O ex-chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas (CEMGFAA), Francisco Pereira Furtado, considerou hoje estável a situação político-militar do país, apesar de ser necessário “solucionar um pequeno detalhe da província de Cabinda”.
Francisco Pereira Furtado dissertou hoje sobre o tema “A Paz como Factor Imperativo para a Estabilidade e Desenvolvimento de Angola”, na abertura das jornadas patrióticas alusivas ao 4 de Abril, Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, promovida pelo Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas.
Em bom rigor factual registe-se o dia 4 de Abril (de 2002), por incapacidade política, social e governativa, não é (ainda não é) o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional. As armas calaram-se, é certo, mas o que aconteceu foi a rendição de um dos beligerantes (a UNITA) e a ditatorial usurpação da vitória pelo vencedor (o MPLA). Veja-se os anos que passaram para que Jonas Savimbi tivesse direito a um funeral (mais ou menos) condicente com o que representou para uma grande parte dos angolanos. Também falar de “reconciliação nacional” num país com 20 milhões de pobres é como falar em ir a Marte de bicicleta.
“A situação político-militar do país é estável, o país está em paz, independentemente da necessidade de solucionar um pequeno detalhe da província de Cabinda. O país está pacificado e é esta paz que os militares têm que preservar, manter a estabilidade, com vista a garantirmos uma efectiva reconciliação nacional”, disse Francisco Pereira Furtado, em declarações à Lusa no final da cerimónia.
Segundo o oficial das Forças Armadas Angolanas (FAA), existem mecanismos para a situação actual da província de Cabinda, salientando que “o Governo está empenhado” no assunto.
“Da mesma forma que negociamos os processos de paz anteriores devemos negociar com a ala da FLEC [Frente de Libertação do Estado de Cabinda], porque é mais uma ala. Pelo que eu conheço da FLEC, desde o seu surgimento, em 1975, no seu seio já surgiram mais de seis alas, é preciso levar esta ala que ainda reivindica de uma forma não correcta, com alguma violência, a compreender que o país não pode continuar nesta senda de conflitos”, referiu.
Questionado se a escolha da província de Cabinda como palco central das comemorações dos 19 anos de paz de Angola será um sinal de aproximação, Francisco Pereira Furtado disse julgar que “tem mesmo a ver” com isso.
“Porque há necessidade de em Cabinda ter-se o mesmo sentimento e a mesma visão estratégica do país inteiro”, frisou, colando-se à velha tese do MPLA de que Angola vai de Cabinda ao Cunene, tal como os assalariados de Salazar diziam que Portugal ia do Minho a Timor, tal como Jacarta dizia que Timor-Leste era uma província da Indonésia.
Na sua dissertação, Francisco Pereira Furtado admitiu que “devido a algumas situações não muito boas”, que não precisou (se o fizesse teria de mostrar que o seu MPLA só conhece a razão da força, ou então mentir), “o processo de implementação do Estatuto Especial para a província de Cabinda não teve o seu desenvolvimento como desejado e terá que ser restabelecido de forma a que se observe aquilo a que foi acordado”.
Francisco Pereira Furtado, numa incursão histórica sobre a situação de Cabinda, disse que as negociações entre o Governo e o Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD) para o alcance da paz naquele território petrolífero no norte do país tiveram início em 2005.
“O Governo da República de Angola iniciou um estabelecimento de contactos com o Fórum Cabindês para o Diálogo a partir do exterior do país e após mais um ano de sucessivos contactos foi assinado no dia 4 de Junho de 2006 em Chicamba, comuna de Massabi, município de Cacongo em Cabinda, o Acordo de Cessação das Hostilidades entre as FAA e a FLEC sob autoridade do FCD”, contou.
De acordo com o ex-CEMGFAA, em Julho de 2006, juntaram-se à mesa de negociações na República do Congo, as delegações do Governo de Angola e do FCD, com a observação dos membros do Ibinda — conselho das mais altas autoridades tradicionais de Cabinda – convidados a participarem nas negociações em Brazzaville.
