O Governo angolano (há 45 anos formado pelo MPLA) vai realizar pela primeira vez, em 44 anos, para assinalar o 27 de Maio de 1977, que segundo o regime foi uma tentativa de golpe de Estado, mas que de facto foi o massacre de milhares e milhares de angolanos (do MPLA) por ordem do assassino Agostinho Neto, que o MPLA considera o seu eterno e venerado herói.
Por Orlando Castro (*)
Segundo o programa de Homenagem às Vítimas dos Conflitos Políticos, estão previstos dois momentos no dia 27 de Maio, o primeiro no cemitério de Santa Ana e o segundo na Praça da Independência.
No cemitério de Santa Ana, vai proceder-se à deposição de uma coroa de flores, um minuto de silêncio e um culto em memória das vítimas, rumando os participantes, trajados de camisolas brancas e bonés com o símbolo “Abraçar e Perdoar”, para o segundo momento da cerimónia.
Na Praça da Independência, vai ser também depositada uma coroa de flores, verificado um minuto de silêncio em memória das vítimas dos conflitos políticos, entoado o hino da Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) e a entrega de dois certificados de óbito a duas órfãs, que farão uma intervenção.
O programa (elaborado ao milímetro sob orientação do DIP – Departamento de Informação e Propaganda do MPLA) prevê também intervenções de um ex-membro das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) do 27 de Maio, do representante da Fundação 27 de Maio e do coordenador da CIVICOP, Francisco Queiroz, que para dar um ar de independência à organização é só ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola.
Em declarações à agência Lusa, o presidente da Fundação 27 de Maio, Silva Mateus, considerou o acto um sinal de “reconciliação” entre as partes.
“É a reconciliação em memória às vítimas”, disse Silva Mateus, frisando que a cerimónia deverá contar com a participação de membros do Governo, de partidos políticos com assento parlamentar e da sociedade civil.
“É um acto conjunto, pela primeira vez em 44 anos, o partido Estado e a outra parte, diríamos os ‘nitistas’, vão fazer um acto público conjunto”, acrescentou Silva Mateus.
O Plano de Reconciliação em Memória às Vítima de Conflitos Políticos prevê, entre outras questões, a emissão de certidão de óbito, a construção de um memorial único para todas as vítimas dos conflitos políticos registados no país.
No decreto, João Lourenço inclui entre os conflitos a “intentona golpista do ’27 de Maio’ ou eventuais crimes cometidos por movimentos ou partidos políticos no quadro do conflito armado”.
A decisão do chefe de Estado surgiu depois de, em Novembro de 2018, o ministro da Justiça, Francisco Queiroz, ter anunciado a “Estratégia do Executivo de Médio Prazo para os Direitos Humanos 2018/2022”, em que o Governo de Luanda reconhece, pela primeira vez, que, após o 27 de Maio, registou-se um “cortejo de atentados aos Direitos Humanos”, considerando-o “um dos mais relevantes” da História do país.
Em Março deste ano, a Plataforma 27 de Maio, que integra a Associação 27 de Maio, Associação M-27 e o Grupo de Sobreviventes do 27 de Maio, suspendeu a sua participação nos trabalhos da CIVICOP, por não serem respondidos os pedidos apresentados pelos representantes das vítimas.
Numa nota, o grupo referiu que o Governo e o MPLA (são uma e a mesma coisa), que têm uma posição de domínio na CIVICOP, “longe de procurarem um caminho de verdadeira reconciliação nacional, optaram pela recusa da verdade histórica e pela construção de propaganda a seu favor, para branquear a imagem, não estando interessados em apreciar sequer os pedidos que foram apresentados pelos representantes das vítimas”.
Entre os pedidos, constavam uma investigação isenta e célere para identificar os responsáveis pelos crimes, a localização dos restos mortais das vítimas, a sua certificação por teste de ADN, a emissão das respectivas certidões de óbito, onde conste a data e causa da morte e a sua devolução às famílias.
Um assassino que é herói (nacional e mundial) do MPLA
Em Angola, o Dia do Herói Mundial (que substituirá o Dia do Herói Nacional, designação muito pequena para a amplitude do protagonista) é uma comemoração partidária transformada, por força da ditadura, em nacional angolana e agora em mundial, em memória do nosso maior genocida, do nosso maior assassino, António Agostinho Neto.
