“A FOME É SEMPRE RELATIVA”, DIZ JOÃO LOURENÇO

Num pronunciamento feito durante um comício no sábado, 11, para assinalar a sua reeleição como presidente do MPLA (partido que governa Angola há 46 anos), João Lourenço disse que o país tem muita produção de bens alimentares e considerou que o uso incessante da palavra fome por vários actores talvez seja uma questão de conveniência própria ou política. “A fome é sempre relativa”, disse João Lourenço. Tem razão. No círculo familiar dos dirigentes do reino ninguém passa fome.

João Lourenço acrescentou que, em rigor, o que se passa em Angola é um problema de poder de compra dos cidadãos, resultante dos altos índices de desemprego, devido à Covid-19.

“Talvez por conveniência própria, talvez por conveniência política convenha repetir incessantemente a palavra ‘fome’ mas eu diria que o grande problema de Angola, se quisermos ser mais precisos é o pouco poder de compra dos nossos cidadãos resultante dos altos índices de desemprego”, afirmou o também Presidente da República. Melhor seria dizer que o problema é os escravos estarem vivos. Se estivessem mortos não teriam… fome.

O pastor evangélico e analista político Elias Isaac afirma que as palavras do presidente do MPLA são um insulto e mostram falta de sensibilidade para com os governados.

“Quando você tem num país com 35 a 40 por cento da população desempregada, quando se reconhece mundialmente que mais de 60 por cento da população é pobre, é muita falta de sensibilidade da parte do presidente do MPLA e mesmo uma falta de respeito este tipo de pronunciamento”, diz aquele líder religioso, acrescentando não entender porque “o Presidente insiste nisso, o Presidente não perde nada em reconhecer que há fome e declarar estado de emergência”.

Para Elias Issac, “há pessoas a comerem no contentor de lixo em Angola e não tem nada a ver com reduzido poder de compra, isto é desculpa, é só o Presidente andar onde há contentores de lixo, é só ir ao aterro e vai ver o que acontece neste país”.

Quem também considera que o Presidente da República foi insensível para os mais desfavorecidos é o jornalista Ilídio Manuel, que entende que ao falar do desemprego, o próprio chefe do MPLA devia envergonhar-se já que “foi ele quem não conseguiu cumprir os 500 mil empregos que prometeu” durante a campanha eleitoral.

“Estamos a viver paradoxalmente um cenário pior do que vivíamos em tempo de guerra, as pessoas vão à procura de comida nos contentores de lixo, há mais fome agora do que havia em tempo de guerra, o que o Presidente tentou fazer foi minimizar a situação e isto demonstra insensibilidade da parte dele”, sustenta Ilídio Manuel.

Em sentido contrário, José Severino, presidente da Associação Industrial Angolana (AIA), pensa que não houve nada de invulgar no que disse João Lourenço.

“A abordagem do presidente do MPLA tem certa lógica, dizer que há baixo poder de compra ou a falta dele, uma coisa é o baixo poder de compra e é o que o presidente do MPLA se referiu e nestas circunstâncias o baixo poder de compra se reflecte porque os cidadãos têm outras necessidades para além da sua sustentabilidade física”, aponta aquele empresário, sublinhando, no entanto, haver “situações muito mais graves”.

“São os que não têm mesmo nenhum poder de compra, nalguns casos por desemprego, noutros por secas, problemas de isolamento, esta fome é a mais dramática e precisa ser atacada”, conclui o presidente da AIA.

Em Angola, fome é património (i)material do MPLA

Em 2020, ano marcado pela pandemia de Covid-19, o mundo testemunhou um “agravamento dramático” da fome, com quase um décimo da população mundial a sofrer de subnutrição, revelaram em Julho deste ano as Nações Unidas num novo relatório. Segundo a FAO, 23,9% da população angolana passa fome, o que equivale a que 6,9 milhões de angolanos não tenham acesso mínimo a alimentos… nem mesmo podem recorrer às lixeiras.

Em Maio, um relatório da Rede Global Contra as Crises Alimentares estimava que 1,9 milhões de crianças angolanas, menores de 5 anos, sofrem de múltiplas formas de desnutrição..

O director do Instituto Nacional da Criança no Bengo, Luciano Chila, pediu na altura um trabalho conjunto com os pais para tirar as crianças das lixeiras e levá-las para as escolas.

“Todo o cidadão desta província, em qualquer lugar, quando vê um filho de outra pessoa a ir à lixeira recolher este tipo de produto, logo, deve recorrer aos pais e informar o acto que o seu filho está a praticar”, apelou.

O dinheiro recuperado no combate à corrupção poderia, deveria, ser usado para ajudar estas famílias. As pessoas não suportam a fome, vão sempre procurar um escape para enganar a própria fome, quer se alimentem bem ou mal. E agora, quando se fala na recuperação de alguns milhões de dólares, bem que o Governo deveria criar bolsas de pobreza para ver como dar algum conforto a estas famílias.

A directora do Gabinete da Acção Social, Família e Igualdade do Género, Felisberta da Costa, garante que o Governo, sempre que pode, apoia as famílias carenciadas. “O governo quando tem as possibilidades de apoiar, nós apoiamos. Hoje também os nossos orçamentos emagreceram e não tem sido fácil nós darmos sempre”, justifica.

Na província, “temos apoiado as cooperativas onde são enquadradas as mulheres, porque, se nos agruparmos em cooperativas e recebermos os apoios, podemos melhorar o auto-sustento das famílias”, conclui.