A delegação angolana, da qual fez parte Francisco Pereira Furtado, era chefiada pelo então ministro da Administração do Território, Virgílio de Fontes Pereira, coadjuvado pelo chefe da Casa Militar do Presidente da República, Hélder Vieira Dias “Kopelipa”.
“É desta forma que, das negociações, resultou a assinatura de um memorando de entendimento de reconciliação da província de Cabinda e também de um Estatuto Especial para a província de Cabinda, estatuto este que dá autonomia à província de Cabinda para estar em condições diferente das outras províncias”, sublinhou.
Ambos os documentos foram oficialmente assinados, na cidade do Namibe, em 1 de Agosto de 2006, entre as delegações do Governo de Angola e do FCD, liderado por António Bento Bembe.
“Para a materialização desses acordos assinados à semelhança do processo anterior, foi criada uma comissão conjunta para as questões gerais e para as questões militares foi criada uma comissão mista, composta por oficiais generais das FAA e do FCD, aí mais uma vez fui nomeado pelo então Presidente da República e Comandante-em-Chefe das FAA [José Eduardo dos Santos] para coordenar a comissão mista do processo de paz de Cabinda”, salientou.
Há vários anos que os cidadãos de Cabinda reivindicam a autonomia desta parcela do território angolano, com a FLEC a assumir a autoria de supostos ataques armados, que resultam em mortes e feridos de militares das FAA e das suas forças guerrilheiras.
Em Abril de 2019, num comunicado, assinado pelo tenente general Afonso Nzau, director-geral do Serviço de Inteligência Externa da Frente de Libertação do Estado de Cabinda — Forças Armadas de Cabinda (FLEC/FAC), a organização convidou o Governo angolano a visitar uma das bases daquele movimento de Cabinda e a assinar “um acordo de princípio” para pôr termo ao conflito no enclave.
Os sucessivos anúncios de ataques armados pela FLEC têm sido publicamente desvalorizados pelo Governo, que garante que a situação em Cabinda é estável.
A província angolana de Cabinda, onde se concentram a maior parte das reservas petrolíferas do país, não é contígua ao restante território e, desde há muitos anos, que líderes locais defendem a independência, alegando uma história colonial autónoma de Luanda.
A FLEC, através do seu “braço armado”, as FAC, luta pela independência da província, alegando (e bem) que o enclave era um protectorado português, tal como ficou estabelecido no Tratado de Simulambuco, assinado em 1885, e não parte integrante do território angolano.
Cabinda é delimitada a norte pela República do Congo, a leste e a sul pela República Democrática do Congo e a oeste pelo oceano Atlântico.
O acto central das comemorações do Dia Nacional da Paz e Reconciliação que se celebra em 4 de Abril terá lugar este ano na província de Cabinda.
Em 4 de Abril de 2002, o Governo do MPLA e a UNITA assinaram os acordos de paz que permitiram pôr fim a uma guerra civil que durava desde 1975, logo após a independência do país.
O Tratado de Simulambuco
Num contexto colonial em que Portugal aparecia como mal menor entre todos os que queriam ser donos da Cabinda, os cabindas optaram por negociar com os portugueses, acreditando que a sua segurança e autonomia sairiam resguardas.
A 29 de Setembro de 1883, foi assinado o Tratado de Chinfuma no morro do mesmo nome, a norte do rio Chiloango. O local foi escolhido porque só por si corroborava o alcance do acordo. Assim, ficou estabelecido o protectorado e a soberania de Portugal sobre todos os territórios que se estendem do rio Massabi até ao Malembo.
Portugal, de acordo com o articulado do documento, comprometia-se a garantir a perenidade e integridade das áreas bem especificadas no âmbito do protectorado (Artigo 3º, do Tratado de Chifuma), situação corroborada também pelo auto de posse que foi autenticado pelo rei do Cacongo.
