A Associação dos Juízes de Angola (AJA) considerou hoje como “um vergonhoso recuo” do Estado democrático e de direito (presume-se que, eventualmente, se referem a Angola) e da Constituição, as alterações do capítulo sobre o Poder Judicial na proposta de revisão constitucional do MPLA, “repudiando” a iniciativa.
Em nota pública, a AJA afirma que, “com preocupação”, os seus membros tomaram contacto com as alterações do capítulo IV sobre o Poder Judicial, designadamente as que se pretendem nos artigos 176, 179, 181 e 184 da Constituição da República de Angola (CRA).
Para a AJA, a pretensão de se introduzir novos números, de 6 a 9, no artigo 176, consubstancia-se, na prática, “um vergonhoso recuo do Estado democrático e de direito e da Constituição, por visaram uma verdadeira desestruturação do sistema judicial”.
Os magistrados judiciais afectos à Associação dos Juízes de Angola consideram que esta “fragmentação e fragilização” com certeza “enfraquecerá ainda mais os tribunais no exercício da sua função jurisdicional”.
O Presidente do MPLA, também Presidente da República por ter sido o seu cabeça-de-lista nas últimas eleições, João Lourenço, anunciou, no passado dia 2 de Março, uma revisão pontual da Constituição com o objectivo, entre outros, de clarificar os mecanismos de fiscalização política, dar direito de voto a residentes no estrangeiro e eliminar o princípio de gradualismo nas autarquias. Também é para ele ter (ainda) mais poderes e durante mais tempo, mas isso é certamente uma questão se somenos interesse.
“Com esta proposta de revisão pontual da Constituição pretende-se preservar a estabilidade dos seus princípios fundamentais, adaptar algumas das suas normas à realidade vigente, mantendo-a ajustada ao contexto político, social e económico, clarificar os mecanismos de fiscalização política e melhorar o relacionamento entre os órgãos de soberania, bem como corrigir algumas insuficiências”, destacou o líder do partido que está no Poder há apenas… 45 anos.
O Parlamento angolano (uma das muitas sucursais do MPLA) agendou, para quinta-feira, a discussão, na generalidade, da proposta de revisão dos 40 artigos da CRA.
No capítulo IV sobre o Poder Judicial, diz a iniciativa de João Lourenço, “propõe-se alterar o artigo 176 sobre o sistema jurisdicional para alterar a ordem de precedências entre o Tribunal Constitucional e o Tribunal Supremo, passando este a ter precedência hierárquica e protocolar face aos demais tribunais superiores”.
A proposta de um novo número 6 para este artigo, assinala a proposta do Presidente do MPLA, tem por finalidade “aclarar o conceito de soberania representativa do poder judicial, face aos demais poderes de soberania (legislativo e executivo) e à sociedade”.
“Com esta proposta, torna-se claro que os juízes de primeira e segunda instância não são órgãos representativos da soberania do poder judicial, não podendo evocar o estatuto de poder de soberania em relação com as instituições dos outros órgãos de soberania (legislativo e executivo) e com a sociedade em geral”, lê-se na proposta de revisão da CRA.
A AJA considera, nesta nota pública assinada hoje pelo seu presidente Adalberto Gonçalves, que as alterações apontadas no artigo 176 e seus fundamentos “bastante perniciosos”, pois “atentam contra os princípios e normas constitucionais elementares e estruturantes do poder judicial”.
“Mostrando-se desalinhados com o teor de normas vigentes e que, em princípio, não serão alteradas e prestam-se à confusão de conceitos”, realça a AJA.
O agendamento para a discussão (leia-se aprovação) da proposta de revisão da CRA no Parlamento, marcado para quinta-feira, também constitui motivo de “acentuada inquietação” da AJA, sobretudo devido ao “rumo e velocidade que o processo de revisão tomou”.
Esta associação de magistrados judiciais teme que a intenção do Presidente, expressa no anúncio de revisão da CRA, segundo a qual a com as alterações da proposta se pretendia ter uma melhor Constituição, “fique ameaçada”.
