O Presidente da República de Angola, João Lourenço, disse hoje nas Nações Unidas que a diferença entre países na administração das vacinas contra a Covid-19 é “chocante” e defendeu a liberalização da sua produção e distribuição.
“É chocante constatar-se a disparidade existente entre umas nações e outras no que diz respeito à disponibilidade de vacinas, pois essas diferenças permitem, nalguns casos, administrar-se já uma terceira dose, enquanto noutros países, como ocorre em África, a larga maioria não está sequer vacinada com a primeira dose”, disse o chefe do Estado angolano durante a sua intervenção na Assembleia-Geral das Nações Unidas, que decorre esta semana na sede da organização, em Nova Iorque.
“É cada vez mais acentuada a convicção a nível global de que se está perante a possibilidade real de se voltar à vida normal, pelo surgimento das vacinas que a comunidade científica desenvolveu com admirável e louvável rapidez, e cujo grande propósito é a preservação da espécie humana, ameaçada pela pandemia de Covid-19”, acrescentou João Lourenço, antes de defender a retirada dos direitos de protecção intelectual sobre as vacinas.
“É urgente estabelecer-se que a solidariedade e simplificação de processos no acesso a vacinas é a única via capaz de conduzir o mundo à vitória no combate à pandemia”, disse, defendendo: “Que sejam discutidas e aprovadas pelas Nações Unidas decisões favoráveis à liberalização das vacinas, para que seja possível a sua produção por um número cada vez maior de países”.
A vacina, continuou, “deve ser reconhecida como bem da Humanidade, de acesso universal e aberto para permitir uma maior produção e distribuição equitativas à escala mundial”.
Para além das vacinas, João Lourenço criticou ainda os frequentes golpes de Estado em África, exemplificando com o Mali e com a Guiné-Conacri, para defender uma intervenção mais musculada da comunidade internacional, que “deve actuar e não apenas ficar-se pelas declarações, obrigando os actores a devolverem o poder” aos eleitos.
“Não podemos permitir que exemplos recentes, como na Guiné-Conacri, prosperem em África e noutros continentes. As Nações Unidas deviam exigir a libertação imediata do professor Alpha Condé [presidente deposto num golpe de Estado na Guiné-Conacri], concluiu João Lourenço.
Desigualdade no acesso a vacinas é uma pandemia
O discurso de João Lourenço veio dar razão à Organização Mundial da Saúde (OMS), ou será que foi a OMS que veio dar razão ao Presidente João Lourenço?
De facto, recentemente o director-geral da OMS defendeu, num encontro com vários responsáveis de organizações internacionais sobre a vacinação em África, que as desigualdades no acesso às vacinas vão piorar o combate à pandemia a nível mundial.
“Quanto mais desigualdade houver no acesso às vacinas em África, menos eficaz será a luta contra o vírus, menos eficazes serão as vacinas contra as novas variantes e mais vagas de Covid-19 vamos ter a nível mundial”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus.
A conferência de imprensa regular da OMS teve como participantes especiais o enviado especial da União Africana para a Covid-19, Strive Masiyiwa, a directora regional da OMS para África, Matshidiso Moeti, e o director do Centro Africano de Controlo e Prevenção de Doenças, John Nkengasong.
O presidente do Banco Africano de Exportações e Importações (Afreximbank), Benedict Oramah, e a subsecretária-geral das Nações Unidas e secretária executiva da Comissão Económica para África (UNECA), Vera Songwe, também participaram na conferência.
Nas intervenções, os responsáveis convergiram na ideia de que África está a ser deixada para trás no combate à pandemia, devido essencialmente aos acordos bilaterais que as companhias farmacêuticas fazem com os países mais ricos e, por outro lado, pela falta de um instrumento financeiro que permita aos países africanos “sentarem-se à mesa” das negociações para a compra de vacinas.
“Até agora, a Covax deu 260 milhões de vacinas a 141 países, mas enfrentou vários desafios, com os produtores farmacêuticos a darem prioridade aos acordos bilaterais e com os países ricos a comprarem enormes quantidades”, lamentou Tedros Ghebreyesus.
“Posso parecer um disco riscado, não me interessa, vou continuar a pedir igualdade nas vacinas até as termos, mas há outras vozes a pedir a mesma coisa”, concluiu, referindo-se aos convidados da OMS, personalidades importantes para África na vertente económica, financeira e sanitária.
Vera Songwe lembrou que o continente perdeu 29 mil milhões de dólares em produção por cada mês de confinamento.
“Quando dizemos que a pandemia é uma questão económica, dizemo-lo porque é verdade, e precisamos de financiamento para ver como as estruturas financeiras internacionais podem juntar-se para respondermos à crise”, salientou.
Elogiando a alocação de novo capital do Fundo Monetário Internacional (FMI), no valor de 650 mil milhões de dólares, dos quais 33,6 mil milhões de dólares são para o continente africano, Vera Songwe sublinhou esperar que a transmissão destes Direitos Especiais de Saque dos países mais ricos para os mais pobres continue.
“Porque isto vai ser um gasto contínuo que prejudica o esforço que o continente fez em termos de melhoria dos indicadores fundamentais macroeconómicos e dos níveis de dívida, e é preciso financiamento para combater a crise, sem comprometer a recuperação económica”, frisou.
Durante as intervenções, os oradores foram unânimes em criticar a imposição dos chamados ‘passaportes de vacinas’, considerando que isso cria uma discriminação na possibilidade de fazer viagens.