Pouco mais de um ano depois, a 26 de Dezembro de 1884, outros responsáveis da hierarquia social e política de Cabinda consideraram favorável o Tratado de Chifuma, até então considerado como já tendo dado frutos no sentido da defesa dos interesses dos cabindas, e decidiram apostar na mesma estratégia, assinando então o Tratado de Chicambo, cópia fiel do anterior.
De acordo com a História de Portugal, anterior aos capítulos revolucionários que a reescreveram a partir do 25 de Abril de 1974, todos os acordos com os cabindas foram feitos, assinados e assumidos conscientemente pelo Governador-Geral de Angola, capitão-tenente Ferreira do Amaral, tendo como testemunha presencial o tenente Guilherme Capelo, comandante da corveta “Rainha de Portugal”, navio de guerra que patrulhava a região regularmente e que era uma garantia da soberania portuguesa.
Mau grado estes Tratados e todas as garantias dadas pelas autoridades portuguesas em matéria de segurança, os cabindas continuavam a sentir-se sem segurança e sujeitos aos mesmos perigos protagonizados pelas outras potências coloniais.
Confrontado com a esta realidade que, inclusive, poderia levar a umas espécie de rebelião que anulasse os acordos anteriores, Portugal resolveu com a anuência de um maior número de líderes de Cabinda, avançar para um outro Tratado mais amplo e abrangente e que englobasse os anteriores e lhes desse outras mais-valias.
Foi assim que, em 1 de Fevereiro de 1885, nasce o Tratado de Simulambuco. Na óptica de Lisboa, sob o reinado de D. Luís, este Tratado era importantíssimo sobretudo no âmbito da famosa Conferência de Berlim.
A Conferência de Berlim realizada entre 19 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885 teve como objectivo organizar a ocupação de África pelas potências coloniais e resultou numa divisão que não respeitou, nem a história, nem as relações étnicas e mesmo familiares dos povos do Continente.
A Conferência de Berlim validou o Tratado de Simulambuco e reconheceu, como era condição sine qua non de Portugal, todos os direitos portugueses na região.
Portugal assumia então, tanto perante os cabindas como o mundo, a obrigação de ser guardião, por todos os meios ao seu dispor, do Protectorado de Cabinda.
No Tratado estava, e está, escrito:
“Nós, abaixo assinados príncipes governadores de Cabinda, sabendo que na Europa se trata de resolver, em conferência de embaixadores de diferentes potências, questões que directamente dizem respeito aos territórios da Costa Ocidental de África, e, por conseguinte, ao destino dos seus povos, aproveitamos a estada neste porto da corveta portuguesa “Rainha de Portugal”, a fim de, em nosso nome e no dos povos que governamos, pedirmos ao seu comandante, como delegado do Governo de Sua Majestade Fidelíssima, para fazermos e concordarmos num tratado pelo qual fiquemos sob o protectorado de Portugal, tornando-nos, de facto, súbditos da coroa portuguesa, como já o éramos por hábitos e relações de amizade. E, portanto, sendo de nossa inteira, livre e plena vontade que de futuro entremos nos domínios da coroa portuguesa para aceder aos nossos desejos e dos povos que governamos, determinado o dia, onde, em sessão solene, se há-de assinar o tratado que nos coloque sob protecção da bandeira de Portugal”.
Também os portugueses escreveram e subscreveram: Guilherme Augusto de Brito Capello, capitão tenente da Armada, comandante da corveta Rainha de Portugal, comendador d’Aviz e cavaleiro de várias Ordens, autorizado pelo Governo de Sua Majestade Fidelíssima, El-Rei de Portugal, satisfazendo aos desejos manifestados pelos príncipes de Cabinda, em petição devidamente por eles assinada em grande Fundação, concluiu com os referidos Príncipes, Governadores e Chefes abaixo assinados, seus sucessores e herdeiros o seguinte:
Articulado do Tratado
«Artigo 1º – Os Príncipes e mais chefes do país e seus sucessores declaram voluntariamente reconhecer a soberania de Portugal, colocando sob o protectorado desta nação todos os territórios por eles governados.