Estávamos a 17 de Setembro de 2016. O então ministro da Defesa de Angola e vice-presidente do MPLA, João Lourenço (alguém sabe quem é?), denunciou tentativas de “denegrir” a imagem de Agostinho Neto, primeiro Presidente angolano.
João Lourenço discursava em Mbanza Congo, província do Zaire, ao presidir ao acto solene das comemorações do dia do Herói Nacional, feriado alusivo precisamente ao nascimento de Agostinho Neto.
“A grandeza e a dimensão da figura de Agostinho Neto é de tal ordem gigante que, ao longo dos anos, todas as tentativas de denegrir a sua pessoa, a sua personalidade e obra realizada como líder político, poeta, estadista e humanista, falharam pura e simplesmente porque os factos estão aí para confirmar quão grande ele foi”, afirmou o general João Lourenço, hoje presidente do MPLA, da República (do MPLA) e Titular do Poder Executivo (do MPLA), certamente já perspectivando em guindá-lo a figura de nível mundial que pudesse ombrear (à sua escala) com Adolf Hitler, Joseph Stalin, Pol Pot, Mao Tse-Tung, Kim Jong-il (entre muitos outros).
João Lourenço nunca se referiu ao caso na sua intervenção, mas o Bureau Político do MPLA criticou em Julho de 2016, duramente, o lançamento em Portugal de um livro (mais um) sobre o MPLA e o primeiro Presidente Agostinho Neto, queixando-se então de uma nova “campanha de desinformação”.
Em causa estava (continua a estar, estará sempre) o livro “Agostinho Neto – O Perfil de um Ditador – A História do MPLA em Carne Viva”, do historiador angolano Carlos Pacheco, lançado em Lisboa a 5 de Julho de 2016, visado no comunicado daquele órgão do Comité Central do partido no poder em Angola desde 1975.
“A República de Angola está a ser vítima, mais uma vez, de uma campanha de desinformação, na qual são visadas, de forma repugnante, figuras muito importantes da Luta de Libertação Nacional, particularmente o saudoso camarada Presidente Agostinho Neto”, afirmou o Bureau Político.
Na intervenção em Mbanza Congo, João Lourenço, que falava em representação do seu então querido, carismático e divino chefe, o “escolhido de Deus” e chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, sublinhou que Agostinho Neto “será sempre recordado como lutador pela liberdade dos povos” e um “humanista profundo”.
“Como atestam as populações mais carenciadas de Cabo Verde, a quem Agostinho Neto tratou gratuitamente, mesmo estando ele nas condições de preso politico. É assim como será sempre lembrado, por muitas que sejam as tentativas de denegrir”, afirmou – sabendo que estava a mentir e a ser conivente com um dos mais hediondos crimes cometidos em África – o então ministro da Defesa e hoje Presidente da República.
“Em contrapartida”, disse ainda João Lourenço, os “seus detractores não terão nunca uma única linha escrita na História, porque mergulhados nos seus recalcamentos e frustrações, não deixarão obra feita digna de respeito e admiração”.
“Não terão por isso honras de seus povos e muito menos de outros povos e nações. A História encarregar-se-á de simplesmente ignorá-los, concentremos por isso nossas energias na edificação do nosso belo país”, disse João Lourenço.
Sabendo o que dizia mas não dizendo o que sabe, João Lourenço alinhava (e alinha), “mergulhado nos seus recalcamentos e frustrações”, na lavagem da imagem de Agostinho Neto numa altura em que, como sabe o regime, os angolanos começam cada vez mais a pensar com a cabeça e não tanto com a barriga… vazia.
Terá João Lourenço alguma coisa, séria, honesta e reconciliadora a dizer aos angolanos sobre os acontecimentos ocorridos no dia 27 de Maio de 1977 e nos anos que se seguiram, quando milhares e milhares de angolanos foram assassinados por ordem de Agostinho Neto?
Agostinho Neto, então Presidente da República Popular de Angola, deu o tiro de partida na corrida do terror, ao dispensar o poder judicial, em claro desrespeito pela Constituição que jurara e garantia aos arguidos o direito à defesa. Fê-lo ao declarar, perante as câmaras da televisão, que não iriam perder tempo com julgamentos. Tal procedimento nem era uma novidade, pois, na história do MPLA tornara-se usual mandar matar os que se apontavam como “fraccionistas”.
O que terá a dizer sobre isto o agora Presidente da República, general João Lourenço?