Farta de promessas, OMS exige acção na distribuição de vacinas
O director-geral da OMS afirmou que tem havido “muita conversa” sobre a distribuição equitativa de vacinas contra a Covid-19 no mundo, mas “muito pouca” acção. “Não queremos desculpas, não queremos promessas, queremos vacinas”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, ao intervir, através de uma mensagem de vídeo, num debate promovido pela Amnistia Internacional, à margem da 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O responsável da OMS frisou que a organização foi fundada com base na ideia de que a saúde é um direito humano. “E no entanto, aqui estamos, no meio de uma pandemia e com milhões de pessoas sem acesso às vacinas que podem levar ao fim deste pesadelo mundial”, lamentou.
“As pessoas estão a morrer, quando não deviam estar. Tem havido muita conversa sobre a vacinação equitativa, mas muito pouca acção”, criticou. Tedros Adhanom Ghebreyesus recordou que os países desenvolvidos prometeram doar mais do que mil milhões de doses de vacinas, mas que muito menos de 25% dessas doses foram materializadas, não estando a ser cumpridas as promessas para priorizar o mecanismo Covax nos territórios menos desenvolvidos.
“Os países e as empresas que controlam o fornecimento global de vacinas parecem pensar que o resto do mundo deve contentar-se com sobras”, acrescentou o médico. No mesmo sentido, a secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, deixou um apelo para a acção dos governos e das comunidades. “As pessoas estão a morrer à frente dos nossos olhos”, disse.
A secretária-geral criticou as companhias farmacêuticas por não partilharem o conhecimento sobre a concepção das vacinas, priorizando o lucro, enquanto o Covax não tem vacinas suficientes para distribuir. “Dezenas de milhares de pessoas estão a morrer todas as semanas. Estamos a ser cúmplices de uma violação em massa dos direitos humanos”, defendeu, acrescentando que a pandemia está longe do fim e que, apesar de todos saberem qual é a solução, “todos parecem paralisados”.
Agnès Callamard instou os governos e as empresas farmacêuticas a reverterem “o escândalo da desigualdade” da distribuição de vacinas no mundo. A Amnistia Internacional considera que os Estados e as empresas farmacêuticas abandonaram os seus compromissos no combate à Covid-19, pelo que tem em curso campanhas para exigir acção dos governos e das empresas, com envolvimento dos cidadãos.
O enviado especial da União Africana para a Covid-19, Strive Masiyiwa, defendeu a criação de um mecanismo permanente de financiamento, para os países mais pobres enfrentarem pandemias e outros desastres de impacto mundial.
“Aprendemos a lição de que não podemos andar à procura de dinheiro durante uma crise, o mundo precisa de saber que pode haver outra crise semelhante, e por isso pedimos ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial para liderarem a criação de uma estrutura permanente de financiamento”, disse Strive Masiyiwa.
“A arquitectura das promessas financeiras não resulta, porque o comprometimento de verbas é sujeito a condições e mais condições e mais condições, até à crise passar, e isso não pode ser. Não podemos estar dependentes da partilha de vacinas, particularmente, quando podemos chegar à mesa das negociações e dizer que também queremos comprar dos mesmos fabricantes e nas mesmas condições” dos países mais ricos, acrescentou.
Para este empresário sul-africano que tem liderado as negociações de compras de vacinas em nome da União Africana, os fabricantes nunca “deram acesso a sério às vacinas, deram sempre numa base diferente, primeiro, porque não havia produção suficiente, mas tinham uma responsabilidade moral de deixar todos acederem, e isto é muito triste”.
Depois, salientou, porque os acordos bilaterais tiveram primazia face às encomendas de instituições internacionais de distribuição de vacinas. Para contornar estas dificuldades, principalmente quando a competição é contra países mais ricos e poderosos, Strive Masiyiwa diz que a solução foi “implementar capacidade de produção em África para África”. “E por isso defendemos o apelo para que os direitos de propriedade intelectual sejam suspensos, em nome do bem comum. Se não for agora, então em que situação podem ser suspensos?”, questionou.
Remessas descem para 41 mil milhões de dólares
As remessas para os países africanos deverão descer 5,4% este ano, caindo de 44 mil milhões de dólares, em 2020, para 41 mil milhões este ano, devido aos efeitos da pandemia, prevê a Organização das Nações Unidas (ONU).
De acordo com o relatório sobre a Migração Continental, produzido pela Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA) e pela União Africana, a queda de 37,2 mil milhões de euros, em 2020, para 34,7 mil milhões de euros, este ano, é explicada essencialmente pelos efeitos da pandemia de Covid-19 e pelas implicações na capacidade que os emigrantes têm de enviar dinheiro para os seus países.
“A UNECA projecta que o fluxo de remessas em 2020 possa ter caído 21% no ano passado, o que implica que há menos 18 mil milhões de dólares a irem para as pessoas que dependem dessas verbas, é, por isso, crítico preservar esta linha de salvamento”, lê-se na nota divulgada.
“O fluxo de remessas vai ser mais importante que nunca para os países mais pobres e para os povos mais vulneráveis, especialmente aqueles sem acesso a redes de segurança económica e social”, acrescenta-se no texto.
O relatório, que não indica valores por país, recomenda que os governos tomem medidas para facilitar e aumentar as receitas para apoiar o combate à pandemia da Covid-19 e, em última análise, “construir um mundo pós-pandemia mais sustentável”.
As remessas representam 65% da receita de alguns países e os emigrantes enviam cerca de 15% do seu rendimento para o seu país, em média, sendo a principal fonte de receita para 25 países africanos.
Criticando o custo de envio de remessas para África, “muito longe da meta de 3%”, o relatório defende ainda que os custos destas transferências devem ser diminuídos através da utilização de plataformas digitais, que podem encurtar estas despesas em 7%, e pela criação de mecanismos de concorrência entre os bancos e as agências financeiras de envio de remessas.