriques Tiago N’Zita assina um documento de análises às modificações implementadas por Lisboa em Cabinda, considerando-as insuficientes no âmbito do protectorado.

Pouco depois, a 15 de Novembro, o MLEC começa a revelar desentendimentos internos, aparecendo versões para todos os gostos e feitios, desde a independência ao protectorado, passando por uma consulta popular e até pela anexação a qualquer um dos Congos, tudo surgia nessa altura como sendo obra do MLEC. No entanto, não se registava nenhuma posição favorável à anexação, ou simples ligação, a Angola.

A 24 de Novembro, o MLEC remeteu o que chamou de “Plano-Quadro do MLEC” ao embaixador de Portugal no Congo ex-belga, com o pedido expresso que o encaminhasse para o governo de Lisboa. Desse plano ressalta sobretudo uma declaração de amizade em relação a Portugal, a defesa do pacifismo e o pedido para ser recebido e reconhecido pelas autoridades portuguesas.

Um mês depois Henriques Tiago N’Zita é expulso do Movimento, facto que o leva a responder com a criação de uma outra estrutura política.

Já em Maio de 1962, o MLEC distancia-se de tudo o que se passa em Angola, afirmando mesmo que o GRAE – Governo Revolucionário de Angola no Exílio era algo que nada dizia aos cabindas.

Entretanto, N’Zita fundou a CAUNC (Comissão de Acção da União Nacional dos Cabindas). A 13 de Janeiro de 1962 N’Zita garante que a sua organização visava unir a família cabinda e juntá-la a outra família, a do Congo. Reafirmando que Cabinda nada tinha a ver com Angola, exige o fim dos tratados assinados com Portugal.

Perante a encruzilhada a que chegara a situação destes movimentos ou organizações, só em 8 de Julho de 1963 a CAUNC e o MLEC chegam a um entendimento, tão precário na sua génese que ainda hoje ninguém se entende, para criar a FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda).

Folha 8 com VOA

Artigos Relacionados

Leave a Comment