Agostinho Neto deixou a Angola (mesmo que o MPLA utilize toda a lixívia do mundo) o legado da máxima centralização de um poder incapaz de dialogar e de construir consensos, assim como de uma corrupção endémica. E os portugueses que nasceram e viveram em Angola, ainda hoje recordam o papel que teve na sua expulsão do país. Antes da independência declarava que os brancos que viviam em Angola há três gerações eram os “inimigos mais perigosos”.
Em 1974, duvidava que os portugueses pudessem continuar em Angola. Em vésperas da independência convidava-os a sair do país. E já depois da independência, por altura da morte a tiro do embaixador de um país de Leste, cuja viatura não parara quando se procedia ao hastear da bandeira do MPLA, dirigiu-se, pela televisão, aos camaradas, para lhes dizer que era preciso cuidado, pois nem todos os brancos eram portugueses.
Em Maio de 1977, não houve pioneirismo, pelo contrário, não tendo Agostinho Neto conseguido massacrar a humilhação passada no Congresso de Lusaka, o primeiro democrático do MPLA, onde o eleito foi Daniel Júlio Chipenda, Agostinho Neto consumou a grande chacina, para estancar, com o temor, uma série de cisões e problemas que calcorreavam incubados, desde a sua chegada ao MPLA, convidado pela anterior direcção.
Esta demonstração de força, serviu para demonstrar, que se o poder fosse posto em causa, a direcção e Agostinho Neto, não teriam pejo de sacrificar com a própria vida todos quantos intelectualmente o afrontassem. Foi assim ontem, é assim hoje, infelizmente, como bem sabe João Lourenço.
Numa só palavra, quando este MPLA sente o poder ameaçado, não hesita: humilha, assassina, destrói, elimina, atira aos jacarés.
É a sua natureza perversa demonstrando não estar o MPLA preparado para perder o poder e, em democracia, com a força do voto se isso vier a acontecer, a opção pela guerra será o recurso mais natural deste partido, não é general João Lourenço?
Em todos os meses do ano nunca devemos esquecer, por força do sofrimento de milhares e dos assassinatos de igual número, das prisões arbitrárias, da Comissão de Lágrimas, da Comissão de Inquérito, dos fuzilamentos indiscriminados, etc..
Muitos acreditaram, em 1979, que com a ascensão de Eduardo dos Santos ao poder, num eventual reencontro com a verdade e com a reconciliação interna, sobre a alegada intentona, que ele próprio sabe nunca ter existido. Infelizmente, não se conseguiu despir da cobardia e cumplicidade, ostentada desde o tempo de Agostinho Neto e da sua clique: Lúcio Lara, Onambwé, Iko Carreira, Costa Andrade “Ndunduma”, Artur Pestana “Pepetela”, entre outros.
Dos Santos mostrou ser um homem que, pelo poder, foi capaz de tudo: violar a Constituição, as leis, humilhar, desonrar e assassinar, todos quantos não o bajulavam. Exemplos para quê, eles estão à mão de semear… nas cadeias, no exílio, nos cemitérios, no estômago dos jacarés. E João Lourenço está a mostrar-se um bom aluno desta cátedra.
“Não vamos perder tempo com julgamentos”, disse no pedestal da sua cadeira-baloiço, um dos maiores genocidas do nacionalismo angolano e da independência nacional, Agostinho Neto. João Lourenço sabe que isto é verdade, mas – apesar disso – enaltece o assassino e enxovalha a memória das vítimas.
Esta posição da lei da força, marcaria para todo o sempre o sistema judicial, judiciário e de investigação policial em Angola, onde a presunção e a defesa de uma ideologia diferente da do partido no poder, são causa bastante para acusação, julgamento, prisão e até mesmo assassinato político, ainda que a pena de morte, não esteja consagrada na Constituição.
Sempre que o regime diz o que agora repete João Lourenço, todos devemos fazer uma viagem de regresso a 1977 para ver como estão as cicatrizes daquele período de barbárie, que levou muitos de nós às fedorentas masmorras da polícia política de Agostinho Neto, ou mesmo aos assassinatos atrozes, como nunca antes o próprio colono português havia praticado contra muitos intelectuais pretos, sendo o próprio Neto disso um exemplo.
Desde 1977 que Angola, o Povo, aguarda pela justiça, mas com as mentes caducas no leme do país, essa magnanimidade de retractação mútua, para o sarar de feridas, não será possível, augurar uma Comissão da Verdade e Reconciliação, muito também por não haver um líder em Angola.
(*) Com Lusa