Artigo 2° – Portugal reconhece e confirmará todos os chefes que forem reconhecidos pelos povos segundo as suas leis e usos, prometendo-lhes auxílio e protecção.
Artigo 3º – Portugal obriga-se a fazer manter a integridade dos territórios colocados sob o protectorado.
Artigo 4º – Aos chefes do país e seus habitantes será conservado o senhorio directo das terras que lhe pertencem, podendo-as vender ou alienar, de qualquer forma, para estabelecimento de feitorias de negócios ou outras indústrias particulares, mediante o pagamento dos costumes, marcando-se duma maneira clara e precisa a área dos terrenos concedidos para evitar complicações futuras, devendo ser ratificamos os contratos pelos comandantes dos navios de guerra portugueses, ou pela autoridade em que o Governo de sua Majestade delegar os seus poderes.
Artigo 5º – A maior liberdade será concedida aos comerciantes de todas as nações para se estabelecerem nestes territórios, ficando o Governo português obrigado a proteger esses estabelecimentos, reservando-se o direito de proceder como julgar mais conveniente, quando se provar que se tenta destruir o domínio de Portugal nestas regiões.
Artigo 6º – Os príncipes e mais indígenas obrigam-se a não fazer tratados, nem ceder terrenos aos representantes de nações estrangeiras, quando essa cedência seja com carácter oficial e não com o fim mencionado no artigo 4º.
Artigo 7º – Igualmente se obrigam a proteger o comércio, quer dos portugueses, quer dos estrangeiros e indígenas, não permitindo interrupções nas comunicações com o interior, e a fazer uso da sua autoridade para desembaraçar os caminhos, facilitando e protegendo as relações entre os vendedores e compradores, as missões religiosas e científicas, que se estabelecerem temporária ou permanentemente nos seus territórios, assim como o desenvolvimento da agricultura.
Parágrafo único – Obrigam-se mais a não permitir o tráfico da escravatura nos limites dos seus domínios.
Artigo 8º – Toda e qualquer questão entre europeus e indígenas será resolvida sempre com a assistência do comandante do navio de guerra português que nessa ocasião estiver em possível comunicação com a terra, ou de quem estiver munido de poderes devidamente legalizados.
Artigo 9º – Portugal respeitará e fará respeitar os usos e costumes do país.
Artigo 10º – Os príncipes e governadores cedem a Portugal a propriedade inteira e completa de porções de terreno mediante o pagamento dos seus respectivos valores, a fim de neles o Governo português mandar edificar os seus estabelecimentos militares, administrativos ou particulares.
Artigo 11º – O presente tratado, assinado pelos príncipes e chefes do país, bem como pelo capitão tenente comandante da corveta Rainha de Portugal, começará a ter execução desde o dia da sua assinatura, não podendo contudo considerar-se definitivo senão depois de ter sido aprovado pelo Governo de Sua Majestade.»
Nota: Seja qual for o ponto de vista da análise, é matéria de facto que Portugal honrou desde 1885 até 1974 o compromisso assumido com os cabindas, razão pela qual em matéria constitucional incluiu Cabinda na Nação portuguesa, fazendo-o de forma autónoma e bem diferenciada de outras situações coloniais.
De facto, e ao contrário das teses unilaterais dos descolonizadores que tomaram o poder em Portugal em 1974, no artigo da Constituição Portuguesa referente à Nação Portuguesa sempre constava, sempre constou e ainda lá está para quem tiver dúvidas, que o território de Portugal era, na África Ocidental, constituído pelos Arquipélagos de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, Forte de S. João Baptista de Ajudá, Guiné, Cabinda e Angola.
Folha 8 com Lusa