“Perante o agendamento da sua discussão, a proposta pode consolidar-se mais rapidamente, e fechar-se às necessárias contribuições dos diversos atores sociais”, assinalam.
Um grupo de trabalho, integrado por juízes, foi criado para compilar e trabalhar nas contribuições à proposta, que deverão ser apresentadas ao parlamento, ao Presidente da República e ao Conselho Superior da Magistratura Judicial.
Em situação de “quase mendicidade”
Recorde-se que magistrados judiciais e do Ministério Público (MP) angolano denunciaram que estão em situação de “quase mendicidade” devido à perda de poder de compra e de “cortes injustificados” de regalias, pedindo a “actualização urgente” dos seus salários.
As preocupações dos magistrados angolanos vêm expressas numa “interpelação conjunta” da Associação dos Juízes de Angola (AJA) e do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público (SNMMP) enviada aos conselhos superiores de ambas magistraturas.
A AJA e o SNMMP dizem constatar “com elevada preocupação” um “certo agravamento da situação social e remuneratória dos magistrados judiciais e do MP, especialmente ao nível da primeira instância e instituições equiparadas”.
Segundo as duas organizações, verifica-se “a redução gradual das regalias previstas sem que se conheçam fundamentos de direitos”.
Os juízes e magistrados do MP, sobretudo na primeira instância, “assistiram, gradualmente, ao longo dos últimos anos, não só à brusca perda do poder de compra dos seus salários”, mas também uma “injustificada privação de direitos e regalias, de caris económico e social, legalmente previstos”, referem.
Há dois ou três anos, adiantam, “que se vinha antevendo o corte dos poucos direitos que ainda eram satisfeitos”, mas a intervenção da AJA e do Ministério da Justiça, nos anos anteriores, “evitou que tais direitos e regalias não ficassem afectados”.
“Mas com a aprovação da Lei n.º42/20 de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do Estado (OGE) 2021, caiu a referida excepção, vendo-se agora os magistrados numa situação pior do que a que vinham suportando até ao momento”, lamentam.
Os magistrados angolanos recordam que nos demais órgãos públicos e de soberania do país, como na função pública, deputados à Assembleia Nacional, órgãos de segurança, juízes dos tribunais superiores, “houve actualização salarial”, questionado a sua “exclusão”.
“Agrava ainda mais a situação, o recente incremento do Imposto do Rendimento do Trabalho (IRT) e das contribuições da segurança social, bem como os demais impostos aprovados e já em vigor, como o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), que reduziram ainda mais os salários”, apontam.
Para estes magistrados judiciais e do MP, “é urgente e imprescindível” que as instituições do Estado “actuem de forma concertada e prática” para solucionar os problemas já identificados e “mitigar a situação de quase mendicidade a que estão relegados”.
Uma realidade que, alertam, “nada abona para a dignidade da função jurisdicional, que lhes está incumbida, nem dignifica o poder judicial, num momento ímpar como esse em que os magistrados são chamados na linha da frente na consolidação do Estado democrático e de Direito”.
Ambas as associações pedem “soluções imediatas” sobre a falta de seguro de saúde e/ou convénios para a assistência médica e medicamentosa dos magistrados e seus dependentes, a necessidade de viaturas de uso pessoais “para que de forma condigna e com segurança possam melhor exercer as suas funções”.
A necessidade de actualização salarial dos magistrados judiciais e do MP da primeira instância, assinalam, deve ser em conformidade com as actualizações ocorridas nos demais órgãos de soberania e tribunais superiores, “sob pena de accionarem mecanicismos jurisdicionais convenientes”.
Uma fonte disse no passado dia 25 de Janeiro que os magistrados já obtiveram uma resposta do Procurador-Geral da República (PGR) angolano, que é também presidente do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público, Hélder Pitta Grós.
Segundo a fonte, Pitta Grós aponta que o processo de aquisição de viaturas “aguarda despacho do Presidente da República e em relação aos salários “será enviada uma solicitação ao ministro de Estado para a Coordenação Económica para dar seguimento ao processo”.
Folha 8 com Lusa