A coragem de se ser verdadeiro

Numa altura em que até um relatório do Ministério da Saúde indicava que nos primeiros seis meses de 2020 duas crianças morriam por hora devido à fome, aumentando paralelamente o número de pobres que, antes da pandemia de Covid-19, eram 20 milhões, o Governo do MPLA mantinha-se firma e continua impávido perante o sério o risco de Angola se transformar num não-país.

Na mesma altura (fim de 2020), uma noticia a VoA dava conta que organizações da sociedade civil angolana consideravam que o aumento de mortes de crianças por desnutrição (fome em bom português) no país devia-se à falta de políticas sociais sustentáveis e ao desprezo a que estão votadas as associações que trabalham com as comunidades mais empobrecidas.

Um relatório da Direcção Nacional de Saúde Pública (DNSP) sobre a desnutrição no país revelou que, nos últimos seis meses de 2020, em média, duas crianças com menos de cinco anos morreram em Angola a cada hora devido à fome. Certamente, como parece ser o desígnio nacional do MPLA (o único partido que governa o país há 46 anos), essas crianças faziam parte do colossal conjunto de angolanos que estariam a tentar aprender a viver sem… comer.

O relatório estimava que, no total, 8.413 crianças morreram de um universo de 76.480 que deram entrada nos hospitais públicos do país.

Para o líder da organização “Construindo Comunidades”, padre Jacinto Pinto Wacussanga, o quadro descrito pela DNSP “pode ser muito mais grave do que se pode pensar”. E não é por falta de alertas que o Presidente da República, igualmente presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, olha para o lado e assobia. É, isso sim, pelas criminosas políticas económicas e sociais que o seu governo leva a cabo.

O conhecido padre dos Gambos, na Huíla, diz que por falta de comida, “as crianças da região são alimentadas com frutos silvestres e com raízes”. Será que João Lourenço sabe o que são crianças angolanas? Será que sabe que lidera um país rico e que nem nos piores tempos da colonização acontecia tal coisa?

O activista social Fernando Pinto, responsável de uma associação de apoio às crianças pobres do distrito urbano do Zango, em Luanda, dizia que o relatório é “um retrato fiel do que se passa em Angola, até mesmo na sua capital”.

Segundo o documento da DNSP, do total dos menores que procuraram hospitais, 11 por cento faleceram, 11 por cento abandonaram o tratamento, seis por cento não tiveram resposta ao tratamento e 72 por cento tiveram alta.

Além da falta de alimentos em vários lugares, aquele órgão do Ministério da Saúde de Angola reconhece a ocorrência de rupturas constantes de stock de produtos terapêuticos nos centros de saúde, atraso na planificação e o número insuficiente de pessoal capacitado para tratar a desnutrição aguda. É claro que os filhos dos dirigentes, e de outros ilustres acólitos do MPLA, vivem noutro mundo, eventualmente por pertencerem a uma casta superior e não terem o estatuto de escravos como acontece com estas crianças.

Em Abril de 2020, o secretário-geral das Nações Unidos, António Guterres, alertou no Relatório Global de Crises Alimentares que o mundo arriscava-se a derrapar este ano para uma tragédia de fome “de proporções bíblicas” devido à pandemia de Covid-19.

“Se nada for feito, o número de pessoas em risco de insegurança alimentar aguda no mundo pode mesmo quase duplicar este ano e chegar aos 265 milhões de vítimas, face aos 135 milhões de 2019”, lia-se no documento que, numa lista de 35 países, alertava para a situação de Angola.

“A insegurança alimentar aumentou devido à seca nas províncias do sul e o afluxo de refugiados da República Democrática do Congo”, concluiu o relatório, que indicou que essa situação estava a afectar mais de 562 mil pessoas.

A ONU concluiu que “mais de 8 por cento das crianças com menos de cinco anos sofriam de desnutrição grave e perto de 30 por cento tinham problemas de crescimento”.

Recorde-se que o Presidente João Lourenço mentiu (continua a mentir) quando, na célebre entrevista à RTP, disse que não havia fome em Angola, retratando que o que havia, apenas aqui ou ali, era uma ligeiríssima má-nutrição. E com ele mentiram também o Presidente do MPLA, João Lourenço, e o Titular do Poder Executivo, João Lourenço.

Provavelmente João Lourenço deve ter feito estas declarações à RTP depois de um frugal e singelo almoço, do tipo trufas pretas, caranguejos gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e queijos acompanhados de mel e amêndoas caramelizadas, e várias garrafas de Château-Grillet 2005.

Compreende-se (isto é como quem diz!), que tenha arrotado esta (e outras) mentira em solidariedade com os nossos 20 milhões de pobres que, por sua vez, arrotam à fome e morrem a sonhar com uma refeição.

Em 2018, os próprios dados governamentais davam conta que Angola tinha uma taxa de desnutrição crónica na ordem dos 38 por cento, com metade das províncias do país em situação de “extrema gravidade de desnutrição”, onde se destacava o Bié, com 51%.

As províncias do Bié com 51%, Cuanza Sul com 49%, Cuanza Norte com 45% e o Huambo com 44% foram apontadas, na altura, pela chefe do Programa Nacional de Nutrição, Maria Futi Tati, como as que apresentavam maiores indicadores de desnutrição.

“São cerca de nove províncias que estão em situação de extrema gravidade de desnutrição, sete províncias em situação de prevalência elevada e duas províncias em situação de prevalência média”, apontou Maria Futi Tati, em Junho de 2018.

Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) indicava que, em Angola, 23,9% da população passa fome.

Em Angola, segundo a FAO, “23,9% da população passa fome”, o que equivale a que “6,9 milhões de angolanos não tenham acesso mínimo a alimentos”.

Folha 8 com VoA

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